Revirando François Bernier : do dispositivo racial às estratégias de libertação contracoloniais

Abstract

A presente Dissertação busca constituir uma genealogia do dispositivo racial moderno a partir da publicação de “Uma Nova Divisão da Terra de acordo com as diferentes espécies ou raças de homens”, texto escrito no século XVII pelo médico viajante François Bernier. Tal escritura ganha reconhecimento e relevância acadêmica ao ser considerado como a primeira a tecer uma inicial e breve divisão do mundo em categorias raciais ligadas ao fenótipo, às características físicas do corpo; sendo que essa concepção racial do mundo só vem a se estabelecer com mais afinco, de forma institucional e cientificista, no século XIX. Assim, ao debruçar-se sobre essa obra, encontra-se um vislumbre, uma predição, de uma ideia que só vem a se fixar na modernidade no decorrer dos séculos. O ganho desta pesquisa, portanto, está, especialmente, na tradução original do referido texto para o português e, também, na construção argumentativa sobre como elementos e fatores inerentes às relações de poder raciais que caracterizam a modernidade já se encontram em estágio de germinação e potência desde as produções literárias mais informais e controversas de Bernier. Além disso, esta pesquisa dá destaque a um componente específico da racialidade moderna: o sistema sexo/gênero, já que este se apresenta como estruturante das desigualdades e expectativas culturais construídas sobre os corpos de sujeitos colonizados. Assim, analisa-se como o cruzamento entre raça e gênero é capaz de produzir hierarquias sociais, posicionando determinadas pessoas na subalternidade, mas também caminhos tortuosos e estratégias de libertação para a população africana mantida em cativeiro. A fim de firmar uma interpretação interseccional e complexa sobre as interações entre as matrizes de opressão da raça e de sexo/gênero, recorre-se às interpretações sociológicas e filosóficas desenvolvidas tanto pelo feminismo negro quanto pelo transfeminismo. Logo, é possível compreender como os regimes disciplinares da branquitude e da cisnormatividade operam em conjunto para a manutenção de pessoas negras em situação de exploração, fungibilidade e vulnerabilidade. Ao estabelecer uma teia genealógica do poder racial na modernidade, mediante o (re)arranjo de diversos elementos históricos e políticos, pode-se, a um só tempo, conhecer como o racismo se transforma e se atualiza no mundo e como pessoas negras, através de forças criativas e ancestrais, encontram fissuras e rupturas na ordem colonial para expressar seus desejos por um mundo diferente, possível a suas existências.