Instituto de Ci?ncias Humanas Departamento de Servi?o Social Programa de P?s DISSERTA??O DE MESTRADO A POL?TICA DE ASSIST?NCIA SOCIAL DO GOVERNO LULA: ENTRE A INOVA??O Universidade de Bras?lia ? UnB ? IH ? SER -Gradua??o em Pol?tica Social - PPGPS E A ORTODOXIA NEOLIBERAL Marcos C?sar Alves Siqueira Bras?lia, fevereiro de 2012 Marcos C?sar Alves Siqueira A POL?TICA DE ASSIST?NCIA SOCIAL DO GOVERNO LULA: ENTRE A INOVA??O E A ORTODOXIA NEOLIBERAL Disserta??o de Mestrado apresentada ao Programa de P?s-Gradua??o em Pol?tica Social do Departamento de Servi?o Social da Universidade de Bras?lia/UnB, como requisito parcial ? obten??o do t?tulo de Mestre em Pol?tica Social. Orientador: Prof. Dr. Evilasio Salvador Bras?lia, fevereiro de 2012 MARCOS C?SAR ALVES SIQUEIRA A POL?TICA DE ASSIST?NCIA SOCIAL DO GOVERNO LULA: ENTRE A INOVA??O E A ORTODOXIA NEOLIBERAL BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Prof. Dr. Evilasio Salvador (Orientador ? SER/UnB) ____________________________________ Prof?. Dr?. Rosa Helena Stein (SER/UnB) ____________________________________ Prof. Dr. Daniel Bin (ADM/UnB) ____________________________________ Prof?. Dr?. Angela Vieira Neves (Suplente ? SER/UnB) I Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado AGRADECIMENTOS A conclus?o desta Disserta??o de Mestrado representa uma vit?ria coletiva, compartilhada por parceiros e amigos estimados que, durante todo o dif?cil processo de constru??o da pesquisa n?o negaram apoio, est?mulo, ricos debates e construtivas cr?ticas. Assim, mesmo correndo o risco de omiss?es, n?o poderia deixar de manifestar minha gratid?o aos que tornaram essa experi?ncia mais rica, tanto no ?mbito acad?mico, quanto pessoal e sem os quais este estudo n?o teria sido poss?vel. Agrade?o em primeiro lugar ao meu orientador, Prof. Dr. Evilasio Salvador, pelas imprescind?veis orienta??es, pelas acertadas corre??es em todas as vers?es deste trabalho, pela paci?ncia, flexibilidade e compreens?o com as minhas dificuldades e limita??es. Aos membros da banca examinadora desta Disserta??o, Prof?. Dr?. Rosa Helena Stein, Prof. Dr. Daniel Bin e Prof?. Dr?. Angela Vieira Neves, por compartilharam comigo este decisivo momento profissional e me proporcionarem mais esta oportunidade de aprendizado e de aperfei?oamento do trabalho que ora se apresenta. Aos professores que compuseram a banca de qualifica??o do Projeto de Disserta??o, Prof?. Dr?. Angela Vieira Neves e Prof. Dr. Guilherme Delgado. Sua lucidez, olhar cr?tico, ricas contribui??es e orienta??es foram de fundamental import?ncia para a concretiza??o desta pesquisa. ? Coordena??o de Aperfei?oamento de Pessoal de N?vel Superior (CAPES/MEC) pelo apoio e financiamento do curso de Mestrado em Pol?tica Social, desde o seu in?cio. Aos funcion?rios do Departamento de Servi?o Social e do Programa de P?s- gradua??o em Pol?tica Social da Universidade de Bras?lia, em especial Domingas Carneiro. Aos professores das disciplinas realizadas durante o curso de Mestrado no Programa de P?s-gradua??o em Pol?tica Social da Universidade de Bras?lia (PPGPS/UnB): Prof. Dr. Evil?sio Salvador, Prof?. Dr?. Rosa Helena Stein, Prof?. Dr?. Ivanete Boschetti, Prof. Dr. Vicente Faleiros e Prof?. Dr?. Marlene Teixeira. II Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Ao N?cleo de Estudos e Pesquisas em Pol?tica Social (NEPPOS) e ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho (GESST), bem como aos colegas membros de ambos os grupos pelas ricas discuss?es e conhecimento compartilhado. Aos colegas das disciplinas cursadas no Programa de P?s-gradua??o em Pol?tica Social da Universidade de Bras?lia pelos prof?cuos debates realizados em sala de aula e fora dela. ? Prof?. Dr?. Potyara Amazoneida Pereira-Pereira, refer?ncia na ?rea da Pol?tica Social, pelas conversas, pelos inestim?veis ensinamentos e pela leitura criteriosa da vers?o final desta Disserta??o. Ao Nelson Fernando de Freitas Pereira pelo constante est?mulo e confian?a demonstrados durante toda a elabora??o desta pesquisa. Ao Fernando Luis Dem?trio Pereira pelo fiel apoio e pelo aux?lio na tradu??o de textos em ingl?s, sem os quais este trabalho perderia em qualidade. Ao Ant?nio Jos? Pereira pelos constantes incentivos, aten??o e preocupa??es, oferecendo seu precioso aux?lio nos momentos de maior dificuldade. E finalmente, ? minha esposa e companheira Camila Potyara Pereira, por ter sido orientadora permanente, desde o per?odo de sele??o ao curso de Mestrado; ouvido atento; conselheira em todos os momentos de d?vida e des?nimo; e pelas longas conversas e debates sobre Pol?tica Social. III Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ? minha fam?lia, em especial minha esposa Camila, meus pais e sogros, pelo suporte emocional, compreens?o e infal?vel incentivo. Aos pobres brasileiros, filhos de um Pa?s que, apesar de rico e declaradamente independente, concentra, de maneira b?rbara, e em poucas m?os, a riqueza arduamente produzida pela maioria. IV Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ?H? alguns anos, quando visitei o Banco Mundial em Washington, uma frase enfeitava uma das paredes interiores da entrada: ?temos um sonho, um mundo livre de pobreza?. Esta afirma??o me chocou de tal maneira que tive vontade de escrever embaixo: ?e gra?as ao Banco Mundial continua sendo um sonho?. (HOUTART, 2007, p.95) (Tradu??o Livre). V Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado RESUMO A ideologia neoliberal se caracterizou pela capacidade de transpor a esfera econ?mica e pol?tica e atingir as rela??es sociais e culturais de parte consider?vel dos pa?ses em todo o globo. Hoje, principalmente no Brasil, at? mesmo partidos autodeclarados ?de esquerda? defendem (talvez at? inconscientemente) dogmas e concep??es que n?o se originaram de outro lugar, sen?o das mais profundas trincheiras neoliberais. Um desses dogmas ? ressoado por organismos internacionais multilaterais, como o Banco Mundial (que se vale dos meios de comunica??o e cultura de massa e dos sistemas educacionais) ? apregoa que o pobre ? o ?nico respons?vel pela sua condi??o social. Um preceito antigo, mas rebatizado de ?teoria das capacidades? ? quem dita as regras das pol?ticas sociais desde as tr?s ultimas d?cadas do s?culo passado. Nesta linha, programas sociais focalizados e condicionais e de transfer?ncias de rendas m?nimas constituem o ?estado da arte?, por terem o potencial de ampliar o capital humano (quando condicionados ? educa??o e ? sa?de) e os ativos dos pobres sem altera??es no establishment. Ao analisar as recomenda??es do Banco Mundial (constantes em seus estudos e relat?rios) em compara??o com as publica??es dos gestores da pol?tica de assist?ncia social no Brasil (na Gest?o Lula, entre 2003-2010), pode-se verificar a influ?ncia das ideologias hegem?nicas, no rumo e perfil adotados pelas pol?ticas sociais brasileiras das ?ltimas d?cadas. A centralidade dos Programas de Transfer?ncia de Renda (PTRs); a regressividade; a focaliza??o na extrema pobreza; a exig?ncia de contrapartidas e de r?gidos crit?rios de elegibilidade aos benefici?rios da assist?ncia social, n?o s?o fen?menos naturais e inerentes ? pol?tica p?blica e nem tampouco desprovidos de intencionalidade. Pelo contr?rio, nesta disserta??o confirmou-se a hip?tese de que tais fen?menos s?o mecanismos concretos e estrat?gias de a??es pol?ticas, econ?micas e sociais, perpetrados por institui??es ou organismos influentes internacionalmente, constru?dos historicamente, e orientados ideologicamente pelo credo neoliberal, os quais respondem aos interesses da classe dominante. Palavras-chave: Neoliberalismo, Pobreza, Banco Mundial, Assist?ncia Social, Programas de Transfer?ncia de Renda, Focaliza??o, Condicionalidade. VI Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ABSTRACT The neoliberal ideology is characterized by the capacity to overpass the economical and political sphere and to reach the social and cultural relations of the majority of the countries in the world. Nowadays, mainly in Brazil, even the self-declared ?left-wing? political parties defend (maybe unconsciously) dogmas and conceptions that did not come from somewhere else, but from the deepest neoliberal trenches. One of these dogmas ? echoed by multilateral international organisms, such as the World Bank (that takes advantage of the means of communication and the mass media of the educational systems) ? proclaim that the poor person is the only responsible for his/her social condition. One old precept, renamed of ?theory of capacities? is the one that has been dictating the rules of social policies since the last three decades of the last century. Hence, social and focused social programs and of cash transfer programs constitute the ?state of the art?, because they have the potential to widen human capital (when conditioned to education and health) and the actives of the poor people and also to maintain the establishment. In analyzing the recommendations of the World Bank (present in its studies and reports) in comparison to the publications of the managers of social assistance policy in Brazil (in Lula?s government, from 2003 to 2010), it was noted the influence of the hegemonic ideologies on the way and the profile adopted by the Brazilian social policies of the last decades. The centrality of the Cash Transfer Programs (CTPs); the regressivity; the focusing on the extreme poverty; the requirement of counterparts and rigid criteria of eligibility imposed on the social assistance beneficiaries are not natural phenomena and intrinsic in the public policy and not even devoid of intentionality. On the contrary, this dissertation confirmed the hypothesis that such phenomena are concrete mechanisms and strategies of political, economical and social actions developed and perpetrated by internationally influent institutions and organisms, historically built, and ideologically guided by the neoliberal creed, which attends the interests of the dominant social class. Keywords: Neoliberalism, Poverty, World Bank, Social Assistance, Cash Transfer Programs, Focusing, Conditionality. SUM?RIO I - INTRODU??O E JUSTIFICATIVA ..................................................................................... 10 II - CONTEXTUALIZA??O E DELIMITA??O DO PROBLEMA DA PESQUISA .......... 12 III - QUEST?ES DE PARTIDA E HIP?TESE FORMULADA .............................................. 16 IV - OBJETO DE ESTUDO E OBJETIVOS DA PESQUISA ................................................... 17 V - METODOLOGIA .................................................................................................................... 18 CAP?TULO 1 ? A MATRIZ TE?RICA LIBERAL ................................................................... 25 1.1 - O LIBERALISMO CL?SSICO ? ORIGENS E QUEST?ES CONCEITUAIS ....................................... 25 1.2 - O IDE?RIO NEOLIBERAL - ORIGENS E ORIENTA??ES ............................................................ 34 1.3 - O PAPEL DOS ORGANISMOS MULTILATERAIS ? AS G?MEAS DE BRETTON WOODS............... 41 1.4 - O CHAMADO CONSENSO DE WASHINGTON .......................................................................... 48 1.5 - A OFENSIVA NEOLIBERAL NO BRASIL .................................................................................. 51 CAP?TULO 2 ? A DESESTRUTURA??O DO FINANCIAMENTO DAS POL?TICAS SOCIAIS BRASILEIRAS ............................................................................................................. 55 2.1 - UM BREVE HIST?RICO DA TRIBUTA??O NO BRASIL E OS MOVIMENTOS DE (CONTRA)REFORMA ...................................................................................................................... 55 2.2 - OS MITOS E CONTRADI??ES DA POL?TICA ECON?MICA E TRIBUT?RIA. ............................... 65 CAP?TULO 3 - A POL?TICA DE ASSIST?NCIA SOCIAL NO BRASIL .............................. 71 3.1 - A CONSTRU??O DA POL?TICA DE ASSIST?NCIA SOCIAL NO BRASIL .................................... 71 3.2 - A ASSIST?NCIA SOCIAL AP?S A CONSTITUI??O DE 1988 .................................................... 74 3.3 - A RELA??O CONFLITUOSA ENTRE A ASSIST?NCIA SOCIAL E A ?TICA DO TRABALHO ......... 77 3.4 - A INFLU?NCIA NEOLIBERAL NA ASSIST?NCIA SOCIAL ........................................................ 79 3.4.1 - A escolha por uma Assist?ncia Social focalizada ......................................................... 79 3.4.2 - O movimento rumo ? privatiza??o da Assist?ncia Social ............................................. 83 3.4.3 - Uma assist?ncia social centrada em transfer?ncias de renda ...................................... 85 3.5 - IMPRECIS?ES CONCEITUAIS NO CAMPO DA ASSIST?NCIA SOCIAL E O MITO DA ?ASSISTENCIALIZA??O? DAS POL?TICAS SOCIAIS. ....................................................................... 94 CAP?TULO 4 ? OS ORGANISMOS MULTILATERAIS E OFICIAIS COMO INFLU?NCIAS TE?RICAS, POL?TICAS E IDEOL?GICAS - O CASO EMBLEM?TICO DO BANCO MUNDIAL .............................................................................................................. 102 4.1 - UM BREVE HIST?RICO DO DESENVOLVIMENTO DA INFLU?NCIA DO BANCO MUNDIAL ..... 102 4.2 - UMA S?NTESE DA TEORIA DE AMARTYA SEN E O ALCANCE DA SUA TEORIA DAS CAPACIDADES ............................................................................................................................. 123 4.3 ? ?O MODELO BRASILEIRO DE ASSIST?NCIA SOCIAL? E A RELA??O ENTRE O MDS E O BANCO MUNDIAL .................................................................................................................................... 129 CONSIDERA??ES FINAIS ...................................................................................................... 146 REFER?NCIAS ........................................................................................................................... 150 10 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado I - Introdu??o e justificativa A escolha do tema da presente pesquisa ? o contradit?rio processo de constru??o da pol?tica de assist?ncia social no Brasil, com destaque para as for?as ideol?gicas antag?nicas que a influenciaram durante o Governo Lula (2003-2010) ? explica-se n?o somente pela sua relev?ncia no estudo e na compreens?o das pol?ticas sociais brasileiras como um todo, especialmente em um contexto neoliberal, mas tamb?m pelo fato irrefut?vel de que essa pol?tica (de assist?ncia social) alcan?ou consider?vel evid?ncia nos ?ltimos anos. E tal relev?ncia tem sido alcan?ada pela preponder?ncia dada a uma modalidade espec?fica de programa social, as chamadas transfer?ncias condicionadas de renda1 (PTR), que por seu turno, instigam uma s?rie de inquieta??es em pesquisadores, policy makers2 e mesmo benefici?rios, seja em torno da sua centralidade, seja em fun??o do seu impacto (eficaz ou ineficaz) na redu??o das desigualdades sociais. Com efeito, os PTRs t?m provocado calorosos debates e diversos estudos; contudo, a Pol?tica de Assist?ncia Social, que engloba esses programas, ainda ? pouco compreendida e sofre com os efeitos das estigmatiza??es e equ?vocos conceituais de que tem sido alvo. O Programa Bolsa Fam?lia (PBF) e o Benef?cio de Presta??o Continuada (BPC), por exemplo, t?m sido objeto frequente em estudos acad?micos3 e de institutos de pesquisa nacionais, al?m de assunto de grande n?mero de mat?rias jornal?sticas4, que lhes s?o contr?rios ou favor?veis. Entre os argumentos a seu favor, destacam-se os apresentados pelo Governo que, corroborados pelos resultados publicados pelos seus institutos de pesquisa (com destaque para o Instituto de Pesquisa Econ?mica Aplicada - IPEA5), atestam que estes programas t?m retirado um significativo contingente de fam?lias da extrema pobreza, minorando assim uma hist?rica situa??o de iniquidade social. J? entre os argumentos desfavor?veis, ? voz corrente que tais benef?cios criam pessoas acomodadas e s?o injustos para com os contribuintes (embora esque?am que os maiores contribuintes s?o 1 Em ingl?s Conditional Cash Transfers (CCTs). No Brasil, a express?o mais utilizada ? ?Programa de Transfer?ncia de Renda? (PTR). 2 Express?o utilizada para denominar o corpo governamental respons?vel pelo planejamento, execu??o e acompanhamento de pol?ticas p?blicas e sociais. 3 Por exemplo, os trabalhos de Medeiros et al (2006); Diniz et al (2007); Guedes et al (2011); Stein (2005); 4 Vide Spitz (2006); Glycerio (2007); Bolsa... (2010); Brazil's?(2010). 5 Vide Soares et al (2006); Barros et al (2007); Medeiros et al (2007); Soares et al (2009); Dulci (2010). 11 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado os pr?prios benefici?rios, em conformidade com o princ?pio da regressividade fiscal6) al?m de constitu?rem uma significativa fonte de despesas para o Estado. Todavia, mais importante do que a discuss?o sobre a centralidade dos PTRs na assist?ncia social brasileira recente ? o debate sobre a pr?pria defini??o de assist?ncia e sobre as ideologias ou aportes te?ricos que influenciam e at? determinam as a??es governamentais referentes a esta pol?tica. Para al?m da imprecis?o conceitual, que parece se naturalizar nesta pol?tica, a sua apropria??o por correntes de pensamento que lhes s?o avessas engendram diferentes tipos de pr?ticas assistenciais que variam conforme a localidade e o contexto hist?rico nos quais ? executada, o governo que a promove ou a institui??o que a orienta te?rica e conceitualmente (como, por exemplo, a Igreja, os Bancos, as Fam?lias, a Sociedade, entre outras). Assim, descobrir qual aporte ideol?gico influencia de maneira mais consistente a pol?tica de assist?ncia social em determinado Pa?s ou Estado, conduzir? ? descoberta tamb?m das caracter?sticas assumidas pela pol?tica de assist?ncia social colocada em pr?tica. Ou melhor, das caracter?sticas que tem reflexos n?o apenas na pol?tica p?blica em seu conjunto e na economia de maneira geral, mas tamb?m nas rela??es entre Estado e sociedade e entre as classes e grupos componentes desta ?ltima. A centralidade dos programas de transfer?ncia de renda condicionais e focalizados na pobreza extrema, na ?ltima d?cada, por exemplo, ? efeito da influ?ncia de ideologias e teorias dominantes (em especial, o neoliberalismo com suas constantes revis?es e reciclagens), favor?veis a este tipo de prote??o social emergencial, como ser? tratado neste estudo. Em vista do exposto, acredita-se que a presente pesquisa poder? contribuir com a reflex?o acerca de um aspecto pouco discutido no ?mbito da pol?tica social, qual seja: o desvelamento do principal objetivo que est? por detr?s do modelo brasileiro de prote??o social ? iniciado no Governo Lula e em voga atualmente ? cada vez mais em conformidade ideol?gica com as diretrizes do Banco Mundial, que defendem programas contingenciais de transfer?ncia de renda, em detrimento de qualifica??o e facilita??o do acesso a servi?os e demais programas, projetos e benef?cios assistenciais. 6 Que ser? discutida no cap?tulo 2 desta disserta??o. 12 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado II - Contextualiza??o e delimita??o do problema da pesquisa Com o advento do neoliberalismo e a expans?o de ideias/iniciativas orientadas pelos princ?pios da ?globaliza??o pelo alto?7 (IANNI, 2004), do empreendedorismo, da competitividade e da liberdade (de mercado e de consumo), um fluxo de capitais, nunca antes experimentado e impulsionado, em grande parte, pela atividade financeira, atingiu a economia mundial. Nas palavras de Harvey (2008, p. 89), a neoliberaliza??o significou a financeiriza??o de tudo. Isso aprofundou o dom?nio das finan?as sobre todas as ?reas da economia, assim como sobre o aparato do Estado e (...) a vida cotidiana. Criou ainda uma volatilidade sempre crescente nas rela??es globais de troca; houve sem sombra de d?vida uma mudan?a de poder da produ??o para o mundo das finan?as. A chamada economia de mercado atingiu o seu ?pice nas ?ltimas tr?s d?cadas, dando in?cio a uma liberdade mercantil sem precedentes. Contudo, o sentido de liberdade defendido pelos adeptos do neoliberalismo ? restrito ? capacidade de um indiv?duo ou sociedade adquirir bens e servi?os por meio da renda, que permite o livre consumo. E esta renda tornou-se o novo paradigma das rela??es sociais, em que o sucesso pessoal ? medido n?o apenas pela capacidade de aquisi??o de valores de uso, mas pelo potencial de gera??o e multiplica??o de riqueza, por meio do est?mulo a uma suposta capacidade empreendedora. Esta capacidade, por sua vez, se expressa por meio do potencial de cria??o de novos neg?cios, de qualidades gerenciais e de lideran?a, de antevis?o de potenciais e lucrativos mercados e da ousadia de correr riscos em novos empreendimentos. Neste contexto, as pol?ticas sociais, incluindo as brasileiras, tamb?m foram afetadas. Com a tend?ncia cada vez mais residual da prote??o social p?blica, as j? insuficientes medidas protetivas, especialmente as no campo da pol?tica de assist?ncia padecem de forte concentra??o de suas a??es em programas de transfer?ncia de renda condicionados e focalizados sob o pretexto de que assim contribuiriam para uma distribui??o mais justa da riqueza social e para o al?vio da pobreza. Os PTRs8, portanto, se converteram nos principais vetores de atua??o da pol?tica de assist?ncia social brasileira, a partir dos anos 1990, e assumiram maior evid?ncia na 7 Este termo, criado por Otavio Ianni (2004), refere-se ? globaliza??o neoliberal cujo desenho e implementa??o se deram ?pelas? elites e ?para? as elites. 8 Esta modalidade de programa, em sua vers?o ?focalizada? se caracteriza por um repasse em dinheiro, para fam?lias ou indiv?duos cujos ganhos n?o ultrapassem um limite pr?-estabelecido de rendimentos mensais. 13 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado gest?o governamental do presidente Lula (2003-2010). V?rios estudos, como os realizados pelos principais institutos de pesquisa nacionais, exaltam os resultados alcan?ados por estes programas no tocante ? redu??o da pobreza extrema, tendo em vista a sua suposta progressividade9. E, no imagin?rio popular, pode-se perceber a propaga??o da ideia de que tais estrat?gias sejam capazes de, por si s?, resolverem o complexo problema estrutural da pobreza e das desigualdades sociais e econ?micas. Todavia, a preponder?ncia dessas pol?ticas, em detrimento de a??es que qualifiquem e facilitem o acesso a servi?os sociais b?sicos universais e permitam a integra??o org?nica entre a assist?ncia social e as demais pol?ticas p?blicas, deve-se, em ess?ncia, ? op??o neoliberal pela exclusiva focaliza??o da prote??o social nos extremamente pobres, reduzindo assim todas as formas de priva??o material de bens, servi?os e direitos a uma ?nica dimens?o: a falta de rendimentos familiares. Al?m disso, a impessoalidade no atendimento (posto que a transfer?ncia de renda n?o pressup?e uma rela??o entre quem assiste e quem ? assistido), a cobran?a de contrapartidas dos benefici?rios e a fragiliza??o das redes socioassistenciais, contribuem para a propaga??o desses programas em tempos neoliberais. E isso ? feito sem considerar que tais procedimentos enfraquecem o Estado (ao precarizar suas pol?ticas e reduzi-las a a??es emergenciais) e seu p?blico-alvo (ao estigmatiz?-lo com a oferta de programas compensat?rios e paliativos, voltados apenas aos miser?veis). Ao mesmo tempo, cada uma dessas facetas de implica??es dos programas de transfer?ncia de renda gera impasses ? esfera da prote??o social como um todo. Essa tecnifica??o do atendimento, estritamente relacionada ? focaliza??o por faixas de renda, impede o acesso aos benef?cios governamentais por parte de muitos demandantes pobres ao n?o se enquadrarem nos crit?rios de elegibilidade formalmente estabelecidos. Al?m disso, a essa decis?o, que assume car?ter de l?quida e certa, n?o cabem demandas, reclama??es ou qualquer tipo de argumenta??es. Por outro lado, a n?o presta??o de um servi?o p?blico - que, por ser p?blico pressup?e a sua universalidade - por motivos 9 Progressividade ?no sentido de que a maior parte da renda ? direcionada para os mais pobres? (SOARES et al. 2006, p. 24). Verifica-se que a utiliza??o, pelo IPEA, da express?o progressividade nada mais ? do que uma nova terminologia para a sua caracter?stica mais marcante que ? a focaliza??o na pobreza extrema. Este termo ? normalmente empregado (quando circunscrito a este tema) por pesquisadores que nutrem uma relativa afinidade com o princ?pio da focaliza??o por perceberem nesta um instrumento que ?privilegia? os mais pobres, tais quais: Silva e Silva et al (2004); Soares et al (2006); Barros et al (2007). Esta caracter?stica dos PTRs brasileiros ? a focaliza??o na pobreza extrema ? ser? tratada mais adiante no cap?tulo 1. 14 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado de n?o enquadramento em crit?rios eletivos, principalmente em rela??o ao corte de renda, transmite imediatamente a ideia de discrimina??o social e viola??o de direitos. Com base nos dados do or?amento p?blico da Assist?ncia Social, pode-se ter uma ideia da primazia dos programas de transfer?ncia de renda (como o Programa Bolsa Fam?lia/PBF e o Benef?cio de Presta??o Continuada/BPC) em detrimento de outros voltados a servi?os e demais projetos socioassistenciais. A t?tulo de exemplo, no ano de 2010, dos R$ 39,1 bilh?es destinados ? assist?ncia social, 94% de todos os recursos foram destinados a esses dois programas: 58,5% para o BPC e Renda Mensal Vital?cia/RMV10 e 35,8% para o PBF (SALVADOR, 2011). Contudo, apesar deste privilegiamento em termos or?ament?rios, a transfer?ncia de renda torna-se um dos ?nicos (e o mais fr?gil) elo entre servi?os sociais b?sicos, como sa?de e educa??o, e o benefici?rio. Na falta de servi?os sociais verdadeiramente p?blicos, universais e de qualidade (condi??o que naturalmente evitaria tal situa??o), a parca renda oferecida pelos PTRs, ao mesmo tempo em que cria um d?bito do benefici?rio para com o Estado, fruto do sistema de condicionalidades, o estigmatiza como um poss?vel negligente ou alienado, que, por iniciativa pr?pria, n?o colocaria seus filhos na escola e nem utilizaria os servi?os b?sicos de sa?de. A condicionalidade, portanto, desloca totalmente o nexo da pol?tica social da esfera do direito para a esfera do favor; e da justi?a para a meritocracia. Al?m disso, a condicionalidade inverte os termos de qualquer rela??o de troca existente entre credores e devedores. No caso das transfer?ncias de renda condicionadas, o credor de d?vidas sociais, que ? o pobre, tem que oferecer contrapartidas ao Estado, que ? o devedor, pelo pouco que recebe (PIS?N, 1998). Melhor dizendo, conforme Standing (2007), as contrapartidas partem do pressuposto de que os atendidos pelas pol?ticas focalizadas de transfer?ncia de renda s?o incapazes de conhecer as suas necessidades duradouras ? como sa?de, educa??o e trabalho ? ou s?o desprovidos de qualquer tipo de informa??o vital. Ademais, conforme o mesmo autor, condicionar a obten??o de prote??o social ? frequ?ncia a escolas e a postos de sa?de, 10 O benef?cio Renda Mensal Vital?cia (RMV) foi criado em 1974 e era destinado a pessoas idosas com mais de 70 anos e pessoas com defici?ncia incapacitante para a vida pessoal e para o trabalho, que obtivessem rendimentos mensais inferiores a 60% do sal?rio m?nimo vigente. Todavia, com indica??o na Constitui??o Federal de 1988 e regulamenta??o na Lei Org?nica da Assist?ncia Social (LOAS), de 1993, de um benef?cio no valor de um sal?rio m?nimo, destinado a idosos e pessoas com defici?ncia, com rendimentos mensais inferiores a ? do sal?rio m?nimo, que se denominou Benef?cio de Presta??o Continuada/BPC, a RMV foi extinta em 01 de janeiro de 1996. A RMV, contudo, ainda ? concedida ?queles que j? eram benefici?rios antes de sua extin??o, em respeito ao pressuposto do direito adquirido. 15 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado por exemplo, constitui um contrassenso nos pa?ses da periferia do capitalismo, onde os servi?os sociais b?sicos s?o frequentemente escassos e de baixa qualidade. Isso, sem mencionar o fato de que cobrar contrapartidas de v?timas hist?ricas de d?vidas sociais acumuladas por governos negligentes ? esvaziar o car?ter de direito desses programas e subverter a no??o de cidadania. Neste sentido, o protagonismo dado a estes programas acentua a focaliza??o, favorece a cria??o de estigmas e cria falsos elos entre pol?ticas governamentais condicionadas, atrofiando, assim, rela??es institucionais que seriam diretamente fortalecidas se fossem adotados, concomitantemente com o benef?cio da renda, servi?os sociais essenciais. E, nesse caso, os PTRs deveriam ser complementares a esses servi?os, e n?o o contr?rio, como de fato s?o. Nesse contexto, destacam-se as influ?ncias das recomenda??es de organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monet?rio Internacional (FMI), referentes ? redu??o nos investimentos e no financiamento das pol?ticas sociais a serem seguidas nos pa?ses capitalistas perif?ricos. A inten??o velada destes organismos ? a de que estes programas sejam apenas suficientes para evitar o agravamento da pobreza e de tens?es sociais, mas sem deixarem de ser m?nimos para n?o competirem com o pior sal?rio, tal como preconiza o princ?pio da menor elegibilidade institu?do pelos liberais cl?ssicos no s?culo XIX (BLACKMORE, 1998) e mantido pelos neoliberais contempor?neos. Al?m disso, ao estabelecerem como prioridade a distribui??o de benef?cios ?nfimos e focalizados na mis?ria ? esquecendo-se dos servi?os p?blicos de qualidade associados ? oferta de benef?cios b?sicos universais ?, precarizaram tamb?m o financiamento das pol?ticas sociais (BOSCHETTI; BEHRING, 2006). Essa precariza??o, por seu turno, ocorre em duas dire??es: 1) do desrespeito de preceitos or?ament?rios constitucionais e legais por parte dos legisladores, que veem na Seguridade Social uma finalidade menor, que pode ser sempre colocada em segundo plano, principalmente em caso de emerg?ncia de ordem econ?mica; e 2) da aloca??o ineficiente/insuficiente dos recursos por parte dos ?rg?os executores das pol?ticas, que prev?em um alto disp?ndio em rotinas e aparato de controle administrativo sobre os benef?cios e, at? mesmo, sobre a vida dos benefici?rios. Na contram?o dessa realidade, os benefici?rios dos programas de prote??o social s?o os que mais t?m sofrido com o aumento da carga tribut?ria sobre os impostos relativos ao consumo que, no fim das contas, s?o os principais recursos para a realiza??o dessas pol?ticas. No Brasil, a m?dia e a classe empresarial em geral transmitem a ideia de que as 16 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado empresas s?o as que mais sofrem com a excessiva carga tribut?ria. No entanto, sabe-se que, na composi??o do pre?o de qualquer produto ou servi?o, est?o contemplados tributos e encargos sociais. Dessa forma, estes s?o repassados ao consumidor final, que ? quem arca com o maior ?nus e acaba por financiar os programas que deveriam atend?-los. Isso exp?e a face do car?ter regressivo do sistema tribut?rio brasileiro, na qual os tributos t?m rela??o inversamente proporcional com o n?vel de renda de quem contribui. Ou melhor, quanto mais pobre for o indiv?duo, mais comprometida ser? a sua renda com o pagamento de tributos ? principalmente os indiretos ? que, por seu turno, financiam programas sociais dos quais ele ? um potencial benefici?rio (BOSCHETTI; SALVADOR, 2006). Fica clara, assim, a influ?ncia das ideologias dominantes, em especial a neoliberal, no rumo e perfil adotados pelas pol?ticas p?blicas brasileiras das d?cadas recentes. A centralidade dos Programas de Transfer?ncia de Renda; a regressividade; a focaliza??o na extrema pobreza; a exig?ncia de contrapartidas e de r?gidos crit?rios de elegibilidade aos benefici?rios da assist?ncia social; o corte, desvio e concentra??o do financiamento social n?o s?o fen?menos naturais e inerentes ? pol?tica p?blica e nem tampouco desprovidos de intencionalidade. Pelo contr?rio, nesta disserta??o defende-se a hip?tese, confirmada por pesquisa correspondente, de que tais fen?menos s?o mecanismos concretos e estrat?gias de a??es pol?ticas, econ?micas e sociais, perpetrados por Institui??es ou ?rg?os influentes internacionalmente, constru?dos historicamente, e orientados ideologicamente pelo credo neoliberal, os quais respondem a interesses de classe. III - Quest?es de partida e hip?tese formulada Delimitados o problema da pesquisa e indicados os seus principais desdobramentos tornou-se poss?vel elaborar as quest?es de partida das quais decorreram a hip?tese de trabalho e o objeto de estudo, a saber: 1) Em que medida as caracter?sticas assumidas pela pol?tica de assist?ncia social no Brasil, na Gest?o Lula (2003 a 2010), s?o reflexos de determina??es ou orienta??es neoliberais de organismos multilaterais, como o Banco Mundial? 17 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado 2) Quais s?o as influ?ncias ideol?gicas e te?ricas que norteiam a implementa??o da Pol?tica de Assist?ncia Social no Brasil por parte do Minist?rio do Desenvolvimento Social e Combate ? Fome (MDS), que gere e coordena esta Pol?tica? 3) Qual ? a vis?o corrente, no ?mbito do MDS sobre focaliza??o e condicionalidades? Com base nestas quest?es, a hip?tese formulada, ?nas quais se fundamentar?o as informa??es coletadas, os m?todos utilizados e a an?lise dos dados? (RICHARDSON et al. 1999. p. 105), ? a de que: a pol?tica de assist?ncia social brasileira durante a Gest?o Lula (2003 a 2010) se encontra em uma arena de conflitos de interesses contr?rios, ora guiando-se pelo princ?pio dos direitos e da satisfa??o de necessidades sociais, ora deixando-se dominar por orienta??es pautadas pelo m?rito e pela satisfa??o de necessidades do capital. Estas ?ltimas, contudo, parecem dominar a disputa e acarretaram mudan?as consider?veis no perfil da pol?tica de assist?ncia social brasileira, em decorr?ncia de influ?ncias de organismos multilaterais (em especial o Banco Mundial) que por representarem o ide?rio neoliberal, defendem a autorresponsabiliza??o dos indiv?duos pelo seu bem-estar e privilegiam o m?rito sobre o direito e a justi?a social. Assim, e em decorr?ncia dessa influ?ncia, pr?ticas paliativas, contingenciais, emergenciais, centralizadas em programas de transfer?ncia de renda condicionados e focalizados na pobreza extrema ocupam posi??o central na pol?tica de assist?ncia social brasileira. IV - Objeto de estudo e objetivos da pesquisa Em conson?ncia com as quest?es de partida e a hip?tese levantada, constituiu objeto de interesse desta pesquisa: a rela??o entre a concep??o e constru??o da pol?tica de assist?ncia social brasileira da ?ltima d?cada e as orienta??es ou determina??es de um dos principais organismos multilaterais que difundem a ideologia neoliberal ? o Banco Mundial. E os objetivos consistiram em: Geral: investigar as caracter?sticas assumidas pela pol?tica de assist?ncia social brasileira da ?ltima d?cada, analisando as imbrica??es entre a implementa??o desta 18 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado pol?tica no Governo Lula (2003 a 2010) com as determina??es do pensamento neoliberal dominante. Espec?ficos: a. Demonstrar a predomin?ncia das pr?ticas neoliberais na pol?tica de assist?ncia social brasileira, assumidas mediante a determina??o ou influ?ncia de organismos internacionais multilaterais, que defendem a centralidade de programas de transfer?ncia de benef?cios monet?rios focalizados, condicionais e pontuais, em detrimento de a??es pol?ticas preventivas, continuadas, universais e pautadas pela ?tica da cidadania; b. Identificar as principais caracter?sticas da pol?tica de assist?ncia social brasileira na Gest?o Lula (2003-2010), problematizando seus efeitos limitadores, ? luz dos mecanismos regressivos de seu financiamento e da injusti?a tribut?ria; c. Analisar a vis?o corrente de autores acerca da assist?ncia social brasileira, problematizando quest?es relativas ? justi?a redistributiva, direitos, ao clientelismo ou assistencialismo, al?m de averiguar se realmente est? ocorrendo uma assistencializa??o das pol?ticas sociais, tendo em vista a centralidade que os programas de transfer?ncia de renda v?m conquistando. V - Metodologia Toda pesquisa cient?fica se depara, inevitavelmente, com a quest?o primordial dos caminhos e rumos a serem adotados. Alguns se mostram mais adequados, a depender do objeto a ser analisado: o bi?logo, por exemplo, deve escolher a lente mais adequada para captar todos os aspectos de uma determinada estrutura molecular, sob o risco de um olhar desfocado. Por?m, n?o ? apenas o objeto que define o m?todo. O universo tem?tico em que o objeto desta pesquisa se insere ? e, neste caso este universo ? o da Pol?tica Social ? ? eivado de intrincadas redes de rela??es e processos sociais, nos quais as rela??es humanas se d?o e se desenvolvem nas diferentes inst?ncias pol?ticas, ideol?gicas, te?ricas e sob interesses conflitantes. Segundo Behring e Boschetti (2006, p.25): ?toda an?lise de processos e rela??es sociais, na verdade, ? impregnada de pol?tica e disputa de projetos societ?rios, apesar de algumas perspectivas anal?ticas (...) propugnarem de variadas formas o mito da neutralidade cient?fica?. 19 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado A escolha do m?todo ? algo t?o cr?tico no ?mbito dos processos humanos e sociais, que, ao contr?rio das ci?ncias exatas, na qual se corre o risco de enxergar apenas um aspecto do objeto, nas ci?ncias humanas h? o perigo de que este se transmute em algo completamente diferente da realidade, por for?a dos ?v?us ideol?gicos?. E essa distor??o do objeto, e da l?gica dos processos sociais que o comp?em, ocorreu, como visto ao longo desta disserta??o, quase sempre de forma deliberada e consciente. Para Behring e Boschetti (2006), frequentemente predomina um debate exageradamente descritivo acerca da pol?tica social (com influ?ncia predominante da economia), procurando-se apenas uma aproxima??o dos seus efeitos e caracter?sticas j? estabelecidas, distanciando-se das causas que se situam por tr?s de sua apar?ncia. Os dados t?cnicos por si s? permitem, no m?ximo, uma remedia??o dos problemas verificados; mas, para a compreens?o real e a consequente solu??o permanente, faz-se necess?rio, segundo as autoras, uma ?an?lise exaustiva de suas causas e interrela??es, e das raz?es econ?mico- pol?ticas subjacentes aos dados? (p.25). Por outro lado, uma perspectiva meramente prescritiva, na qual se discutem apenas ?tipos ideais? tamb?m empobrece a an?lise, se forem desconsideradas as suas determina??es estruturais. Sem o conhecimento do objeto em uma perspectiva totalizante e dial?tica, e, portanto, internamente contradit?ria, corre-se o risco de uma solu??o completamente diferente da verdadeiramente necess?ria. Al?m disso, h? ainda o risco maior de que esta solu??o idealizada torne o fen?meno ainda mais complexo e de dif?cil solu??o real. Cabe aqui, portanto, uma defini??o do m?todo a ser utilizado nesta pesquisa, com exclus?o de outros percursos investigativos. O m?todo ou o caminho funcionalista, tribut?rio de Durkheim, ? inadequado ? an?lise proposta por considerar os fatos sociais como algo biol?gica e socialmente pr?-estabelecido de acordo as suas fun??es necessariamente desempenhadas dentro de um ?organismo social?. J? a an?lise utilizada neste trabalho prop?e uma investiga??o das a??es, pr?ticas, elementos e constru??es sociais determinados por uma gama complexa de interrela??es em cont?nuas e hist?ricas mudan?as influenciadas pelos mais variados interesses pol?ticos, sociais e econ?micos e n?o regidas por uma suposta ?lei natural?. Com efeito, o m?todo durkheimiano leva justamente ao tecnicismo e a resultados meramente descritivos como apontado anteriormente. Leva tamb?m a conclus?es de que os problemas e distor??es oriundas da aplica??o dos seus preceitos s?o consequ?ncias da natureza humana (tendente a 20 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado desagrega??es) e de for?as externas que fogem a sua fun??o pr?-estabelecida. E como estas disfun??es s?o ?naturais?, sem uma causa definida, a ?nica solu??o a ser vislumbrada ? a cria??o de estrat?gias de controle, remedia??o e ?administra??o? social. Igualmente, a perspectiva idealista n?o se ad?qua aos prop?sitos desta pesquisa por considerar os fatos sociais como um subproduto das rela??es culturais e valorativas, e n?o de determina??es societ?rias, de classes e de rela??es sociais contradit?rias, com prop?sitos intencionalmente definidos. Essa vis?o relativiza os fen?menos sociais, aceitando-os e compreendendo-os como determina??es que podem variar culturalmente e ideologicamente e segundo um determinado ponto de vista. Neste caso, o sujeito (guiado pelos seus valores) se sobrep?e ao objeto, e n?o o contr?rio, como ocorre com a perspectiva funcionalista/positivista e compreensiva/weberiana, a despeito de reconhecer racionalidade na a??o do sujeito. Essa vis?o tamb?m faz com que a pesquisa corra o risco de focar tipos ideais, sem apreens?o dos determinantes hist?rico-estruturais concretos do objeto investigado. Por conseguinte, a presente pesquisa adotou um m?todo que permitiu a compreens?o da complexidade da rela??o dialeticamente influente entre estrutura e hist?ria e, por isso, ampliou a percep??o do objeto, apresentando-o em seus m?ltiplos aspectos (econ?micos, pol?ticos, sociais e ideol?gicos). Ou melhor, fez uso do m?todo cr?tico-dial?tico, porque, al?m de ser o que melhor capta as rela??es entre v?rios fen?menos e processos em um universo de constantes e complexas mudan?as, est? diretamente ligado ? inten??o da pesquisa, qual seja: estabelecer um nexo causal entre a forma como as rela??es se estruturam, em um contexto de influ?ncia neoliberal, e a centralidade das pr?ticas focalizadas, condicionais e emergenciais no ?mbito da assist?ncia social brasileira recente. Em suma, o presente trabalho teve como perspectiva epistemol?gica o materialismo dial?tico que ?? a ?nica corrente epistemol?gica que estabelece uma conex?o entre a estrutura e a hist?ria e a considera como um fator importante no desenvolvimento dos fen?menos?, e que, por sua vez, tem por princ?pios (RICHARDSON et al. 1999. p. 105): ? A conex?o universal entre os objetos e fen?menos ? em uma perspectiva totalizante; ? O movimento e desenvolvimento permanente; 21 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ? O princ?pio de unidade e luta de contr?rios, ligada ao princ?pio da totalidade e da contradi??o. Portanto, diferentemente das vis?es idealista, positivista, funcionalista ou compreensiva, que privilegiam ora a estrutura, ora a hist?ria separadamente e superp?em o sujeito ao objeto, o materialismo dial?tico considera todas essas dimens?es como unidade de diversos e na qual a realidade se expressa em sua din?mica e contraditoriedade. Segundo Politzer et al (1977), enquanto as ci?ncias metaf?sicas consideram os diversos sujeitos como sendo independentes e incompat?veis, a dial?tica verifica uma interdepend?ncia entre eles, ao mesmo tempo em que percebe uma disputa de interesses distintos ou a chamada luta de contr?rios. Como se depreende da escolha metodol?gica desta disserta??o, os diversos elementos e categorias aqui explicitados tem rela??o dial?tica de influ?ncia m?tua, seja entre si, seja entre mudan?as estruturais e o momento hist?rico observado, posto que este tamb?m possui import?ncia fundamental na apreens?o do objeto em sua totalidade contradit?ria. Destarte, as institui??es e organismos aqui analisados s?o o que s?o porque refletem um objetivo e acordo societ?rio, dentro de um contexto e de um per?odo hist?rico determinados. As pol?ticas e programas apresentados, como os programas de transfer?ncia de renda, s?o reflexos de op??es pol?ticas, orientadas por ideologias e influenciadas por diversas for?as tamb?m inseridas em um determinado contexto. Da mesma forma, os resultados obtidos pela pesquisa s?o fruto da op??o por um caminho investigativo que n?o se at?m ? superficialidade dos fatos sociais ou ?s manifesta??es fenom?nicas dos mesmos, mas saiu em busca de sua ess?ncia guiado por uma perspectiva dialeticamente totalizante. Procedimentos metodol?gicos O objetivo geral desta pesquisa, qual seja, investigar as caracter?sticas assumidas pela pol?tica de assist?ncia social brasileira da ?ltima d?cada e sua rela??o com as determina??es do pensamento neoliberal veiculado pelos organismos multilaterais (em especial o Banco Mundial), norteou a escolha pelos procedimentos metodol?gicos mais adequados. Desta forma, a investiga??o se deu por meio de an?lises de dados e informa??es obtidos em fontes secund?rias de natureza predominantemente qualitativa, particularmente no que concerne ? influ?ncia do ide?rio neoliberal sobre as pol?ticas sociais brasileiras e, em especial, sobre a assist?ncia social. Com rela??o aos objetivos espec?ficos da pesquisa foi realizada an?lise de dados quantitativos sobre o or?amento da 22 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado assist?ncia social, al?m de revis?o de literatura especializada no tema sobre o financiamento das pol?ticas sociais, fundo p?blico e sistema tribut?rio brasileiro. Ademais, foram analisadas informa??es captadas em fontes secund?rias referentes aos conceitos centrais da tem?tica da pesquisa (liberalismo, neoliberalismo, assist?ncia social, programas de transfer?ncia de renda, regressividade tribut?ria, focaliza??o, universaliza??o) visando ? sua explicita??o. Para tanto, foram utilizados as seguintes fontes de dados e informa??es: 1. An?lise de documentos e relat?rios do Banco Mundial: Relat?rios de Desenvolvimento Mundial (World Development Report), Relat?rios de avalia??o de Programas de Empr?stimos Adapt?veis (APLs), Estrat?gias de Parceria com pa?ses (EPPs), Relat?rios de Desenvolvimento Econ?mico, Relat?rios sobre Pobreza, entre outros documentos e publica??es do Banco. Especificamente, foram analisados os seguintes documentos oficiais. i. Banco Mundial - World Development Report, 1990. ii. Banco Mundial - The State in a changing World; 1997. iii. Banco Mundial ? Vozes dos pobres: Brasil. Relat?rio Nacional, 2000. iv. Banco Mundial ? O Combate ? pobreza no Brasil: relat?rio sobre pobreza, com ?nfase nas pol?ticas voltadas para a redu??o da pobreza urbana, 2001. v. Banco Mundial ? Attacking Brazil's Poverty: A Poverty Report with a Focus on Poverty Reduction Policies, 2001. vi. Banco Mundial ? Brasil: estrat?gias de redu??o da pobreza no Cear?. O desafio da moderniza??o includente, 2003. vii. Banco Mundial ? Report No: 28544. Project Appraisal Document on a Proposed adaptable program Loan in the Amount of US$ 572?2 Million to the Federative Republic of Brazil for a Bolsa Fam?lia Project, 2004. viii. Banco Mundial ? Report No: 51185-BR, Documento do Projeto de Avalia??o de um Programa de Empr?stimo Adapt?vel, no valor de U$S 200 milh?es para a Rep?blica Federativa do Brasil em apoio a segunda fase do projeto Bolsa Fam?lia, 2010. ix. UNESCO ? O Sistema de Avalia??o e Monitoramento das Pol?ticas e Programas Sociais: a experi?ncia do Minist?rio do Desenvolvimento Social e Combate ? Fome do Brasil, 2010. 2. Revis?o bibliogr?fica de literatura especializada. 23 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado 3. Documentos e relat?rios oficiais de Minist?rios, Secretarias de Estado e institutos de pesquisa. Principal documento analisado: i. MDS ? Desenvolvimento Social e Combate ? Fome no Brasil: Balan?os e Desafios, 2010. 4. Legisla??es, Portarias, relat?rios e delibera??es do Conselho Nacional de Assist?ncia Social (entre 2003 e 2010). 5. Planilhas t?cnicas de or?amento (SIGA, portal da transpar?ncia, entre outros). 6. Mat?rias divulgadas em ve?culos cient?ficos. 7. Mat?rias jornal?sticas. A presente disserta??o est? dividida em quatro cap?tulos, de modo a criar um encadeamento l?gico, iniciando pelo mais geral (de acordo com uma vis?o de totalidade) para o mais espec?fico e diretamente ligado ao objeto de pesquisa. O Cap?tulo 1 aborda a matriz te?rica liberal, partindo do princ?pio de que o pensamento liberal encerra uma gama consider?vel de correntes e particularidades difusas. A reflex?o sobre o pensamento liberal ? fundamental para o estudo das pol?ticas s?cias de ontem e de hoje, posto que este modo de pensar influenciou decisivamente na exist?ncia dos processos sociais que demandaram e demandam pol?ticas, tanto por parte das elites pol?ticas e econ?micas (visando a mitiga??o dos conflitos de classe) quanto por parte das classes exploradas como meio de resist?ncia e amplia??o dos seus direitos. Pensar a influ?ncia do Banco Mundial sobre as pol?ticas sociais brasileiras ? pensar sobre a sua mentalidade contradit?ria, que mescla as matizes neoliberais (e suas defesas por vezes vociferantes sobre o livre mercado e a redu??o do Estado), com matizes t?picas dos liberais cl?ssicos, e sua mentalidade de que ??s vezes ? necess?rio dar os an?is para manter os dedos?. O Cap?tulo 2 traz um breve panorama do processo de desestrutura??o do financiamento das pol?ticas sociais no Brasil, e como a influ?ncia neoliberal trouxe em seu bojo, al?m de uma maior prioriza??o nos mecanismos da especula??o financeira, tamb?m reafirmaram a posi??o de supremacia da esfera econ?mica e do mercado financeiro em detrimento da esfera social. O Cap?tulo 3 apresenta um hist?rico resumido da assist?ncia social brasileira (como pr?tica e como pol?tica), discute a sua condi??o de subalternidade e conflito com a esfera do trabalho e tamb?m mostra quais foram os principais impactos da ofensiva neoliberal em seu ?mbito e nas pol?ticas sociais de uma forma geral. Este cap?tulo tamb?m 24 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado entra na pol?mica discuss?o em torno de uma suposta ?assistencializa??o das pol?ticas sociais brasileiras?, tendo em vista a import?ncia dada, na Gest?o Lula, a programas de transfer?ncia de renda focalizados, como o Programa Bolsa Fam?lia. No Cap?tulo 4 foi analisada a influ?ncia hist?rica do Banco Mundial como disseminador de uma cultura e vis?o hegem?nicas sobre pobreza e pol?ticas sociais, culminando com os anos 2000 e a reciclagem das ideias de Amartya Sem sobre desenvolvimento e capacidades. Por fim, ser?o apresentadas as conclus?es da pesquisa sobre as evid?ncias de influ?ncia direta e indireta do Banco Mundial na pol?tica de assist?ncia social da Gest?o Lula, sob o comando do MDS. 25 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado CAP?TULO 1 ? A matriz te?rica liberal O prop?sito deste cap?tulo ? o de realizar um breve resumo dos princ?pios filos?ficos e pol?ticos que presidiram o ?conjunto de proposi??es te?ricas? chamado Liberalismo, cuja presen?a remonta o s?culo XVIII. A sua compreens?o ? fundamental para situar o est?gio atual das pol?ticas sociais brasileiras, influenciadas originalmente por esses princ?pios cl?ssicos e tamb?m para entender a base fundante do paradigma neoliberal, hoje prevalecente (tendo em mente que o objeto a que se refere esta pesquisa ? a rela??o entre a pol?tica de assist?ncia social no Governo Lula e sua rela??o com um dos principais representantes da ideologia neoliberal ? o Banco Mundial). Seguindo um encadeamento l?gico, parte-se do princ?pio de que as pol?ticas sociais brasileiras, no caso espec?fico, a pol?tica de assist?ncia social, foi estruturalmente modificada pelas concep??es e influ?ncias neoliberais, que, por sua vez, tem como base ou princ?pio filos?fico-te?rico11, o pensamento liberal cl?ssico. 1.1 - O liberalismo cl?ssico ? origens e quest?es conceituais O liberalismo tem ra?zes cujas ramifica??es inspiradoras remetem-se a diversas ?pocas e dire??es, bem como a ideias de v?rios pensadores em diferentes contextos e momentos hist?ricos, com o fim delinear o papel do Estado, as suas origens e elementos constitutivos. De fato, o liberalismo representou a uni?o de ideias e doutrinas que remontam ? Gr?cia antiga, como os princ?pios de justi?a de Plat?o, os esbo?os sobre a propriedade privada de Arist?teles (e tamb?m a sua teoria sobre a justi?a), as teorias sobre a fun??o do Estado de C?cero entre muitas outras fontes importantes (VERGARA, 1992). J? no s?culo XVIII, come?aram a despontar duas correntes filos?ficas ou doutrinas ?ticas e morais que estabeleceram as bases ideol?gicas para os sistemas pol?ticos e jur?dicos do ocidente, principalmente no continente europeu. Trata-se, uma, da doutrina utilitarista (que estabelece que as a??es devam pressupor a felicidade humana) e, outra, da doutrina do ?direito natural? (que define regras sustentadas por uma suposta ?ordem natural?). Inicialmente mecanismos de legitima??o das institui??es existentes desde a antiguidade (como a escravid?o), essas doutrinas posteriormente passaram a questionar se tais institui??es n?o seriam contr?rias ao bem ou a ?tica. 11 Embora n?o haja consenso no ?mbito acad?mico de que liberalismo e neoliberalismo representem uma teoria ou estatuto epistemol?gico. 26 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Para Artur Lovejoy, segundo Vergara (1992), ideias novas s?o um fato raro na hist?ria da humanidade, visto que representam a combina??o de diversas outras ideias orientadas por novos aportes explicativos. Assim, uma teoria ou doutrina originada de outra anterior carrega consigo os genes das explica??es que a precederam. Desta forma, tendo o liberalismo herdado princ?pios de doutrinas por muitas vezes conflitantes, como o utilitarismo e o direito natural, entre outras correntes divergentes (como as que defendiam um Estado forte e as que defendiam um Estado m?nimo), este se subdividiu, ao longo da hist?ria, em vertentes diferenciadas e at? antag?nicas. Destarte, o mesmo liberalismo que, orientado pelos princ?pios do direito natural lutou pela institui??o de crit?rios de reparti??o de lucros e propriedades, tamb?m foi o liberalismo que naturalizou a pobreza e erigiu a funda??o sobre a qual, at? os dias de hoje, est? assentada a propriedade privada. Quanto ao liberalismo orientado pelo princ?pio utilitarista, este exp?s, pela primeira vez ? de acordo com John Stuart Mill em sua obra Da liberdade (1859) ? que o exerc?cio das chamadas liberdades individuais podem trazer consigo consequ?ncias danosas para estratos sociais ou para todo o conjunto da sociedade. De outro modo, este mesmo liberalismo de vertente utilitarista, ciente da linha t?nue existente entre o individualismo e um hedonismo ego?sta, aconselhava os indiv?duos a seguirem seus instintos de consumo (e desse modo, maximizar a sua felicidade individual), posto que este interesse ego?sta conduziria, naturalmente, ao bem-estar e ? felicidade da coletividade (VERGARA, 1992). A doutrina liberal, como j? dito, originou-se de correntes por vezes concorrentes e contrapostas que, ao se associarem, posteriormente, em uma doutrina mais coesa, mantiveram em seu cerne o gene do conflito de ideias e da contradi??o. E a tentativa de se corrigir distor??es oriundas de uma determinada vertente filos?fica, acabava por criar outra lacuna te?rica, como ? o caso da cr?tica feita ao utilitarismo por falta de valores inalien?veis (superiores a um conceito abstrato de felicidade), que inclusive descambou, por parte dos pr?prios utilitaristas, para a ideia subsequente de que existem, portanto, valores ou interesses individuais que se sobrep?em aos interesses de toda uma coletividade. Dessa forma, emergiram, ao longo dos ?ltimos tr?s s?culos, diversos ?liberalismos?, o que explica, em parte, a exist?ncia ainda hoje da diversidade sem?ntica que gravita em torno do termo ?liberal?. Em vista disso, torna-se necess?rio explicitar os conceitos que por vezes at? tiveram papel decisivo na constru??o de institui??es basilares, 27 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado como a Seguridade Social brasileira, que bebeu da fonte dos ?liberais? William Beveridge e John Maynard Keynes ? embora n?o se deva perder de vista que s?o constru??es ou modelos de legitima??o de uma l?gica fundamentalmente capitalista. Em que pesem as diversas vertentes que o constitu?ram, o liberalismo hoje possui um conjunto te?rico resultante de um longo per?odo de expurgo das suas nuances iniciais orientadas para uma coletividade ou por um direito de ?todos? ? propriedade, centrando-se gradualmente nas quest?es mais ligadas ? individualidade ou a inviolabilidade de direitos individuais. Com o tempo, o liberalismo solidificou-se cada vez mais como ?corrente? te?rica, unificando princ?pios de v?rias doutrinas filos?ficas, por?m, orientando-se em dire??o ? corrente do chamado ultraliberalismo de Herbert Spencer e Fr?deric Bastiat e distanciando-se dos liberais cl?ssicos, como Condorcet, Thomas Paine e Turgot12. Em suma, o liberalismo caminhou rumo a uma ideologia que exultava o consumo e a satisfa??o de necessidades materiais individuais, estabelecendo uma transi??o do chamado liberalismo ?tico (orientado por quest?es de ordem moral e de princ?pios) para o liberalismo econ?mico e suas quest?es de ordem econ?mica pr?tica (BELLAMY, 1994). Entretanto, mesmo com as suas muitas revis?es, questionamentos e reinterpreta??es13, ao se homogeneizar como doutrina, o liberalismo uniu, ao mesmo tempo e em um mesmo eixo, princ?pios consolidados e fragilidades te?ricas como foi o caso da chamada ?hierarquia de liberdades? - princ?pio que estabelecia a exist?ncia de limites (a serem respeitados pelo Estado) ? liberdade individual, tendo em vista as suas consequ?ncias nocivas para o conjunto da sociedade. Ao evitar tratar de frente esta quest?o, como bem examinou Bellamy (1994), posto que isto o obrigaria a uma revis?o de suas pr?prias bases filos?ficas, o liberalismo abriu brechas para uma ?relativiza??o? das quest?es relacionadas ? liberdade permitindo a legitima??o do chamado ?individualismo possessivo? (MACPHERSON, 1979) com todas as suas implica??es futuras. Tendo como princ?pio b?sico a liberdade, especialmente a chamada liberdade negativa14 o liberalismo surgiu em contraposi??o ao absolutismo mon?rquico e demais formas de limita??o da liberdade do indiv?duo e concentra??o de poder nas m?os do 12 Liberais que inclusive advogavam em favor de uma pol?tica assistencial (embora n?o se utilizasse esta express?o) ou dever de benefic?ncia, como papel do Estado (VERGARA, 1992). 13 Vide a cr?tica de Stuart Mill ao individualismo de Jeremy Bentham (MACPHERSON, 1979). 14 Que nega qualquer interfer?ncia do Estado na esfera privada, incluindo a prote??o social. 28 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Estado. Teve como principais idealizadores Turgot, Adam Smith, Condorcet, John Stuart Mills, John Locke e Anders Chydenius. Conforme visto, vale lembrar que o liberalismo herdou imprecis?es conceituais e te?ricas que refletem, inclusive, a pr?pria contraditoriedade das ideias e cren?as dos seus idealizadores. John Locke (1689)15, por exemplo, foi um dos primeiros grandes defensores das liberdades individuais e dos direitos civis (liberdade, propriedade e livre iniciativa) e da ideia de que todos os seres humanos s?o, por natureza, livres, ? exce??o de escravos, ?ndios e miser?veis. Para Locke, a liberdade de todos os indiv?duos deveria ser assegurada, desde que n?o interferisse no ?mbito das posses materiais. O Estado assim se constitu?a, contratualmente, para assegurar tal liberdade, demarcada entre os limites da propriedade privada (VERGARA, 1992) Adam Smith (2003), um dos primeiros sistematizadores da teoria econ?mica e um dos fundadores da economia pol?tica, preceituava que a natureza humana tem sede de acumula??o de bens e capital. A busca por essa acumula??o naturalmente recompensaria o trabalho ?rduo e a criatividade, assim como a livre concorr?ncia traria como resultado o predom?nio daqueles que vendessem produtos de melhor qualidade a um menor pre?o. Ao contr?rio de Thomas Hobbes ? para quem ?todo homem era lobo de outro homem? ? Adam Smith nutria um grande otimismo pela sociedade, pois achava inclusive que sentimentos mesquinhos e ego?stas (self-interest) conduziriam naturalmente, por meio de uma m?o-invis?vel, ao bem estar geral e ? riqueza de toda a sociedade (SMITH, 2003). Ainda na contram?o de Hobbes, que via a necessidade de um Estado com poderes absolutos para ?refrear os lobos, que impe?a o desencadear-se dos ego?smos e a destrui??o m?tua? (GRUPPI, 1983, p.12), Smith defendia a exist?ncia de um Estado que apenas assegurasse os direitos individuais de liberdade, propriedade, seguran?a e livre iniciativa, podendo tamb?m agir em setores tido como essenciais ou sem perspectivas de ganhos para a esfera privada, como educa??o, sa?de p?blica, infraestrutura e controle de fluxo de capitais. Observa-se que tanto na ?poca de John Locke (s?culo XV), quanto de Thomas Hobbes e Adam Smith (s?culo XVI), a ideia burguesa de contrato j? se fazia presente. O poder e a abrang?ncia da atua??o do Estado seriam previamente estabelecidos em contratos, que poderiam ser desfeitos caso n?o fossem cumpridos. O indiv?duo era, portanto, primordial a todas as formas de organiza??o humana, pois precedia a sociedade e 15 Autor de A Letter Concerning Toleration (1689) e Two Treatises of Government (1689). 29 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ao pr?prio Estado, instituindo-o e legitimando-o por meio destes contratos. Por essa perspectiva, o liberalismo opunha-se a todas as formas de intoler?ncia e autoridade religiosa que representassem amea?a aos seus valores individuais de liberdade e propriedade. Para os liberais cl?ssicos, as leis e regulamentos sobre a produ??o, formas de comercializa??o, sal?rios e condi??es de trabalho deveriam ser abolidas, pois representariam barreiras ao sucesso empresarial, ? efici?ncia e, consequentemente, ? gera??o da riqueza. Essa regula??o deveria ser feita pelo pr?prio mercado, que alocaria os recursos de forma mais eficiente, ao mesmo tempo em que promoveria maior produtividade e melhores sal?rios aos trabalhadores, dada a maior demanda obtida. Por essa mesma perspectiva, institui??es tradicionais, como a aristocracia, a nobreza, o clero e as corpora??es de of?cio, seriam prejudiciais ? sociedade por concentrarem grande influ?ncia e poder pol?tico. Este poder, por sua vez, se colocaria em posi??o contr?ria aos princ?pios de liberdade individual e livre iniciativa, devendo, ser controlado e limitado por uma estrutura legal e jur?dica. Foi deste princ?pio que, posteriormente, iria escoar um dos principais paradigmas e incoer?ncias da ordem pol?tica liberal: a associa??o (perigosa) entre liberalismo e democracia, como forma de exerc?cio de poder pelo povo. Mas, como assinalou Bobbio (1988), o encontro entre a democracia e o liberalismo surgiu da pr?pria oportunidade de prote??o dos direitos individuais e de propriedade que o exerc?cio democr?tico tornou poss?vel. Efetivamente, a democracia seria a ferramenta pol?tica ideal por meio da qual os cidad?os poderiam controlar e circunscrever o universo de atua??o (e de controle) do pr?prio Estado. Por outro lado, ? interessante notar (apesar de isso n?o fazer parte da tem?tica desta disserta??o) que o liberalismo tamb?m serviu de cimento para a consolida??o do Estado democr?tico (com as suas ?question?veis? vantagens e falhas16), posto que este tamb?m (assim como o liberalismo) entende e percebe a sociedade de acordo com uma concep??o individualista de mundo (BOBBIO, 1988). Outro grande pilar ideol?gico do liberalismo, o da virtude do trabalho, veio a solidificar a ideia de que o mercado conduziria naturalmente ao bem-estar de toda a sociedade. Se o indiv?duo estivesse disposto a trabalhar arduamente, a desenvolver todas as suas capacidades para a obten??o de um ?xito empreendedor, ele seria naturalmente 16 Visto que o exerc?cio democr?tico em uma sociedade essencialmente desigual (tanto em termos econ?micos quanto de acesso ? informa??o) acentua a pr?pria desigualdade e cria uma elite que, se antes era somente econ?mica, agora tamb?m ? pol?tica. 30 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado recompensado. Mas, caso n?o obtivesse ?xito por meio do trabalho, tratar-se-ia, t?o somente de falta de empenho e esfor?o, cabendo-lhe a culpa pelas consequ?ncias que da? adviriam. Dentre estas, a condi??o de pobreza passaria a ser um problema individual a ser equacionado neste mesmo plano. Importante lembrar que a concep??o de pol?ticas e programas assistenciais baseados em contrapartidas e em ?portas de sa?da? assentam-se nesses princ?pios. Por conseguinte, de um conjunto de ideias e princ?pios, muitas vezes contradit?rios, mas que inicialmente nutriam um car?ter essencialmente ut?pico (L?WY, 1987) nos s?culos XVI e XVII, o liberalismo passou, a partir do s?culo XVIII, a ganhar influ?ncia direta e ostensiva, e a transitar de um ?interesse acad?mico para um ativismo ilimitado? (POLANYI, 1988, p.143). Sendo assim, ele passou a requerer defini??es pr?ticas e implementa??es de ordem pol?tica e econ?mica ? inclusive no plano internacional. E tais implementa??es, para darem certo, deveriam orientar-se por tr?s dogmas cl?ssicos baseados na teoria de David Ricardo, a saber: ?o trabalho deveria encontrar seu pre?o no mercado17, a cria??o do dinheiro deveria sujeitar-se a um mecanismo autom?tico (o padr?o-ouro) e os bens deveriam ser livres para fluir de pa?s a pa?s, sem empecilhos ou privil?gios?. (POLANYI, 1988, p.141). No s?culo XIX, o economista David Ricardo em seu livro Princ?pios de economia pol?tica e tributa??o (1817) procurou trazer as ideias de Adam Smith para o plano internacional. De acordo com Ricardo, os pa?ses, assim como os indiv?duos em suas particularidades (e tendo como base um ?nico ambiente econ?mico que, como visto, j? apresentava enormes heterogeneidades que acentuavam as desigualdades), atuariam visando ? obten??o de vantagens rec?procas (MORAES, 2001). Assim, num sistema comercial perfeitamente livre, cada pa?s naturalmente dedica seu capital e seu trabalho ? atividade que lhe seja mais ben?fica. Essa busca de vantagem individual est? admiravelmente associada ao bem universal do conjunto dos pa?ses. Estimulando a dedica??o ao trabalho, recompensando a engenhosidade e propiciando o uso mais eficaz das potencialidades proporcionadas pela natureza, distribui-se o trabalho de modo mais eficiente e mais econ?mico, enquanto pelo aumento geral de volume de produtos difunde-se o benef?cio de modo geral e une-se a sociedade universal de todas as na??es do mundo civilizado por la?os comuns de interesse e interc?mbio (RICARDO, 1982, p.104). 17 Diz respeito ao trabalho como mercadoria, e, portanto, o seu valor seria dado pelas leis naturais de oferta e demanda. Neste sentido, o excedente de m?o de obra teria uma fun??o determinante, pois atuaria de modo a for?ar os sal?rios para baixo. 31 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Do exposto depreende-se que, quando Ricardo argumenta que cada Pa?s naturalmente dedica-se a atividades que lhe sejam mais ?ben?ficas?, j? est? impl?cito que cada na??o se dedicar? a atividade que lhe traga maiores vantagens competitivas, visto que, como apresentado no in?cio deste trabalho, o liberalismo pressup?e competi??o, com resultados sempre de soma-zero, isto ?, sempre com vencedores e perdedores na mesma propor??o. Estas teorias liberais favor?veis ? abertura comercial sem restri??es desconheciam ? ou pelo menos n?o se dedicavam a esta quest?o ? as consequ?ncias de um cen?rio concorrencial entre na??es ricas e na??es com menos recursos. A consequ?ncia direta desta linha argumentativa ? que qualquer eventual fracasso individual seria (dentro de um cen?rio interno de poucos recursos naturais e de baixa capacidade de investimento, entre outras adversidades) transposto para uma na??o inteira; isso porque o destino econ?mico de um pa?s ? determinado pela soma de todos os esfor?os e capacidades de seus cidad?os, excluindo-se uma minoria (em melhores condi??es) que fugiria a esta l?gica. Tal discurso liberal est? t?o fortemente impregnado de idealismo e at? de certa ingenuidade, visto que obviamente n?o haveria a menor possibilidade de sua aplicabilidade nos termos e condi??es propostas, como, de fato, n?o ocorreu. E isso ? verdadeiro, tanto em rela??o a uma suposta socializa??o da riqueza (como consequ?ncia de aspira??es ego?sticas), quanto em rela??o ao laissez-faire18, posto que sem as hist?ricas interven??es estatais, no sentido de se obter equipara??es comerciais, tais desigualdades teriam se acentuado. A este respeito, Polanyi (1988, p.144) ? taxativo. Para ele, n?o havia nada de natural em rela??o ao laissez-faire; os mercados jamais poderiam funcionar deixando apenas que as coisas seguissem o seu curso. Assim como as manufaturas de algod?o ? a ind?stria mais importante do livre com?rcio ? foram criadas com a ajuda de tarifas protetoras, de exporta??es subvencionadas e de subs?dios indiretos dos sal?rios, o pr?prio laissez-faire foi imposto pelo estado... Para o utilitarista t?pico, o liberalismo econ?mico era um projeto social que deveria ser posto em pr?tica para grande felicidade do maior n?mero de pessoas; o laissez- faire n?o era o m?todo para atingir alguma coisa, era a coisa a ser atingida. ? verdade que a legisla??o nada podia fazer diretamente, a n?o ser abolir as restri??es prejudiciais, mas isto n?o significava que o governo n?o podia fazer alguma coisa, ainda que indiretamente. Pelo contr?rio, o liberal utilitarista via no governo o grande agente para atingir a felicidade (Grifo adicionado). Vale frisar, em complemento, que tal participa??o estatal, pelo menos at? meados do s?culo XIX, deveria ser restrita ? esfera burocr?tica e administrativa, pois at? ent?o, a 18 A express?o francesa laissez-faire (deixar fazer, em portugu?s), associada ao liberalismo ? atribu?da ao Marqu?s de Argenson por volta de 1751 (KEYNES, 1936). 32 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado influ?ncia pol?tica estatal deveria ser limitada ao m?ximo, tendo em vista a pouca participa??o pol?tica liberal neste per?odo. Entretanto, a influ?ncia ideol?gica utilitarista de Jeremy Bentham materializada em seu livro Princ?pios da Moral e da Legisla??o (1789), come?ava a preponderar, visto que, conforme indica Polanyi (1988), contrariamente ao que afirmam os liberais, o laissez-faire se deu com uma participa??o ativa do Estado; os ?administradores tinham que estar sempre alertas para garantir o funcionamento livre do sistema? (POLANYI, 1988, p.146). O liberalismo, ao longo de sua hist?ria, e at? em virtude da capacidade intelectual e de convencimento de seus idealizadores, se caracterizou tamb?m pelo distanciamento entre as suas teorias, a realidade e os condicionantes hist?ricos, a despeito do seu propalado car?ter emp?rico. Por?m, mais do que isso, as suas cren?as e argumentos sempre se revestiram de forte apar?ncia de moralidade e justi?a. A partir do momento em que se esgotavam as capacidades explicativas de um determinado conceito, criavam-se outros buscando fechar tais lacunas. Neste sentido, o utilitarismo de Jeremy Bentham, apresenta o liberalismo como sendo a alternativa moralmente correta, e argumenta que todas as decis?es deveriam visar o bem estar e a felicidade geral, mesmo que isto represente o infort?nio de uns. Com efeito, a doutrina utilitarista foi muito eficiente como instrumento de convencimento j? que, como o liberalismo se propunha a buscar o bem comum, o correto e o justo, qualquer decis?o (principalmente por parte do Estado) em contr?rio seria uma viola??o de tais preceitos. Talvez um dos maiores problemas conceituais do liberalismo e, contraditoriamente o seu maior trunfo, seja a sua associa??o (muitas vezes intencional) com o conceito de democracia. Esta confus?o se deve, em grande medida, pelas altera??es institucionais provocadas pelos pr?prios liberais visando a sua participa??o pol?tica ou mesmo a defesa dos direitos individuais e de propriedade. No bojo das defini??es e delimita??es de pap?is do governo, est? tamb?m a necessidade de cria??o de mecanismos e dispositivos que, ao mesmo tempo em que limitem a atua??o estatal, propiciem maior poder de participa??o ?s esferas n?o governamentais. Para Bobbio (1986), esta ideia teria sido desenvolvida introdutoriamente por Benjamin Constant no livro A liberdade dos antigos comparada com a liberdade dos modernos, segundo o qual a express?o da modernidade de um povo seria uma liberdade em interc?mbio com o Estado, expressa pela liberdade civil e pela liberdade pol?tica via 33 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado representa??o. Esta concep??o liberal se diferenciava da vis?o rousseauniana19 de democracia direta, tida para Constant como a liberdade para os antigos. Trata-se, esta indica??o, de um exemplo concreto de como o pensamento liberal sequestrou princ?pios da teoria da democracia, adaptando-os de acordo com os seus intentos pol?ticos e ideol?gicos. Portanto, nada mais ?bvio que o sistema representativo fosse o modelo a ser alcan?ado, visto que este era o ?nico compat?vel com o Estado liberal. Isso explica o fato de Rousseau ser uma figura pol?mica e, em certa medida, antip?tica nas hostes liberais; pois, apesar de ele ter uma ideia otimista do indiv?duo, ao contr?rio de Hobbes, pregava que precisaria sempre haver liberdade associada ? igualdade, visto que a sociedade ?, em seu conjunto, soberana; e esta soberania tinha que ser exercida coletivamente. Neste sentido, n?o deveria haver separa??o entre sociedade e Estado, o que eliminaria a necessidade de separa??o dos poderes estatais, proposta pelo tamb?m liberal Montesquieu (o Legislativo, representado pelo parlamento; Executivo representado pelo governo e o Judici?rio) como forma de limitar os poderes de cada inst?ncia do Estado (GRUPPI, 1983). A dificuldade em dissociar liberalismo de democracia tamb?m se deve ?s conquistas liberais, que, de certa maneira, tamb?m foram conquistas no ?mbito democr?tico visto que ampliaram a participa??o popular via amplia??o das institui??es representativas (parlamentos); criaram dispositivos jur?dicos, como o habeas corpus; institu?ram e expandiram o sufr?gio, entre outros ganhos. Vale dizer, o liberalismo utilizou-se da democracia, na forma que mais lhe convinha, a representativa, visando criar uma base pol?tica; e em virtude disso passou a ser erroneamente associado ? democracia, como se fossem equipar?veis e equivalentes. Entretanto, para que uma experi?ncia democr?tica seja digna dessa qualifica??o, ? necess?rio que se d? um consistente passo adiante em dire??o ? vontade da maioria, um passo que, para os liberais, se aproximaria cada vez mais de um regime totalit?rio e desp?tico, o que demonstra, segundo Wood (2003), que: o capitalismo ?, na ess?ncia, incompat?vel com a democracia. E ? incompat?vel n?o apenas no car?ter ?bvio de que o capitalismo representa o governo de classe pelo capital, mas tamb?m no sentido de que o capitalismo limita o poder do ?povo? entendido no estrito significado pol?tico. N?o existe um capitalismo governado pelo poder popular, n?o h? 19 De Jean-Jacques Rousseau autor de Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens(1755) e Do Contrato Social (1762). 34 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado capitalismo em que o povo tenha preced?ncia sobre os imperativos do lucro e da acumula??o, n?o h? capitalismo em que as exig?ncias de maximiza??o dos lucros n?o definam as condi??es mais b?sicas da vida (pp.7/8). 1.2 - O ide?rio neoliberal - origens e orienta??es Partindo-se do pressuposto de que o neoliberalismo, ou o novo liberalismo (neo = novo) n?o significa uma ruptura com o liberalismo cl?ssico, considera-se que ele possui as mesmas imprecis?es te?ricas de seu antecessor, al?m de representar o resgate das ideias daquele em um momento de perda de legitimidade dos seus preceitos e de paulatina expans?o do intervencionismo estatal a partir do final do s?culo XIX. Este per?odo tamb?m foi marcado por grandes conflitos pol?ticos entre na??es e crises financeiras que chegariam ao seu ?pice com a grave crise de 1929. Nesse momento de vulnerabilidade e de busca de refer?ncias que dessem conta das quest?es que se apresentavam surgiu, paralelamente ao New Deal20 norte americano, a figura do economista brit?nico John Maynard Keynes ? com a publica??o, em 1936, de seu livro Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, no qual o autor questiona as incertezas decorrentes do investimento privado e analisa objetivamente os mecanismos das pr?ticas econ?micas. Disso ganhou evid?ncia a figura de um Estado capaz de regular a oferta e demanda de produtos, a concorr?ncia e os n?veis de emprego, controlando, dessa forma, as inseguran?as inerentes ao sistema21. Entretanto, Keynes n?o visava uma ruptura com o sistema capitalista, mas sim o seu aprimoramento, seja socializando o consumo (e n?o a produ??o), seja minimizando, por meio da interven??o estatal, as distor??es oriundas das rela??es entre emprego, consumo, investimento e poupan?a. No entanto, antes desse per?odo, Keynes j? era conhecido no meio econ?mico, gra?as, principalmente, ? publica??o de The End of Laissez-faire, de 1926. Esta obra representa uma cr?tica aos principais pilares do liberalismo cl?ssico, entre eles o de que a busca pelo interesse individual levaria, naturalmente, ? obten??o de ganhos para a 20 O New Deal foi a denomina??o dada ao conjunto de medidas introduzidas pelos Estados Unidos, entre 1933 e 1937, sob o governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana ap?s a crise de 1929. 21 Um sistema que, segundo Keynes, n?o visa a produ??o de bens e servi?os, mas a produ??o de mais dinheiro, t?picos de uma economia monet?ria. E que tamb?m est? a merc? n?o de quest?es meramente matem?ticas ou probabil?sticas, mas de expectativas, vontades, desejos e ?nimos dos detentores dos meios de produ??o (LIMA, 1984). 35 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado sociedade, ou a pr?pria lei de Jean Baptiste Say22. De fato, Keynes chegava a ser um cr?tico um tanto ?cido e ir?nico dos c?nones liberais, a despeito da sua forma??o e cren?a tamb?m burguesas (LIMA, 1984). Na verdade, ele era o que se convencionou chamar de liberal humanista, por defender o coletivismo, rejeitar as ideias utilitaristas e apoiar pr?ticas como a distribui??o de uma renda b?sica23, de aplica??o de impostos progressivos, e de interven??o do Estado na garantia de servi?os essenciais (como sa?de e educa??o). Ap?s mais de uma d?cada de crescente influ?ncia nos sal?es ministeriais e presidenciais de v?rios pa?ses (entre eles os Estados Unidos, de Roosevelt), suas ideias se consolidaram no per?odo da Segunda Guerra Mundial, durante o qual foi o grande articulador da pol?tica econ?mica do primeiro ministro ingl?s Winston Churchill. Keynes dava o embasamento econ?mico para um movimento silencioso, iniciado no s?culo XIX, de ascens?o dos ideais social-democratas, de amplia??o do poder de barganha dos sindicatos, de extens?o dos direitos civis e pol?ticos em v?rias partes do mundo (MARSHALL, 1967) e de desestrutura??o da ordem capitalista vigente, que incentivava a mudan?a nos m?todos de produ??o (PREZEWORSKI, 1991). Com efeito, este componente econ?mico serviu de base para o ?componente social? do Welfare State, amplamente disseminado ap?s o surgimento do Relat?rio Beveridge (Report on Social Insurance and Allied Services) na Inglaterra no ano de 1942. Este relat?rio, elaborado por uma comiss?o interministerial inglesa24 coordenada pelo economista William Beveridge, propunha uma revis?o no modelo fragmentado de seguridade social existente na Inglaterra, na qual pol?ticas de qualidade e de ?mbito universal fossem contempladas nas ?reas da sa?de, educa??o, trabalho, ao lado da previd?ncia e da assist?ncia social25 (PEREIRA- PEREIRA, 2008). A atua??o conjunta de todos estes fatores contribuiu para a introdu??o de um novo padr?o de sociabilidade, caracterizado como a ?era de ouro do Welfare State?. De forma paralela, mas ao mesmo tempo discreta, os idealizadores da retomada liberal iam, paulatinamente, estabelecendo suas bases de influ?ncia, capitaneados por figuras ilustres da escola econ?mica austr?aca como Ludwig von Mises e, posteriormente, Frederick August von Hayek, que, em 1947, criou a Mont Pelerin Society. Entre os que 22 Jean Baptiste Say formulou a lei de Say, que postulava, segundo Keynes, que toda oferta cria sua pr?pria demanda. 23 Em possibilidades para nossos netos, de 1930 (SILVEIRA, 2002). 24 Committee on Social Insurance and Allied Services 25 Ver ressalvas sobre o Relat?rio, tanto em rela??o ?s incoer?ncias de seu texto quanto aos problemas de sua execu??o em Pereira-Pereira (2008). 36 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado faziam parte desta sociedade e pregavam o retorno das ideias de livre mercado estavam, al?m de Mises e do pr?prio Hayek, o economista Milton Friedman, da Universidade de Chicago e o fil?sofo austr?aco Karl Popper (HARVEY, 2008). Ano ap?s ano, este n?cleo de influ?ncias foi se expandindo, tendo como apoio fundamental empres?rios e l?deres corporativos infuentes, al?m de alguns estratos governamentais. Ademais, a ?amea?a comunista? que se alastrava pelo globo, e que inclusive se juntou aos ?aliados?26 durante a 2? grande guerra, funcionou como um catalizador para a amplia??o deste novo movimento de questionamento e oposi??o. Em consequ?ncia, al?m da crescente influ?ncia no mundo empresarial, e, em certa medida, no mundo pol?tico, diversos institutos de ensino e pesquisa se formaram, como o Institute of Economic Affairs, de Londres, a Heritage Foundation, de Washington e a Universidade de Chicago, da qual Milton Friedman pertencia. At? meados dos anos 1970, o neoliberalismo j? possu?a uma corrente te?rica mais homog?nea e bem difundida que a do seu predecessor (liberalismo), tendo sido agraciada com dois pr?mios Nobel de economia (em 1974, conferido ? Hayek, e, em 1976, ? Friedman), o que constituia um term?metro da tend?ncia acad?mico-cient?fica e pol?tica nos anos 1970. Os anos setenta do s?culo XX foram conturbados e emblem?ticos, pois representaram um per?odo de ruptura com o padr?o de acumula??o keynesiano/fordista. Mandel em seu livro A Crise do Capital, publicado no Brasil em 1990, fornece um detalhado diagn?stico deste per?odo e de seus ciclos recessivos, estabelecendo par?metros de an?lise, n?o apenas de seus determinantes econ?micos, mas de todo um conjunto de elementos que exp?e fragilidades nas bases estrututais do capitalismo. Para Mandel (1990), a crise de 1974/75 foi uma crise cl?ssica de superprodu??o. Com esta afirma??o, procura ser enf?tico e direto ao dissoci?-la da recorrente liga??o desta com as crises do petr?leo, de 1973 e 1979, ou com o alto custo dos sal?rios. O autor aponta ainda que tal momento foi a ?conclus?o de uma fase t?pica de queda da taxa m?dia de lucros. Tal queda ? claramente anterior ao encarecimento pronunciado do petr?leo depois do desencadeamento da Guerra do Yon Kippur27 (MANDEL, 1990, p.23). Al?m disso, do outro lado da balan?a pesou a grave crise fiscal pela qual passavam as economias centrais, que enfrentavam uma dificuldade crescente em financiar 26 Grupo de pa?ses (encabe?ados pelos Estados Unidos, Inglaterra e Uni?o Sovi?tica) que se opuseram ao Eixo (Alemanha, Jap?o e It?lia) durante a Segunda Guerra Mundial. 27 Guerra iniciada em 1973 entre uma coaliz?o de pa?ses ?rabes (Egito, S?ria e Iraque) contra Israel. 37 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado os seus programas sociais mais demandados por uma massa trabalhadora em crescente empobrecimento. Isso, obviamente, teve reflexos na sustenta??o or?ament?ria dos pa?ses centrais, que viram a sua base tribut?ria se reduzindo pelo lado dos trabalhadores (devido ? queda da renda real) e tamb?m pelo lado do capital (por meio de pr?ticas cada vez mais adotadas de sonega??o e pol?ticas que desoneravam o lucro e os mercados financeiros). Em suma, a crise fiscal apresentou-se como resultado de uma rela??o que ? estruturante do capitalismo monopolista, a saber: o capital, para prosperar, sempre busca a socializa??o dos custos de reprodu??o da classe trabalhadora ao mesmo tempo em que mant?m o excedente de sua produ??o sob a ?gide da esfera privada, o que gera impactos negativos sobre o Estado (O?CONNOR, 1977). A crise de 1970 se deu tamb?m em fun??o da rigidez do modelo produtivo vigente e da baixa capacidade de investimentos dos pa?ses. Isso colocou em d?vida a continuidade do padr?o keynesiano-fordista, tendo em vista a sua apregoada incapacidade em fornecer respostas r?pidas, ?geis e geograficamente flex?veis ?s instabilidades econ?micas. E tais respostas se faziam ainda mais necess?rias dadas ? nova conjuntura global de mercados em franco processo de interliga??o. Outros determinantes hist?ricos tamb?m merecem considera??o, como, por exemplo, o rompimento dos acordos realizados em Bretton Woods, o que representou uma forma dos pa?ses signat?rios continuarem competivivos econonomicamente. Em meio a j? grande dificuldade para manterem os n?veis inflacion?rios sob controle, combinado a um forte processo recessivo, os dois choques do petr?leo (em 1973 e 1974) surgiram para dar o golpe final nos anos de prosperidade do capitalismo regulado (MORAES, 2001). No plano pol?tico, tais acontecimentos fizeram com que medidas dr?sticas fossem desenhadas, inicialmente, na Gr? Bretanha e, posteriormente, nos Estados Unidos. Segundo Harvey (2008, p. 31-32), em maio deste ano [1979], Margareth Thatcher foi eleita na Gr? Bretanha com a firme obriga??o de reformar a economia. Sob a influ?ncia de Keith Joseph, um publicista e polemista bem ativo, com fortes v?nculos com o Neoliberal Institute of Economic Affairs, ela aceitou o abandono do keynesianismo e a ideia de que as solu??es monetaristas do lado da oferta eram essenciais para curar a estagfla??o que marcara a economia brit?nica naquela d?cada. Thatcher reconhecia que isso significava nada menos que uma revolu??o em pol?ticas fiscais e sociais, e demonstrou imediatamente uma forte determina??o de acabar com as institui??es e pr?ticas pol?ticas do Estado social democrata que se consolidara no Pa?s a partir de 1945. Isso envolvia enfrentar o poder sindical, atacar todas as formas de solidariedade social, desmantelar os compromissos do Estado de bem-estar social, privatizar empresas p?blicas, reduzir impostos... Para Thatcher, todas as formas de solidariedade social tinham de ser 38 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado dissolvidas em favor do individualismo, da propriedade privada, da responsabilidade individual e dos valores familiares. J? nos Estados Unidos, Paul Volker assumiu o comando do Banco Central dos Estados Unidos (FED) em julho de 1979, e no curso de alguns meses mudou drasticamente a pol?tica monet?ria. O FED a partir de ent?o assumiu a lideran?a na luta contra a infla??o, independentemente das consequ?ncias (em particular no que se refere ao desemprego). Ent?o, em 1980, Ronald Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos e, armado com um carisma pessoal, impeliu seu Pa?s a revitalizar a economia, ao apoiar as decis?es de Volker no FED e adicionar sua pr?pria mistura particular de pol?ticas destinadas a restringir o poder do trabalho, desregular a ind?stria, a agricultura e os setores extrativistas, assim como liberar os poderes das finan?as tanto internamente como no cen?rio mundial (HARVEY, 2008, p.11). De todo modo, a maior consequ?ncia deste per?odo de reflex?es e reavalia??es foi que estas provocaram, de acordo com Harvey (2008, p.11), um processo ?de ruptura revolucion?ria na hist?ria social e econ?mica do mundo?. Esta ruptura, por seu turno, teve como mola propulsora o resgate28 das ideias liberais, sob a alcunha de (neo)liberalismo. A primeira experi?ncia concreta, de um modelo estatal estruturado em bases neoliberais, ocorreu no Chile, ap?s o golpe sofrido pelo ent?o presidente Salvador Allende, golpe este planejado pelos Estados Unidos e executado pela Central Intelligence Agency (CIA) e as for?as armadas americanas. Ironicamente, o governo ent?o implantado, encabe?ado pelo General Augusto Pinochet, empreendeu uma s?rie de violentas reprimendas contra todas as formas de organiza??o popular, ao melhor estilo ditatorial. Paradoxalmente, Pinochet cercou-se de especialistas formados pela Escola de Chicago (de Milton Friedman), que colocaram em pr?tica todos os receitu?rios propostos pela nova concep??o te?rica, quais sejam, desestrutura??o e desregula??o das rela??es de trabalho, abertura econ?mica, privatiza??es, elimina??o da seguridade social p?blica, entre outras medidas do receitu?rio neoliberal (HARVEY, 2008). Tudo isso (...) ofereceu ?teis dados para suportar a subseq?ente ado??o do neoliberalismo na Gr? Bretanha (sob Thatcher) e nos Estados Unidos (sob Reagan) nos anos 1980. N?o pela primeira vez, uma experi?ncia brutal realizada na periferia transformou-se em modelo para a formula??o de pol?ticas no centro (HARVEY, 2008, p.18-19). 28 O ?resgate? aqui mencionado diz respeito ao seu momento de implementa??o pol?tica ostensiva e, de certa forma, institucionalizada, visto que foi encabe?ada pelos dois nomes mais influentes naquele momento ? Tatcher e Reagan ? (da? a express?o ?com influ?ncia pol?tica nunca antes vista?). Como for?a te?rica pode-se dizer que o marco hist?rico simb?lico de surgimento do neoliberalismo foi em 1947 com a cria??o da Mont Pelerin Society (HARVEY, 2008, p.29). 39 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Avan?ando em sua an?lise sobre as crises capitalistas, Mandel (1990) prop?s uma abordagem que englobasse todas as suas causas hist?ricas e estruturais (econ?micas, pol?ticas, sociais, culturais e ambientais). E nesta mesma linha, M?sz?ros (2002), afirma que as crises ocorridas na d?cada de 1970 exp?em um est?gio do sistema capitalista no qual suas defici?ncias podem apenas ser mascaradas, n?o contidas, posto que est?o nas suas pr?prias ra?zes. Para este autor, o momento hist?rico no qual as ideias neoliberais consolidaram-se pol?tica e economicamente foi, antes de tudo, um momento de mudan?a de paradigmas e de formas de se enxergar o mundo. Foi inclusive um momento no qual as pr?prias crises abandonaram as suas caracter?sticas c?clicas (decorrente de flutua??es na atividade econ?mica e modifica??es na esfera produtiva) para tornarem-se permanentes (M?SZ?ROS, 2002). Nas grandes mudan?as ocorridas, que culminaram na ascens?o neoliberal, ? fundamental frisar uma caracter?stica marcante deste conjunto ideol?gico e pol?tico que coincidiu com o contempor?neo momento de mundializa??o ou globaliza??o pelo alto, no dizer de Ianni, bem como de rompimento de limita??es de ordem espacial: o que Harvey (2005, p. 31) apresenta como sendo o novo imperialismo ou o imperialismo capitalista, assim definido: projeto distintivamente pol?tico da parte de atores cujo poder se baseia no dom?nio de um territ?rio e uma capacidade de mobilizar os recursos naturais e humanos desse territ?rio para fins pol?ticos, econ?micos e militares e ?os processos moleculares de acumula??o do capital no espa?o e no tempo? (o imperialismo como um processo pol?tico-econ?mico difuso no espa?o e no tempo no qual o dom?nio e o uso do capital assumem a primazia). Vis?o semelhante ? apresentada por Gorz (2004) sobre o papel destes novos Estados supranacionais, isto ?, na??es que transcenderam as barreiras impostas pelos limites territoriais, geogr?ficos, pol?ticos e culturais. No entanto, Gorz (2004) ressalta uma emancipa??o capitalista do mundo da pol?tica por meio deste novo modelo de Estado, a servi?o das ambi??es do mercado, quando, na realidade, os limites entre o p?blico e o privado est?o cada vez mais t?nues, assim como os limites entre o pol?tico e o empresarial. Para ele, n?o apenas o pol?tico se converteu em capitalista, mas o capitalista em pol?tico. Mas, certamente a maior diferen?a entre o neoliberalismo e a sua corrente origin?ria, o liberalismo, seja a participa??o neoliberal t?o profunda e estrutural em todas as esferas da atividade humana. 40 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Efetivamente, o neoliberalismo se tornou t?o influente e agressivo em suas abordagens que at? criou o seu pr?prio modelo de sociabilidade. Este modelo atende pelo nome de sociedade do consumo. Mas, este sistema (visto que ? um sistema de valores, cren?as, ideias e teorias) ? t?o eficiente que faz com que seja dif?cil perceber, a olhos menos politizados, como esta decantada liberdade ? mercadoriz?vel ? visto que s? existe na medida em que h? capacidade econ?mica para tal. Trata-se, portanto, de uma liberdade para quem possui meios financeiros para obt?-la; ou, idealmente, de uma liberdade estratificada e segmentada para satisfazer uma infinidade de op??es individualizadas. A esse respeito, Wacquant (2007) assinala que, para muitos indiv?duos que percebem esta l?gica perversa, existem duas sa?das: revoltar-se positivamente e lutar contra ela (desde que haja condi??es para tal); ou, ent?o, buscar, ? for?a, o que n?o foi poss?vel pelas vias consideradas legais. Por?m, para casos como este, o mundo neoliberal erigiu um aparato coercitivo e punitivo sem par na hist?ria. Assim, em vez de o capitalismo, em sua vertente neoliberal, simplesmente prometer uma vida de luxos e riquezas, via trabalho ?rduo e tino para os neg?cios ? um objetivo que muitas vezes n?o era facilmente poss?vel de ser propagandeado e transmitido ? sociedade no tempo do liberalismo cl?ssico ? hoje basta olhar para o lado e observar os ?ltimos lan?amentos tecnol?gicos e de entretenimento. O novo padr?o de sociabilidade capitalista faz com que todos sejam porta-vozes do seu modelo de ?sociedade para o consumo?. At? mesmo a ci?ncia sucumbiu29 ? influ?ncia neoliberal e, atualmente, o seu papel ? question?vel como ve?culo do progresso humano. Os seus objetivos primordiais agora se confundem com outros, nem t?o nobres assim, como o lucro no mercado de a??es, com as patentes ou mesmo com uma tecnologia que aumente a produtividade (sem que isso se traduza em menos esfor?o de trabalho, pelo contr?rio) e renove as prateleiras do varejo. As similaridades30 com o liberalismo tamb?m saltam aos olhos e merecem considera??es. O objetivo ainda ?, em termos gerais, o mesmo; os mecanismos talvez 29 No per?odo da segunda guerra mundial, George Merck, fundador da hoje gigante farmac?utica Merck, dizia que os medicamentos n?o s?o criados para o lucro e sim para auxiliar o ser humano. Em 1976, Henry Gadsden, sucessor de Merck disse ? revista Fortune que sonhava que sua empresa vendesse para todas as pessoas, saud?veis ou doentes, como faz a empresa de chicletes Wrigley (ST-ONGE, 2006). 30 Embora as diferen?as tamb?m sejam consider?veis entre um e outro conjunto te?rico. A principal delas ? que o Liberalismo se caracteriza mais como um tronco composto de ideologias e conjuntos filos?ficos diversos, enquanto que o neoliberalismo representaria uma ramifica??o deste tronco. Com efeito, este ?ltimo possui suas ra?zes no ultraliberalismo, corrente do s?culo XIX, composta de te?ricos como Fr?d?ric Bastiat na Fran?a e Herbert Spencer na Inglaterra (VERGARA, 1992). O liberalismo, utilizando o termo mais geral, pode comportar ideias de interven??o estatal em certos setores, assim como nenhuma interven??o dependendo da vertente. Algumas vertentes at? nutriam uma certa proximidade com o socialismo, como o 41 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado tenham mudado para se adaptar aos novos tempos, mas os seus oponentes apenas atendem por outras alcunhas. Em vez do regime absolutista, tem-se o Estado socialdemocrata e o Estado de Bem-Estar; no lugar das corpora??es de of?cio e institui??es mercantilistas, t?m- se os sindicatos e todas as formas de mobiliza??o social. O neoliberalismo n?o tem apre?o ?s atuais elites aristocr?ticas e engessadas, do mesmo modo que o liberalismo n?o tinha pela antiga aristocracia. A figura a ser exaltada ? a do empreendedor, que ? arrojado, criativo e flex?vel, seguindo as demandas do mercado. O neoliberalismo, como proposta de retomada hegem?nica liberal, conseguiu voltar ao cen?rio econ?mico mundial com uma for?a e apelo nunca visto em um espa?o t?o curto de tempo; e, ao mesmo tempo, conseguiu (e neste ponto foi at? mais eficiente que a sua vers?o cl?ssica), se apropriar de quase todos os espa?os de influ?ncia pol?tica. Enquanto o liberalismo cl?ssico tinha que barganhar espa?os via interven??es jur?dicas e constitucionais, o neoliberalismo conseguiu n?o s? angariar um forte poderio pol?tico, mas tamb?m coercitivo ? penal, policial e militar ? a ?gerir? a pr?pria mis?ria produzida. 1.3 - O papel dos organismos multilaterais ? as g?meas de Bretton Woods Antes de qualquer discuss?o a respeito das origens, influ?ncias e mudan?as hist?ricas observadas no comportamento de agentes multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, ? fundamental que sejam apresentados os fatores estruturais e hist?ricos que levaram a cabo a reuni?o de Bretton Woods, realizada na cidade de mesmo nome, nos Estados Unidos em julho de 1944. Este era um momento de preocupa??es com um poss?vel retorno de cen?rios depressivos, como antes da 2? guerra. Mas, independentemente dos temores e medos de um passado recente, o encontro teve como estopim a insatisfa??o com o padr?o ouro e com o mecanismo de c?mbio livre. As reuni?es, que contaram com a participa??o de representantes da Alian?a das Na??es Unidas, tiveram na verdade um car?ter de conclus?o de debates j? consolidados sobre como criar mecanismos de ordenamento e est?mulo ? atividade econ?mica caso de Thomas Paine, Alguns te?ricos, poderiam pertencer a uma determinada corrente mas nutrir simpatia por ideias diferenciadas, como o caso do pr?prio liberal cl?ssico Adam Smith. J? o Neoliberalismo, justamente por se portar como uma vertente do liberalismo, e n?o como uma revis?o liberal, consoante o senso comum, possui uma unicidade de ideias maior, e justamente por isso uma unidade pol?tica maior. Talvez a principal diferen?a entre uma corrente e outra, seja o fato de que o Neoliberalismo insere-se em uma ordem pol?tica e global diferenciada (tendo tido papel fundante nisso). Al?m disso, o neoliberalismo rompeu as fronteiras territoriais, os espa?os de soberania e, principalmente, imp?s o seu modo de pensar de tal forma e com tal velocidade que este se converteu em um padr?o de sociabilidade de ?mbito mundial. 42 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado internacional. Isso expunha uma caracter?stica contradit?ria da din?mica econ?mica at? ent?o, pois, enquanto a reduzida abertura econ?mica (em compara??o com os dias de hoje) diminu?a a amplitude das crises recessivas31 (MANDEL, 1990), representava, em contrapartida, um entrave a medidas de estimulo ? atividade econ?mica. Neste sentido, duas propostas foram apresentadas previamente ? Confer?ncia, sugerindo normas e estruturas burocr?ticas de ordenamento das rela??es econ?micas e comerciais entre os pa?ses: 1 ? a primeira delas, de autoria de Keynes, visava a cria??o de regras e institui??es (como a C?mara de Compensa??es Internacionais) que equalizassem o sistema de pagamentos internacional e visassem a manuten??o dos n?veis de emprego. 2 ? a segunda, a proposta americana, de autoria do economista Harry Dexter White, era um reflexo das ambi??es norte-americanas, e visava apenas salvaguardar a economia dos Estados Unidos de pr?ticas concorrenciais restritivas (FOSCHETE, 2001). Esse plano consistia na cria??o de um organismo que funcionaria como um Conselho, no qual as decis?es de ordem cambial dos pa?ses membros passariam pelo seu crivo. Al?m disso, esta institui??o forneceria (e nisso h? uma proximidade com a proposta de Keynes) socorro em momentos de d?ficits na balan?a de pagamentos. Como diferen?a fundamental em rela??o ? proposta de Keynes, o chamado plano White, por n?o ter preocupa??es com o n?vel de liquidez da economia, propunha a consolida??o o d?lar como o meio de pagamentos internacional padr?o. Tendo como vencedora a proposta americana, instituiu-se, ent?o, o FMI, sendo que reuni?es posteriores definiram a sua estrutura organizacional. Tal Fundo tem, atualmente, com 187 membros, sendo que as decis?es s?o tomadas pela sua Assembl?ia ou Conselho de Governadores, compostos por representantes de cada pa?s membro. Abaixo da Assembl?ia encontra-se a Diretoria Executiva, com 24 representantes eleitos pelos pa?ses associados ou grupos de pa?ses. O Conselho de Governadores tamb?m ? assessorado por um Conselho Provis?rio ou Interino, constitu?do de 24 representantes e um Comit? para o Desenvolvimento, composto igualmente por 24 membros, entre representantes do FMI e do Banco Mundial. H? uma regra t?cita de que o Fundo deva ser presidido sempre por um 31 A esse respeito Mandel (1990) afirmou que ?A dessincroniza??o do ciclo industrial no per?odo de 1948/68 tinha reduzido a amplitude das recess?es. Uma queda na produ??o e na demanda internas dos Pa?ses golpeados por uma recess?o foi compensada toda vez por uma expans?o das exporta??es para os Pa?ses que escaparam da crise. No entanto, em 1974/75, pelo contr?rio, a sincroniza??o internacional dos movimentos conjunturais nos principais Pa?ses imperialistas amplificou o movimento de retra??o da atividade econ?mica? (p. 10-11). 43 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado europeu. Atualmente a Diretoria Executiva (que ? quem o preside o Fundo) ? comandada pela francesa Christine Lagarde. O sistema de votos obedece a um esquema de ?cotas? no qual a sua quantidade ? definida pela envergadura do Pa?s, avaliada pelo tamanho do seu PIB e pelos dados da balan?a de pagamentos e de reservas cambiais. Mas, o que determina o poder de voto de cada cota (cuja unidade monet?ria correspondente ? chamada de Direito Especial de Saque ou SDR), ? a contribui??o realizada para o Fundo. Verifica-se, assim, que a pr?pria estrutura organizacional do ?rg?o aponta tend?ncias referentes ? nacionalidade dos poderes envolvidos, al?m do ?bvio direcionamento dado aos Estados Unidos (com 17% do total do fundo). No tocante ao sistema de cotas, a diretoria executiva ? composta de 8 membros permanentes, entre os principais cotistas, sendo que somente o representante norte-americano possui direito a veto. Um aspecto relevante a ser considerado na hist?ria do FMI ? que a sua biografia pode ser dividida em ?antes dos anos 1970 e ap?s os anos 1970?, visto que, ap?s este per?odo, o Fundo deixou de lado o pragmatismo caracter?stico das suas administra??es. Assim, se antes as suas interven??es visavam sanar distor??es na balan?a de pagamentos de curto prazo dos Pa?ses (inclusive dos maiores cotistas), ap?s este marco hist?rico este passou a desempenhar mais o papel de supervisor financeiro internacional (CARVALHO; KREGEL, 2007), tornando-se um meio de os pa?ses centrais, notadamente os Estados Unidos, implementarem as suas pol?ticas expansionistas junto aos pa?ses perif?ricos. Diante dessa nova realidade, existem agora as chamadas condicionalidades estruturais, de acordo com as quais os Pa?ses que tomam empr?stimos comprometem-se a realizar profundas mudan?as institucionais e econ?micas. A segunda institui??o criada na Confer?ncia de Bretton Woods foi o Banco Internacional da Reconstru??o e Desenvolvimento ? BIRD, tamb?m conhecido como Banco Mundial32. Com car?ter de Banco de Fomento, este nasceu com vistas a auxiliar tecnicamente, ou financiar, projetos de desenvolvimento e reconstru??o dos pa?ses afetados pela 2? Guerra Mundial. Entretanto, ao contr?rio do que apontaria uma an?lise menos aprofundada, o Banco Mundial n?o foi suplantado pelo Plano Marshall33 em sua tarefa 32 Em associa??o ao nome do Grupo (Grupo Banco Mundial). Para melhor entendimento, este estudo utilizar? somente o termo ?Banco Mundial?. 33 Programa desenvolvido pelos Estados Unidos, em 1947, que tinha como objetivo a recupera??o das na??es europ?ias aliadas da Segunda Guerra Mundial. 44 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado inicial; mas, sim, promoveu junto ao governo norte-americano um redirecionamento das suas prioridades com vistas a, n?o apenas servir de farol ? pol?tica externa dos Estados Unidos e ao seu projeto hegem?nico, mas tamb?m visando criar uma estrutura de atua??o que fosse, ao mesmo tempo, rent?vel e cr?vel aos olhos de Wall Street (MASON; ASHER, 1973; CASTRO, 2009). Com efeito, o Banco Mundial capta os seus recursos da venda de t?tulos no mercado financeiro, bem como oferece empr?stimos co-financiados por institui??es privadas, o que evidencia a sua rela??o com os mecanismos do capital e da especula??o financeira internacional. O BIRD ? um bra?o do Grupo Banco Mundial, com sede em Washington, nos Estados Unidos, o qual ? composto de mais quatro ag?ncias: a Associa??o Internacional de Desenvolvimento (AID ? criada em 1960); a Ag?ncia Multilateral de Garantia de Investimentos (AMGI); a Corpora??o Financeira Internacional (CFI ? criada em 1951) e o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos. Na mesma linha do FMI, as na??es mais ricas s?o as que possuem o maior poder de influ?ncia no referido Banco. Os Estados Unidos possuem 16,41% dos votos, seguido do Jap?o - 7,87%; da Alemanha - 4,49%; do Reino Unido - 4,31% e da Fran?a - 4,31%, sendo o restante distribu?do entre os demais pa?ses membros (WORLD BANK, 2011). O atual presidente do Banco, que por tradi??o ? um norte-americano, ? Robert B. Zoellick, ex-diretor do Goldman Sachs. Como todo organismo de fomento, a institui??o exige um projeto ou plano de desenvolvimento de cada Pa?s, no qual devem constar as suas estrat?gias e prioridades de atua??o. Este conjunto de diretrizes ? posteriormente analisado pelo corpo t?cnico da institui??o que, finalmente, definir? as Estrat?gias de Parceria com o Pa?s34 (EPP). Este documento, que ? elaborado em per?odo de 1 a 3 anos, consiste no corpus t?cnico e estrat?gico a ser submetido ? avalia??o da Diretoria Executiva do Banco. De acordo com a institui??o, a EPP deve conter: 1 - Memorandos econ?micos sobre o Pa?s (MEP) ? que relatam a situa??o econ?mica e status das determina??es de ajustes estruturais prescritos pelo Banco; 2 - Exames das despesas p?blicas (EDP) ? que verificam a situa??o or?ament?ria e a referente ao gasto p?blico; 3 - Exames setoriais ? que verificam potenciais de crescimento em determinados setores; 4 - Avalia??es da pobreza (AP) ? que verificam a situa??o do Pa?s no tocante ao combate ? pobreza; 5 - Avalia??es do setor 34 Country Partnership Strategies (CPS). Ver s?tio do Banco Mundial. http://go.worldbank.org/SRW PGWJ5Q0 45 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado privado ? que verificam potenciais de crescimento, amea?as e oportunidades para o setor privado; 6 - Planos nacionais de a??o ambiental (PNAA) ? que fazem an?lise da situa??o ambiental do Pa?s e as suas estrat?gias de atua??o (WORLD BANK 2011). Segundo Baldwin (1966), o Banco Mundial e o Fundo Monet?rio Internacional tiveram uma participa??o fundamental no projeto expansionista norte-americano, principalmente ap?s o in?cio da Guerra Fria35, visto que os pa?ses perif?ricos deveriam tanto ser blindados da influ?ncia comunista quanto converterem-se em entrepostos de mat?rias primas para a sua ind?stria b?lica. A Uni?o Sovi?tica, por sua vez, exercia cada vez mais influ?ncia dentro do bloco comunista, ampliando o aux?lio financeiro e t?cnico aos seus membros. Para os Estados Unidos essa era uma for?a a ser, n?o apenas alcan?ada, mas superada pelo bloco capitalista; e os organismos multilaterais tiveram um papel estrat?gico neste processo. A influ?ncia do FMI e do Banco Mundial pode ser observada, portanto, como sendo de suporte e expans?o do alcance e do poder de influ?ncia das na??es capitalistas centrais ? notadamente Estados Unidos e principais Pa?ses do capitalismo central ? sobre o restante do Globo. Contudo, tais influ?ncias possuem, invariavelmente, car?ter estrat?gico e ?situacionista?, a depender dos objetivos a serem alcan?ados ou dos obst?culos a serem enfrentados em um determinado contexto econ?mico e pol?tico (FIORI, 1997). Ap?s uma fase inicial mais pragm?tica (conforme exposto anteriormente) e a fase posterior, mais voltada a promover um avan?o expansionista norte-americano e conter o avan?o sovi?tico, a terceira fase destes organismos foi, em linhas gerais, a de propagador do ide?rio neoliberal e facilitador dos prop?sitos de desregulamenta??o financeira e pr?-mercado. Este momento, consolidado em 1980, materializou-se na Am?rica Latina por meio das recomenda??es do Consenso de Washington, que gravitavam em torno de princ?pios de redu??o do papel do Estado, da liberaliza??o financeira e da aboli??o de entraves ao mercado. O momento atual de influ?ncia desses organismos, com maior protagonismo do Banco Mundial, iniciou-se na d?cada de 1990, motivada pelos reflexos das orienta??es estritamente voltadas para a governabilidade36 dos Pa?ses perif?ricos. O empobrecimento, 35 Com mais contund?ncia na d?cada de 1960 (MORAES, 2006). 36 Express?o adotada pelos organismos multilaterais com refer?ncia ? postura a ser adotada pelos Pa?ses perif?ricos como determinante para o sucesso das reformas estruturais realizadas (UG?, 2004). Posturas estas, centradas exclusivamente em quest?es de ordem econ?mica e de controle inflacion?rio. 46 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado o desemprego, a concentra??o de renda e a desestrutura??o das rela??es de trabalho foram consequ?ncias naturais das determina??es que desconsideraram a esfera social como um fator decisivo para o crescimento. Com efeito, foi apenas quando esses organismos multilaterais, notadamente o Banco Mundial, perceberam que tais ?distor??es? seriam entraves ao pleno funcionamento do mercado, que eles passaram a tra?ar estrat?gias para a sua ?conten??o?. Segundo Ug? (2004), j? nos primeiros relat?rios do Banco Mundial ? como o relat?rio sobre desenvolvimento de 1990 ? referentes ? pobreza, estabeleceu-se uma separa??o entre os indiv?duos aptos e os inaptos para o mercado (os pobres). A estes, caberia uma atua??o por parte do Estado, tendo o cuidado para que tais pol?ticas fossem bem restritas e delimitadas a este grupo populacional. Tais estrat?gias teriam tamb?m o cuidado de n?o interferir nas causas estruturais da pobreza, mas sim manter os seus efeitos em limites estritamente controlados. Para dar cabo a este intento, neste mesmo per?odo ? 1990 ? tratou-se de delimitar primeiramente o que seria pobreza, para, em um segundo momento, criar as conhecidas ?linhas de pobreza?. De acordo com o Banco Mundial, pobreza seria, portanto, a ?incapacidade de atingir um padr?o de vida m?nimo? (BANCO MUNDIAL, 1990, p.27). Ainda de acordo com Ug? (2004), esta defini??o j? encerra tanto uma delimita??o propriamente dita, quanto os pr?prios mecanismos para atuar nestas ?incapacidades?. Tais instrumentos estariam divididos em: a) cria??o de oportunidades econ?micas e b) presta??o de servi?os sociais. Para a autora, estas duas vertentes de atua??o visavam ? cria??o de oportunidades, sendo que ? primeira caberia criar condi??es para que o mercado atingisse esse intento via crescimento econ?mico. A segunda representaria a atua??o direta do Estado, via pol?ticas sociais (sa?de, educa??o, transfer?ncias de renda entre outras), mas de forma residual e sem que, vale ressaltar, interferisse na primeira vertente. A despeito da evolu??o da concep??o de pobreza do Banco Mundial ? contida no Relat?rio de Desenvolvimento Humano (RDM), de 2000-2001, e preponderantemente influenciada por Amartya Sen (2001) ? para quem a pobreza n?o deve ser vista como uma mera priva??o de renda, mas sim como um fen?meno de m?ltiplas vari?veis ? persiste ainda a basilar limita??o de associ?-la a uma mera falta de ?capacidades?. Neste sentido, a vis?o atual do Banco Mundial, bem como dos demais organismos multilaterais, embora tenha sofrido ?atualiza??o? nas ?ltimas d?cadas, ainda n?o se norteia pela ?gide do direito 47 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado e mant?m o seu foco na culpabiliza??o e nas defici?ncias do indiv?duo e n?o do sistema capitalista que as engendram. Com rela??o ? estrutura pol?tico-administrativa destes organismos, suas influ?ncias externas possuem determinantes que remetem ao per?odo de forma??o dos Estados Nacionais (RACHED, 2008) e, por consequ?ncia, do pr?prio capitalismo. De acordo com Arrighi (1996), a verdadeira grande transi??o hist?rica, n?o foi a passagem do feudalismo para o capitalismo, mas a institucionaliza??o deste ?ltimo, a sua aglutina??o em um bloco organizado, e, nas palavras do autor, num ?poder concentrado?, baseado na fus?o do capital com o Estado (ARRIGHI, 1996). A partir de ent?o, pouco a pouco, ciclos de guerras e fluxos comerciais moldaram o chamado sistema interestatal, bem como os limites geogr?ficos das na??es, que passaram a ser influenciados diretamente pela necessidade expansionista tanto destas quanto do pr?prio capital (RACHED, 2008). O paradigma neoliberal surgiu para consolidar esta fus?o entre Estado e capital, a partir da qual n?o se verifica mais, com facilidade, onde come?a um e termina o outro. Ao mesmo tempo, uma vez consolidadas e delimitadas as fronteiras geogr?ficas dos Estados, coube ao neoliberalismo criar, n?o apenas novos limites ? atua??o do capital (ou suprimi- los), mas tamb?m estruturas (para)estatais, com vistas a assegurar a sua hegemonia pol?tica e econ?mica, com papel de governantes de uma fronteira geogr?fica virtual. Este papel coube as ag?ncias multilaterais como o FMI e o Banco Mundial. A despeito de ter realizado uma explana??o sobre as origens e fun??es das g?meas de Bretton Woods, a presente disserta??o se det?m apenas na rela??o de influ?ncia, ou de domina??o, entre os formuladores da Pol?tica de Assist?ncia Social brasileira e o Banco Mundial (n?o incluindo o FMI e outros organismos), por tratar de expor vincula??es de ordem ideol?gica/te?rica, bem como de parcerias (o que implica uma proximidade de convic??es e ideias). Com efeito, e consoante o entendimento de Pereira (2010), as duas organiza??es possu?ram, ao longo de sua hist?ria, fun??es semelhantes, e em alguns momentos at? superpostas. Contudo, entende-se que de semelhan?as, as duas institui??es possuem apenas fun??es e n?veis de influ?ncia bem delimitadas, e, na maioria das vezes, complementares. Assim, enquanto que o FMI possui fun??es majoritariamente vinculadas ? quest?o fiscal, cambial e de d?ficits tempor?rios de balan?o de pagamentos, o Banco Mundial, se apresenta como um organismo de desenvolvimento econ?mico e social em estreita liga??o com o combate ? pobreza, em raz?o do que concede empr?stimos de longo prazo (voltado 48 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado para os pa?ses da periferia do capitalismo). Por conseguinte, embora o FMI exer?a certa influ?ncia sobre a formula??o de pol?ticas sociais, seja de forma direta, seja como reflexo de suas determina??es na ?rea econ?mica, este n?o tem a voca??o doutrin?ria e influ?ncia estruturante que o Banco Mundial possui sobre as ?reas de pol?tica social de seus destinat?rios. Historicamente, o Banco demonstrou ser capaz de exercer influ?ncia sobre os mais diversos setores da sociedade e dos Estados criando e disseminando paradigmas de interven??o social; enquanto o FMI frequentemente se utiliza de diretrizes elaboradas pelo Banco Mundial na ?rea social, complementando suas estrat?gias de foro econ?mico (PEREIRA, 2010; ROBERTS, 2000). E foi justamente por essa diferencia??o de pap?is, e visando dar uma maior objetividade ao estudo, que se optou por esta sele??o. 1.4 - O chamado Consenso de Washington O proeminente economista brit?nico John Williamson, do Peterson Institute for International Economics, ex-conselheiro do Fundo Monet?rio Internacional e ex- economista chefe do Banco Mundial, cunhou a express?o ?Consenso de Washington? para designar o arcabou?o de medidas ? um m?nimo denominador comum, nas palavras do pr?prio Williamson ? em curso, naquele momento, e outras, tidas como ideais por todas as institui??es multilaterais sediadas em Washington, e a serem aplicadas ?s economias dos pa?ses da Am?rica Latina no final dos anos 1990. Ironicamente, ainda n?o existe um ?consenso? em rela??o ao referido Consenso. N?o existe, at? da parte daquele que o batizou, ao menos um entendimento em rela??o aos princ?pios que verdadeiramente nortearam a sua cria??o, visto que, para Williamson (2003), o ?Consenso original? ? ?deturpado e mal interpretado? ? n?o teria sido guiado por um ide?rio neoliberal. Batista (1995) apresenta, com riqueza de detalhes, os determinantes pol?ticos e ideol?gicos desse Consenso, bem como as implica??es das suas formula??es para as economias latino-americanas e, principalmente, a brasileira. Segundo o autor, em novembro de 1989 reuniram-se, em Washington, sob os ausp?cios do Institute for International Economics, representantes do FMI, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e economistas latino-americanos, para analisar e realizar um balan?o das reformas j? em curso na regi?o, bem como definir estrat?gias e prioridades futuras. A reuni?o, um mix de ciclo de debates com vi?s acad?mico e f?rum de delibera??es, foi promovida por uma das institui??es produtoras de conhecimentos que balizaram a condu??o das a??es do FMI e Banco Mundial, visando sistematizar todo o 49 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado conjunto de ideias e estrat?gias at? ent?o esparsas entre esses diversos organismos e entre os pr?prios governos (norte-americano e brit?nico). Uma iniciativa de sistematiza??o das ideias neoliberais j? havia sido realizada quando da publica??o (pelo pr?prio Institute for International Economics) de Towards Economic Growth in Latin America, com participa??o inclusive do brasileiro M?rio Henrique Simonsen na sua elabora??o. Em s?ntese, as determina??es ou orienta??es abrangeram 10 ?reas, a saber: 1. Ajuste fiscal e reforma tribut?ria. 2. Redu??o dos gastos p?blicos e enxugamento do Estado ? em grande parte para cobrir o servi?o das d?vidas internas e externas. Um exemplo foi a orienta??o, por parte do FMI, quanto ? demiss?o de milhares de funcion?rios p?blicos (CHOSSUDOVSKY, 1999). 3. Pol?tica de privatiza??es. 4. Liberaliza??o comercial e fim de barreiras alfandeg?rias. 5. Abertura ao capital externo (principalmente o especulativo). 6. Desregula??o econ?mica ? fim da interfer?ncia estatal no funcionamento da economia e nas rela??es de mercado. 7. Regime cambial. 8. Reestrutura??o do sistema previdenci?rio (com altera??o inclusive em dispositivos constitucionais) (CHOSSUDOVSKY, 1999). 9. Investimento direto estrangeiro. 10. Pol?tica de patentes e de propriedade intelectual. Por?m, o maior ?xito do Consenso de Washington certamente foi o seu potencial aglutinador e multiplicador, visto que conseguiu uma sinergia entre as ?institui??es do neoliberalismo? e disseminou com ?mpeto e propriedade as suas orienta??es por toda a Am?rica Latina. Realmente, as considera??es do Consenso de Washington ? que inclusive se tornaram premissas para a obten??o de empr?stimos ? se converteram no estado da arte das boas pr?ticas pol?ticas e econ?micas a serem implementadas na regi?o. Iniciativas estas que foram endossadas por entidades, no caso brasileiro, como a Federa??o das Ind?strias de S?o Paulo (FIESP), que publicou o livro Livre para crescer - Proposta para um Brasil 50 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado moderno, o qual apresenta o mesmo receitu?rio de reformas condensadas em Washington (BATISTA, 1995). Na sua formula??o, o Consenso de Washington n?o tratou de temas sociais, mas, apenas dos de ordem econ?mica e comercial, pois seus formuladores acreditavam que a melhoria das condi??es sociais viria naturalmente em decorr?ncia das reformas executadas. Todavia, com o decorrer das reestrutura??es, os problemas sociais se agravaram; a pobreza e o desemprego atingiram patamares alarmantes. Para os ?membros do Conselho?, entretanto, a pobreza foi vista como resultado de causa end?gena fruto de problemas internos anteriores aos ajustes que, por n?o terem sido eliminados, interferiram na sua conclus?o e no seu sucesso. A quest?o da pobreza passou, ent?o, no come?o da d?cada de 1990, a ser tema de discuss?es e orienta??es posteriores por parte das institui??es de Bretton Woods ? como o caso do World Economic Report do Banco Mundial publicado nesse per?odo. Conforme Batista (1995), o alcance das determina??es do Banco Mundial em rela??o ? erradica??o da pobreza n?o seria uma tarefa do Estado, como poderia ser pensado em uma an?lise preliminar. Na verdade, a informa??o transmitida foi justamente a de que o desenvolvimento social n?o foi alcan?ado justamente pela inefici?ncia estatal e pela sua atua??o aqu?m do ideal. A ?nica forma, portanto, de se obter logro nessa empreitada seria transferindo essa tarefa para quem era mais apto para tal, o mercado ? caso fosse uma atividade economicamente rent?vel ? e, quando n?o, ao terceiro setor ou ?s chamadas ?redes de prote??o social?. O Consenso de Washington, mais de 20 anos ap?s a sua cria??o, continua mantendo grande poder e influ?ncia, a despeito de muitos terem decretado o seu fim, como ? o caso de Merrien (2007). Entretanto, n?o h? como colocar um ponto final em algo que simboliza a s?ntese do que representou o pr?prio neoliberalismo ? atualmente em plena forma. Este apenas se atualizou aos novos tempos, sendo rebatizado de ?Consenso p?s- Washington?. Merrien (2007), a despeito das suas instigantes reflex?es, visualiza um novo Consenso, baseado em iniciativas pol?ticas (como as pol?ticas sociais da era Lula), como se essas fossem descoladas de qualquer ideologia ou influ?ncias externas. Os postulados do chamado Consenso p?s-Washington, ainda nebulosos e difusos, baseiam-se, nada mais nada menos, nas pr?prias determina??es do relat?rio do Banco Mundial, publicado no in?cio dos anos 1990, que t?m seus reflexos at? mesmo nas Metas do Mil?nio das Na??es 51 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Unidas e prev?em a focaliza??o na pobreza extrema e a ?nfase em programas de distribui??o de renda condicionados e baseados em m?nimos sociais. 1.5 - A ofensiva neoliberal no Brasil No Brasil, a partir dos anos 1980, verificou-se uma mudan?a de enfoque econ?mico, que ganhou maior contund?ncia nos anos 1990. Assim, passou-se de um projeto de industrializa??o interno no per?odo de 1930 a 1980, para um modelo de integra??o (abertura) econ?mica internacional (POCHMANN, 2001). Essa integra??o se deu, principalmente, pela participa??o brasileira no chamado ?carrossel do endividamento37?, promovido pelos Estados Unidos e executados pelo FMI e o Banco Mundial, como nova estrat?gia de expans?o norte-americana ap?s 1979. Este per?odo ? emblem?tico, pois, apoiadas nas orienta??es do Consenso de Washington, for?as poderosas se aglutinaram visando ? desestrutura??o do mercado de trabalho, dos sindicatos e at? mesmo dos setores agr?colas e extrativistas. Este endividamento, revestido de socorro ?s situa??es de emerg?ncia econ?mica, teve como contrapartida a ado??o de medidas constantes nos chamados Programas de Ajustes Estruturais (PAE), que, por sua vez, consistiram em receitu?rios impostos pelo FMI e Banco Mundial em caso de solicita??o de empr?stimos ou reescalonamento de d?vidas j? existentes. Tais ajustes se expressaram, basicamente, por meio das medidas e orienta??es formais constantes no Consenso de Washington (HARVEY, 2008). Entretanto, o pano de fundo de tal redirecionamento e, por consequ?ncia, condi??o de depend?ncia, foram as crises econ?micas enfrentadas pelo Brasil a partir de meados dos anos 1970 ? reflexo da crise internacional ? que perduraram at? os anos 1990 em meio a um cen?rio de altos ?ndices inflacion?rios, progressivo endividamento do setor p?blico e baixas taxas de crescimento. A partir dos anos 1980, o pa?s viu-se, com mais contund?ncia, diante de uma escolha que viria a ser a t?nica das decis?es econ?micas brasileiras: o ajuste econ?mico externo a custa de um desajuste interno (POCHMANN, 1999). Com um setor p?blico cada vez mais endividado e um setor privado saud?vel, mas incapaz de promover o crescimento esperado, instaurou-se o catalisador de desarticula??o n?o s? do setor industrial brasileiro mais de toda a sua economia. 37 Express?o utilizada para definir o momento em que os Pa?ses em desenvolvimento, em virtude da sua necessidade de recursos para reformas e investimentos internos, foram instados a contrair empr?stimos junto ao pr?prio governo americano, a organismos multilaterais como o FMI e o Banco Mundial e bancos privados. 52 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Para Soares (2000), o processo de ?neoliberaliza??o? da economia brasileira se deu em um ritmo diferente dos demais pa?ses da Am?rica do Sul. Sendo assim, as regras ditas ortodoxas (nos moldes do Consenso de Washington) de ajuste econ?mico n?o foram facilmente aplicadas ao Brasil, tendo em vista a caracter?stica peculiar da sua economia (fragilizada) e a sua desarticula??o pol?tica. A autora afirma ainda que as caracter?sticas do ajuste implementado em seu in?cio, bem como os seus resultados, n?o dependeram apenas das receitas e recomenda??es do FMI, mas tamb?m do est?gio de desenvolvimento econ?mico, pol?tico e social do Pa?s, anteriores aos ajustes econ?micos. Al?m disso, somado a este cen?rio econ?mico e pol?tico, tinha-se uma estrutura industrial e produtiva em est?gio de desenvolvimento mais avan?ado do que os demais pa?ses da Am?rica latina ? ?tanto pelo porte de sua ind?stria como pelo grau de articula??o interindustrial e por sua inser??o internacional? (SOARES, 2000, p. 37). Desse modo, o fluxo da influ?ncia neoliberal sofreu entraves que perpassaram a desarticula??o entre o Estado, o trabalho e um setor capitalista ainda sem unidade de interesses. J? os anos 1990 surgem como o per?odo de consolida??o das ideias neoliberais no Brasil, tanto no tocante ?s rela??es de trabalho propriamente ditas quanto no que dizia respeito ? forma como o Estado regulava e gerenciava estas rela??es. Esse foi um momento em que a trajet?ria da desregula??o e desestrutura??o do trabalho se acentuou no Pa?s, tendo em vista um processo de maior abertura, tanto econ?mica, quanto comercial. Constituiu tamb?m um per?odo que se caracterizou como um marco hist?rico para o capitalismo, no qual as fronteiras mundiais se estreitaram e novos e abundantes potenciais de lucratividade se apresentaram por meio do processo de financeiriza??o mundial. A esfera produtiva viu-se progressivamente suplantada pela esfera financeira, acentuando as fragilidades e a depend?ncia dos pa?ses perif?ricos, al?m de expor os perigos que a chamada 3? revolu??o industrial, ou tecnol?gica, trouxe a estes Estados. Perigos estes manifestados, conforme Oliveira (2003), pela necessidade de maci?as e crescentes doses de investimentos para a obten??o de taxas de crescimento cada vez menores, sendo que essa necessidade mostrava-se incompat?vel com a capacidade de na??es em desenvolvimento. No Brasil, a d?cada de 1990 caracterizou-se tamb?m pelo acirramento do processo iniciado no per?odo anterior, de substitui??o do paradigma produtivo at? ent?o predominante ? o fordismo ? para outro mais afinado com a nova realidade mundial, t?o flex?vel quanto ? volatilidade dos mercados consumidores ? o toyotismo. O mundo viu-se 53 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado diante de um reordenamento nos determinantes do consumo, que, por sua vez, demandavam mudan?as nas t?cnicas gerenciais. A cadeia produtiva tradicional era tida como r?gida, engessada, necessitando, por isso, ajustar-se ?s flutua??es de demanda e ?s (re)introdu??es constantes de inova??es tecnol?gicas incrementais ou paliativas. No bojo dessas rela??es, o trabalhador que deveria emergir neste per?odo de consolida??o de um projeto neoliberal, deveria ser polivalente, desvinculado das amarras impostas pela jornada de trabalho, mas imerso em um ambiente de total inseguran?a quanto ao futuro. Esta inseguran?a, por seu turno, o converteu em um indiv?duo d?cil, permissivo e isolado tanto dos seus pares quanto de si, apartado da ideia de sujeito detentor de direitos, de poder de press?o e de luta pelos interesses de seus pares. A atomiza??o do trabalhador via desestrutura??o do trabalho e de suas rela??es, tanto legais quanto subjetivas, tamb?m contribuiu para enfraquecer, quando n?o destruir, toda uma identidade de classe que era o ?ltimo pilar de sustenta??o das condi??es de trabalho previamente conquistadas a duras penas. ? interessante e, ao mesmo tempo, preocupante verificar que o momento atual da economia, com a passagem do regime de produ??o fordista para o modelo flex?vel, veio corroborar as previs?es de Marx na sua Lei Geral da Acumula??o Capitalista, mais especificamente na sua descri??o dos processos de acumula??o do capital. Para Marx, a amplia??o ?quantitativa? da ind?stria leva gradativamente a uma mudan?a em sua estrutura ?qualitativa? qual seja: a mudan?a de seus paradigmas tecnol?gicos leva a uma amplia??o dos seus meios de produ??o em detrimento da sua parte vari?vel (for?a de trabalho). Criam-se a? as condi??es para a reprodu??o do que Marx denominou de ?ex?rcito industrial de reserva?, posto que ?a acumula??o capitalista produz constantemente ? e isso em propor??o ? sua energia e ?s suas dimens?es ? uma popula??o trabalhadora adicional relativamente sup?rflua ou subsidi?ria? (MARX, 1984. p.199). Em O Capital, Marx ressalta que este aspecto do modo de produ??o capitalista n?o apenas ? amplamente conhecido da Economia Pol?tica, mas ? tamb?m considerado uma ?necessidade da acumula??o capitalista?, na medida em que serve como um colch?o amortecedor das oscila??es da oferta e demanda de produ??o. Com o advento do modelo de produ??o flex?vel, essa m?o-de-obra excedente e de reserva se adequou de forma perfeita ? sua premissa de produ??o vari?vel ou ajustada ? demanda. Um exemplo emblem?tico desta situa??o foi o ingresso maci?o de mulheres, nas ?ltimas d?cadas, em empregos prec?rios e incertos, travestidos e propagandeados como sendo um ?processo de 54 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado emancipa??o feminina? - mas que, na realidade, apresentava o aspecto mais nefasto da explora??o e se prestava para acentuar e perpetuar as desigualdades de g?nero no mercado de trabalho. 55 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado CAP?TULO 2 ? A desestrutura??o do financiamento das pol?ticas sociais brasileiras 2.1 - Um breve hist?rico da tributa??o no Brasil e os movimentos de (contra)reforma O sistema tribut?rio brasileiro est? configurado de acordo com uma l?gica que privilegia o capital e o mercado financeiro. Mas isso n?o se deu ao acaso ou alheio a determina??es externas. Ao contr?rio, o fundo p?blico brasileiro e o seu financiamento refletem um jogo de interesses pol?ticos estrat?gica e ideologicamente posicionados, sendo tamb?m resultado de lutas entre for?as pr?-elites hegem?nicas (hoje o mercado financeiro) e pr?-pol?ticas ?p?blicas?. E como ? recorrente, o primeiro conjunto de for?as tem obtido mais sucesso, com as pol?ticas econ?micas governamentais alcan?ando sens?veis vit?rias no ?mbito tribut?rio e or?ament?rio em prol de uma minoria; e isso, como n?o poderia deixar de ser, produziu reflexos facilmente observ?veis, como, por exemplo, a precariza??o das pol?ticas habitacionais e a crescente regressividade tribut?ria. Entretanto, antes de uma discuss?o mais centrada na estrutura tribut?ria brasileira, ou de uma simples culpabiliza??o dos gestores da pol?tica econ?mica do governo federal, como se suas determina??es partissem de uma tabula rasa, ? importante fazer uma remiss?o ao passado da edifica??o do Estado brasileiro e sua estrutura fiscal, pois essa an?lise fornecer? pistas necess?rias ? compreens?o do contexto atual e das for?as em disputa. A Constitui??o Federal brasileira de 1891 foi o marco da institui??o de um sistema tribut?rio no Pa?s, que ampliou o seu espectro de atua??o original (adotado desde a ?poca do imp?rio) e criou condi??es para que os estados e munic?pios exercessem sua autonomia financeira, fruto do novo pacto federativo. Naquele momento a estrutura fiscal sustentava-se em impostos de importa??o (concentrada nas m?os da Uni?o) e demais impostos sobre exporta??es, propriedade, produ??o e outras taxas de correios e tel?grafos. J? em 1892 deu-se o in?cio do embri?o do atual sistema de tributa??o sobre o consumo, ? ?poca restrito apenas ao consumo do fumo (VARSANO, 1996). No entanto, logo ap?s este momento e antes do final do s?culo XIX, este modelo de tributa??o j? havia sido estendido a outros produtos (VARSANO, 1996). Vale mencionar, por?m, que existiu anteriormente a este per?odo (inclusive na pr?pria Assembl?ia Constituinte de 1891) um debate sobre a cria??o de um imposto sobre a renda 56 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado e o patrim?nio, com produ??es legais38, altera??es constantes e intermitentes, com destaque para a defesa ingl?ria de Ruy Barbosa das vantagens pr?ticas e ?morais? da ado??o de uma tributa??o direta sobre a renda. A hist?ria da tributa??o no Brasil teve, portanto, momentos de fortes embates e negocia??es em torno de uma tributa??o mais progressiva, que n?o podem ser desconsiderados; mas o resultado dessa disputa hist?rica sinaliza para a futura desigualdade social e concentra??o da renda, agravada em grande parte pelos pr?prios sistemas tribut?rios desde a ?poca do Imp?rio. Somente a partir de 1922 ? ap?s algumas leis or?ament?rias espec?ficas, de 1910 a 1918, que cobravam um imposto sobre os vencimentos dos funcion?rios do governo ? foi institu?do oficialmente o Imposto de Renda, por meio da lei n? 4.625 de 31de dezembro de 1922. Nas primeiras d?cadas do s?culo XX eclodiram conflitos externos que obrigaram o Pa?s a adotar uma s?rie de mudan?as no seu modelo nacional de tributa??o, em decorr?ncia da redu??o do seu volume de transa??es comerciais. O Estado precisava expandir a sua base tribut?ria interna para fazer frente ?s perdas decorrentes das conting?ncias externas (guerras e crises econ?micas). O conjunto de for?as pol?ticas e sociais esparsas e conflitantes, notadamente os movimentos comunistas surgidos a partir de 1928, a influ?ncia ainda presente das oligarquias cafeeiras, a emerg?ncia da elite empresarial e as instabilidades econ?micas internacionais, formaram o alicerce para o movimento desenvolvimentista protagonizado por Get?lio Vargas. Segundo Mendon?a (1986) e Ianni (1986), o ?golpe de 30? representou, na opini?o de seus pr?prios idealizadores, uma tentativa de trazer ?ordem ao caos? da falta de regula??es e disciplinas39, que permitissem o progresso e a moderniza??o do Pa?s. As mudan?as que ocorreram na d?cada de 1930 se deram em paralelo aos processos pol?ticos de revis?o e reestrutura??o do papel do Estado. Isso constituiu um fato crucial na an?lise da evolu??o de qualquer sistema tribut?rio, posto que, como salienta Fagnani (2005) este ? um reflexo de interesses em disputa e de projetos de desenvolvimento. Neste sentido, um momento de redirecionamento do papel do Estado 38 Lei n? 317 de 21 de outubro de 1843; o artigo 10 da Lei n? 1507 de 26 de setembro de 1867; o imposto pessoal, regulamentado pelo Decreto n? 4052 de 28 de dezembro de 1867; o imposto sobre vencimentos, regulamentado pelo Decreto n? 3977 de 12 de outubro de 1867; as proposi??es do Visconde de Jequitinhonha em 1867; as discuss?es suscitadas pelo Visconde de Ouro Preto, ent?o Ministro da Fazenda; a proposi??o do Ministro da Fazenda Conselheiro Lafayete em 1883; a Lei n? 2.919 de 31 de dezembro de 1914 (Brasil, 2011). 39 Ver declara??o de Get?lio Vargas em Ianni (1986). 57 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado define quais ser?o as fontes de financiamento dos seus novos intentos e, principalmente, privilegiar? um determinado segmento da sociedade, geralmente aquele que influenciou ou participou direta ou indiretamente desse redirecionamento. O nacional-desenvolvimentismo a partir de 1930 representou um novo momento institucional brasileiro, com o rompimento do paradigma agroexportador para um novo modelo cujo eixo se assentava na industrializa??o e no desenvolvimento das bases produtivas nacionais. No plano social e pol?tico, o que obviamente desaguou na conforma??o institucional do Estado, ocorreu o que Ianni chama de desenvolvimento de um Estado burgu?s, como um sistema que engloba institui??es pol?ticas e econ?micas, bem como padr?es e valores sociais e culturais de tipo propriamente burgu?s. (...) Isto significa que o poder p?blico passou a funcionar ? mais adequadamente ? segundo as exig?ncias e as possibilidades estruturais estabelecidas pelo sistema capitalista vigente no Brasil; isto ?, pelo subsistema brasileiro do capitalismo (IANNI, 1986, p. 25-26). Esse momento foi crucial para o entendimento das bases nas quais se assentam o atual sistema tribut?rio brasileiro, posto que o arranjo fiscal que permitiu essa reorienta??o pol?tica foi implementado neste per?odo. Al?m disso, deve-se ter em mente que essa implementa??o atendeu n?o apenas ? necessidade de estrutura??o de um parque industrial, mas tamb?m constituiu um momento no qual a nova classe burguesa brasileira come?ou a colher os frutos de um novo e duradouro privilegiamento pol?tico. Entretanto, vale assinalar, consoante Ianni (1986), que este per?odo tamb?m assistiu ao surgimento de movimentos e novos grupos sociais e pol?ticos. O marco legal neste per?odo foi a Constitui??o de 1934, a partir da qual os impostos internos passaram a ter prioridade sobre a tributa??o nas transa??es comerciais externas. Tanto foi assim que, no final da d?cada de 1930, os impostos sobre o consumo ultrapassaram os impostos sobre importa??o, com relev?ncia para a arrecada??o federal. Posteriormente, outras Cartas Magnas (especialmente a de 1946) e dispositivos legais foram criados, os quais estabeleceram novos arranjos e redistribui??es de poderes entre as esferas de governo, sem, contudo, alterar substancialmente o sistema tribut?rio (VARSANO, 1996). A d?cada de 1950 representou uma nova etapa no processo de industrializa??o. Enquanto que na ?poca do Estado Novo este processo se deu condicionado aos recursos oriundos das exporta??es, e limitados a setores e regi?es do Pa?s, nos anos cinquenta ? na 58 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado segunda gest?o Vargas (1950-1954) e no Governo Kubitschek (1956-1961) ? este processo se deu de forma cont?nua e sistem?tica, seguindo uma estrat?gia de desenvolvimento. Como express?o dessa mentalidade direcionada ? industrializa??o, foi institu?do em 1951 o Fundo de Reaparelhamento Econ?mico, tendo como bra?o executor o Banco Nacional de Desenvolvimento Econ?mico (BNDE), criado em 1952; a Petrobr?s, em 1953; o Banco do Nordeste do Brasil, em 1954; a Superintend?ncia de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959; e o pr?prio Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, com orienta??es a diversos setores econ?micos e produtivos, iniciando-se, assim, uma era de desenvolvimento intencionalmente planejado e estruturado (OLIVEIRA, 1991). De acordo com Varsano (1996), esse apoio ao desenvolvimento naturalmente trouxe incrementos na despesa do Tesouro Nacional, situa??o que o modelo tribut?rio ent?o em voga n?o foi capaz de sustentar. Um fato determinante para o formato da estrutura tribut?ria posterior, foi, al?m da premente necessidade de revis?o do aparelho fiscal, a entrada em cena de um novo protagonista: o capital externo multinacional como s?cio financiador (SINGER, 1984). Contraditoriamente, a busca pela supera??o da condi??o de subdesenvolvimento agiu como mola propulsora para o aprofundamento da depend?ncia externa, fruto das decis?es tomadas pelo Estado brasileiro neste per?odo. E tendo em vista esta situa??o, somado ao aparato institucional erigido visando ? consecu??o do seu planejamento industrial, o Estado n?o viu outra sa?da sen?o a emiss?o de moeda, criando uma press?o inflacion?ria cada vez maior. A primeira etapa do financiamento deste processo industrial, de acordo com Furtado (1972), se deu por meio dos empr?stimos concedidos pelo BNDE (via recursos de impostos), que, segundo o autor, adquiriram a forma de ?doa??es de capital? em decorr?ncia da infla??o. Posteriormente, as empresas recorriam aos bancos comerciais obtendo linhas de cr?dito a juros negativos, ampliando, dessa forma, o processo inflacion?rio. Essa r?pida capta??o de recursos contribuiu, neste per?odo, para a ?concentra??o da propriedade em benef?cio de reduzido grupo social e de empresas estrangeiras? (FURTADO, 1972). A falta de recursos para as reformas de base a que o Estado se propunha realizar, o d?ficit nas contas p?blicas e a infla??o galopante foram, portanto, o caldo de cultura para as ideias de reforma tribut?ria neste per?odo. Segundo Varsano (1996), a reforma teria que ampliar a arrecada??o, melhorar a efici?ncia do aparelho arrecadador, diminuir a tributa??o sobre a produ??o (uma exig?ncia cada vez maior do setor industrial) e simplific?-la, por 59 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado meio da unifica??o de impostos e tarifas. Em vista disso, em 1963 foi criada a Comiss?o de Reforma, do Minist?rio da Fazenda, com vistas a uma revis?o geral do sistema tribut?rio brasileiro. Entre 1964 e 1966 o novo modelo tribut?rio nacional foi implantado, culminando com a Emenda Constitucional n? 18/65, o C?digo Tribut?rio Nacional (Lei n? 5.172 de 1966) e, finalmente, o pr?prio texto constitucional de 1967. A concep??o desse C?digo Tribut?rio (seguindo a linha do movimento golpista) previa a centraliza??o em um ?nico sistema (o da Uni?o) e o fim da autonomia estadual e municipal. Desta forma, a Uni?o se tornou o centro das decis?es em mat?ria tribut?ria e de aloca??o de recursos arrecadados, da pr?pria arrecada??o e da aplica??o da maioria dos impostos. A engenharia tribut?ria realizada foi tamanha que mesmo a administra??o dos recursos transferidos pela Uni?o para os munic?pios era tratada diretamente entre estes, sem a participa??o dos governos estaduais. J? o novo modelo tribut?rio obedecia um novo paradigma de pol?tica econ?mica, que visava romper com os erros cometidos nas gest?es anteriores, os quais terminaram por provocar um surto inflacion?rio de grandes propor??es. Esta nova sistem?tica de atua??o econ?mica tinha a infla??o como sua principal inimiga e, por isso, buscava um controle no fornecimento de cr?dito ao setor privado. Para que a sua pol?tica pudesse lograr ?xito, erigiu-se um aparelho burocr?tico, composto pelo Banco Central e pelo Conselho Monet?rio Nacional. Um mecanismo utilizado pela Uni?o ? ?poca para o financiamento do seu d?ficit, e que viria a ser uma esp?cie de precursor da d?vida p?blica mobili?ria recente, foi a emiss?o de Obriga??es Reajust?veis do Tesouro Nacional (ORTN), em 1964. A reforma que se seguiu a partir de 1964 teve o m?rito de, al?m de promover uma evidente amplia??o na arrecada??o (sem, contudo, ter em vista um horizonte redistributivo ou equitativo), criar um verdadeiro sistema de arrecada??o, de modo a ampliar a tributa??o tamb?m por meio da efici?ncia burocr?tica. Mas esse ?arrocho tribut?rio? teve tamb?m consequ?ncias s?rias em dire??o ? concentra??o de renda, tendo em vista as reinvindica??es do grande setor industrial no sentido de desonerar a sua atividade e transferi-la para outros setores, menos estruturados, e para as pessoas f?sicas, sob o pretexto de uma suposta progressividade. Em paralelo ? reforma do aparelho fiscal, tamb?m ocorreu uma reorganiza??o do sistema financeiro e banc?rio e do pr?prio aparelho burocr?tico do Estado, principalmente ap?s a crise depressiva que se seguiu aos primeiros anos do regime militar. 60 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Na hist?ria do sistema tribut?rio brasileiro, a an?lise das constru??es deste per?odo ? fundamental para entender o momento atual, posto que as principais bases institucionais, de hoje, foram criadas na d?cada de 1960. Seguindo adiante, e ap?s corros?es ao longo dos anos (fruto dos incentivos fiscais), foi institu?do em 1978 o PIS ? Contribui??o para o Programa de Integra??o Social, marcando, segundo Varsano (1996), o retorno ao problema da cumulatividade tribut?ria eliminada anos antes. E mesmo ap?s sucessivas altera??es legais, que ora aumentavam a participa??o dos estados, ora retiravam autonomia destes; ora aumentavam a progressividade do Imposto de Renda ? IR e ora contribu?am para a sua regressividade, a carga tribut?ria oscilava em torno de 25 a 27% do PIB (VARSANO, 1996). O processo de reestrutura??o do sistema iniciado via Constitui??o Federal de 1988 teve antecedentes de esgotamento do sistema existente (assim como ocorreu no momento anterior ? ruptura de 1964). Contudo, apesar de ter se aproveitado de uma base j? estabelecida (com o processo pr?-constituinte, de 1967), a d?cada de 1980 assistiu a entrada em cena de atores diferenciados, como por exemplo o novo Partido do Movimento Democr?tico Brasileiro (PMDB), o movimento sindical crescente, com destaque para a 1? Confer?ncia das Classes Trabalhadoras (CONCLAT), a Central ?nica dos Trabalhadores (CUT), a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), os movimentos que surgiam em prol da reforma agr?ria, o movimento sanitarista, entre outros atores sociais. A despeito das cr?ticas ao processo de reforma tribut?ria, de 1987-88, como a realizada por Varsano (1996), a Constitui??o de 1988 deve ser vista, antes de tudo, como uma pe?a ?t?cnica?, um instrumento pol?tico que visava a repara??o de injusti?as sociais e mesmo de ordem tribut?ria ? como foi o caso da discuss?o em torno do financiamento do complexo previdenci?rio ? (FAGNANI, 2005). Neste momento da hist?ria pol?tica brasileira, mesmo com tantas for?as atuando em contr?rio, a assimetria pendeu para o lado progressista e em favor de uma verdadeira reforma pol?tica, econ?mica e social, na contram?o da realidade mundial, impactada pela ofensiva neoliberal e pelo solapamento das conquistas sociais das d?cadas anteriores. Mas a influ?ncia neoliberal n?o tardaria a aportar em territ?rio brasileiro; e a d?cada de 1990 representou o represamento de muitas ideias debatidas e ?positivadas? na d?cada anterior e impulsionado por um movimento no sentido oposto, de matizes conservadoras e antiprogressistas. Segundo Fagnani (2005), estas for?as come?aram a atuar inclusive em paralelo com a Assembl?ia Nacional Constituinte de 1988, visando 61 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado compensar ou ?contrabalancear?, em termos or?ament?rios, os ganhos obtidos no plano formal. Ainda de acordo com o autor, este movimento de desconstru??o teve duas fases, sendo a primeira a ?opera??o desmonte?, que foi justamente um ajuste fiscal de modo a compensar as despesas oriundas das novas pol?ticas e direitos sociais, com destaque para as conquistas previdenci?rias. A chamada ?opera??o desmonte? desaguou na vota??o da lei or?ament?ria de 1989, que, segundo Fagnani (2005), foi um processo permeado de embates entre duas alas: a ala pr? Assembl?ia Constituinte e a corrente pr?-ajuste fiscal ? que advogava em torno da consecu??o dos acordos realizados, ainda no final de 1989, entre o Minist?rio da Fazenda e o FMI, e que pr?-condicionou o acordo de reestrutura??o da d?vida externa ? realiza??o de ajustes fiscais. Este momento marcou inclusive uma fase de profundos conflitos entre a esfera federal e as esferas estadual e municipal, pois o primeiro, ao ajustar o seu or?amento ?s metas do FMI, realizou uma verdadeira reestrutura??o de suas atribui??es, transferindo-as aos demais entes federados. J? a ?opera??o rescaldo?, complementar ? primeira opera??o, visava uma reestrutura??o institucional e burocr?tica profunda da m?quina p?blica, que ocorreu no ?mbito do Plano Ver?o40 e contou, entre outras medidas, com a privatiza??o de empresas estatais e a extin??o de diversos ?rg?os da estrutura federal (autarquias, funda??es), particularmente os da pasta do Meio Ambiente, da Reforma Agr?ria, e da Seguridade Social (FAGNANI, 2005). Decis?es importantes na defini??o da contrarreforma ocorrida foram a transfer?ncia do Fundo da Previd?ncia Social para o Minist?rio da Fazenda e o recolhimento das receitas do Sistema Nacional de Previd?ncia e Assist?ncia Social junto ao Tesouro Nacional. O ?pice de submiss?o do financiamento da ?rea social, no ?mbito da burocracia, vai ocorrer com a san??o da Lei de cria??o da Secretaria da Receita Federal do Brasil ? SRFB, em 2007, resultado da fus?o da Secretaria de Receita Previd?ncia com a Secretaria da Receita da Fazenda. O novo ?rg?o, subordinando ao Minist?rio da Fazenda, encerrou qualquer possibilidade de arrecada??o da contribui??o social previdenci?ria fora dos ditames da pol?tica econ?mica. A etapa seguinte do processo de desconstru??o das conquistas constitucionais foi o que Fagnani (2005 p. 348) aponta como sendo a ?desfigura??o da Constitui??o na 40 O Plano Ver?o foi a reforma administrativa e econ?mica realizada em 1989, no Governo do Presidente Jos? Sarney, que consistiu, em linhas gerais, na cria??o de uma nova moeda, no congelamento de pre?os, entre outras medidas econ?micas ditas heterod?xas, al?m da pr?pria reforma institucional. 62 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Regulamenta??o Complementar?, j? que representou um momento em que o expediente deixou de ser somente o enfraquecimento e desvirtuamento das disposi??es principais da Carta Magna, para se constituir na busca pela ?anula??o? dos ganhos sociais via Regulamenta??es Complementares. No caso da Seguridade Social, essa dire??o foi tomada com o tratamento das tr?s pol?ticas componentes da Seguridade (sa?de, previd?ncia social e assist?ncia social) de forma segregada. Dessa forma, as orienta??es da Constitui??o Federal de 1988, contidas, em seu art. 165 ? 5?, que determinam a cria??o de um or?amento aut?nomo para a Seguridade Social nunca foram respeitadas. Acrescente-se ainda que a utiliza??o do termo ?aut?nomo? n?o diz respeito ? inexist?ncia de um or?amento ?formalmente? estabelecido, algo que de fato ocorreu em 2003 com a aprova??o do projeto de lei or?ament?ria, separando os componentes do or?amento fiscal do or?amento da Seguridade Social (SALVADOR, 2010). A falta de autonomia em quest?o refere-se a n?o concretiza??o de princ?pios constitucionais no tocante aos usos e fontes de financiamento da Seguridade Social. Ademais, a Constitui??o tamb?m estabelece que a elabora??o do or?amento da seguridade social deveria se dar de forma integrada pelos ?rg?os respons?veis pela sa?de, assist?ncia e previd?ncia (art. 195, ? 2?), algo que n?o vem ocorrendo. Ainda em 1989, como parte do processo de desmonte dos direitos erigidos na Carta de 1988, observou-se o descumprimento dos preceitos constitucionais no que tange ao Projeto de Lei do Plano de Benef?cios e Custeio da Previd?ncia Social, a fim de manter os acordos firmados com o FMI. E logo ap?s a aprova??o de um aumento no sal?rio m?nimo, a ?rea econ?mica do Governo editou a Medida Provis?ria n. 63, que desvinculava os benef?cios previdenci?rios ao sal?rio m?nimo (indexando-os ao IPC). Ap?s um longo processo de disputas e barganhas no Congresso Nacional esta mesma medida foi derrubada restabelecendo-se as condi??es anteriores. A partir desse momento iniciou-se uma disputa ainda mais acirrada entre Governo e Congressistas (da ala pr?-Assembl?ia Nacional Constituinte), que resultou numa queda de bra?o entre ?a integridade constitucional? e a ?austeridade fiscal ?s vistas do FMI?; pois, justamente quando os parlamentares estavam buscando aumentar as fontes de financiamento para a amplia??o dos benef?cios previstos na Constitui??o (que, inclusive, era uma demanda governista) a base econ?mica considerou tais medidas ?inflacion?rias? (FAGNANI, 2005). Esse cabo de guerra continuou ocorrendo no ?mbito de diversos programas ou benef?cios, como foi o caso do seguro desemprego e das vota??es em torno do Fundo de Amparo ao Trabalhador 63 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ? FAT, da Lei Org?nica da Assist?ncia Social ? LOAS, da Lei Org?nica da Sa?de ? LOS, da Lei de Diretrizes e Bases da Educa??o ? LDB, entre outros dispositivos, que tiveram suas vota??es retardadas, alteradas e ?ajustadas? ?s prioridades do Governo Federal. A d?cada de 1990 foi o momento de maior for?a e contund?ncia das contrarreformas tribut?rias, dado que foi o per?odo de consolida??o das ideias neoliberais e de maior depend?ncia aos ditames do FMI e do Banco Mundial. Consoante Fagnani (2005), essa foi a ?poca que marcou o fim do Estado nacional-desenvolvimentista e consolidou um novo projeto pol?tico encabe?ado pelas elites. A dessincroniza??o brasileira em rela??o aos pa?ses capitalistas centrais se tornou ainda mais evidente. O Brasil se industrializou com meio s?culo de atraso; o pacto keynesiano, por estas plagas, somente foi ?delimitado? no final da d?cada de 1980, sucumbindo, entretanto, ? ofensiva neoliberal no in?cio da d?cada de 1990. ? interessante notar, todavia, que a conjuntura econ?mica mundial, marcada pela terceira revolu??o industrial ? a tecnol?gica ? criou, em certa medida, uma sincronia entre o capitalismo central e o perif?rico, homogeneizando as agendas pol?ticas dos pa?ses em torno das novas orienta??es econ?micas neoliberais. No caso dos pa?ses perif?ricos, essa sincronia ficou a cargo ? com relativo sucesso, apesar dos custos sociais envolvidos ? dos organismos multilaterais por meio dos seus ajustes estruturais. Na gest?o do presidente Collor de Mello (1990-1992), o processo de desconstru??o dos direitos erigidos na d?cada anterior continuou com maior contund?ncia e com menores resist?ncias. Em 1991, foi aprovada a lei 8213/1991, que disp?es sobre o Plano de Organiza??o e Custeio da Seguridade Social. Inaugurando a era dos anacronismos da pol?tica neoliberal, a lei previa que a Contribui??o para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e a Contribui??o Social sobre o Lucro L?quido (CSLL) fossem utilizadas para custear a previd?ncia do setor p?blico federal. Al?m disso, a contribui??o da Uni?o n?o integraria o Or?amento da Seguridade Social, mas seria apenas adicionado a este em caso de insufici?ncia de recursos. Mesmo assim, esta cobertura pressupunha apenas o pagamento de presta??es previdenci?rias, n?o contemplando a sa?de e a assist?ncia social (FAGNANI, 2005). Essa l?gica ? que se converteu quase que em uma sistem?tica ? de desestrutura??o das conquistas sociais, continuou na Gest?o Itamar Franco (1992-1994) e aprofundou-se, a partir de 1999, com a reforma econ?mica promovida pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998/1998-2002) ? e preservada no Governo Lula ? por meio de novos 64 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado acordos realizados com o FMI, para a obten??o de super?vits prim?rios41. Tais acordos tiveram como objetivo claro a inser??o brasileira no circuito econ?mico internacional e a adequa??o brasileira aos ditames do FMI. Salvador (2010) aponta as principais altera??es no sistema tribut?rio, tidas, para ele, como uma ?verdadeira contrarreforma tribut?ria?, a saber: a desonera??o do lucro das empresas (em 1995); a institui??o dos juros sobre capital pr?prio (em 1995); a isen??o de imposto sobre a distribui??o de lucros a pessoas f?sicas (em 1995); o fim da al?quota de 35% do IRPF (em 1995); o aumento da base tribut?ria do IRPF ? para os contribuintes de baixa renda (em 1996); a extin??o do crime contra a ordem tribut?ria (em 1995). O governo Lula seguiu a mesma linha e compromissos das gest?es anteriores; e diversos dispositivos legais foram criados mantendo-se a disposi??o de privilegiamento do sistema financeiro nacional e internacional, tendo como exemplos: a isen??o de IR e CPMF para investidores estrangeiros no Brasil (em 2006); a redu??o de al?quotas de IR sobre ganhos em bolsa de valores (em 2004) (SALVADOR, 2010). Al?m disso, recursos or?ament?rios destinados ? Seguridade, criados pela Constitui??o e posteriormente a ela, como o caso da Contribui??o para o Financiamento da Seguridade Social ? COFINS, a Contribui??o para o Programa de Integra??o Social ? PIS, entre outras, v?m sendo em parte destinadas ao pagamento e amortiza??o dos juros da d?vida p?blica (BOSCHETTI; SALVADOR, 2006). Essa realoca??o desviada de recursos se deu, inicialmente, com a cria??o do Fundo Social de Emerg?ncia ? FSE, em 1994, que desvinculava 20% da arrecada??o de impostos e contribui??es destinadas ? Seguridade Social. A esse respeito, Soares (1999) argumenta que a ?vers?o brasileira42? de um fundo dessa natureza nada teve de ?social?, sendo, por conseguinte, um mero artif?cio para fugir das amarras da vincula??o or?ament?ria e para o 41 De forma simplificada, super?vit prim?rio ? o saldo positivo (nas contas governamentais) da rela??o (a-b) entre as suas receitas (a) e as suas despesas (b). O superavit ocorre quando as receitas s?o maiores do que as despesas, e o d?ficit, quando o contr?rio acontece.. J? o termo prim?rio ? utilizado para definir o resultado que considera apenas as despesas operacionais (pagamento de pessoal, investimentos, despesas de custeio entre outras), excluindo-se os juros das d?vidas interna e externa (?VILA; LINS, 2004). Em caso de saldo positivo tem-se, portanto, super?vit prim?rio, e este valor que sobra ? utilizado para o pagamento desses juros. Este ? o motivo pelo qual este indicador se tornou t?o estrat?gico para o governo brasileiro e para organismos multilaterais como o FMI, que definiram a chamada meta de super?vit prim?rio como condi??o fundamental para a obten??o de seus empr?stimos. Desta forma, tal meta (cujo esfor?o travestiu-se na chamada austeridade fiscal) tornou-se par?metro de governabilidade (ou administra??o respons?vel), e seu alcance o objetivo a ser atingido, mesmo que isso implique sacrif?cio na esfera social. 42 Isso porque outras vers?es de Fundo Sociais de Emerg?ncia foram institu?das em outros Pa?ses da Am?rica Latina, como uma forma de minorar os efeitos sociais perversos dos ajustes estruturais. 65 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado combate ? infla??o (que era compreendido como uma decorr?ncia do d?ficit p?blico). Com isso, dois grandes anseios dos organismos multilaterais foram alcan?ados: a redu??o do gasto p?blico na ?rea social ? tida como sup?rflua ? e o ajuste fiscal (visto que estes recursos seriam poupados para a obten??o de super?vits prim?rios). Em 1996, o FSE (que deveria vigorar at? 1995) foi renovado com a nova denomina??o ? mais apropriada ? de Fundo de Estabiliza??o Fiscal ? FEF. Prosseguindo na sequ?ncia de renova??es, haja vista a continuidade das pretens?es do governo no tocante a sua pol?tica de ajuste fiscal e super?vits, o FEF foi prorrogado por meio das emendas constitucionais EC n.10 e EC n.17, que o fizeram vigorar at? 1999. A partir de 2000 a EC n.27 entrou em vigor ? com um nome mais expl?cito ? a Desvincula??o de Recursos da Uni?o ? DRU, em substitui??o a FEF. Em compara??o com a sua antecessora, a DRU possui diferencia??es no que tange ? sua base de incid?ncia; mas, em linhas gerais, a desvincula??o de 20% continua e sucessivas emendas constitucionais na gest?o Lula contribuem para sua vig?ncia. 2.2 - Os mitos e contradi??es da pol?tica econ?mica e tribut?ria. James O?Connor (1977) postula que a chamada crise fiscal do Estado tem suas origens na pr?pria natureza do sistema capitalista, que socializa os custos do capital e as despesas sociais, enquanto mant?m, na esfera privada, todo o seu excedente. Disso resulta um movimento c?clico que pressiona o or?amento p?blico a complementar a renda da classe trabalhadora pauperizada, a elevar a sua produtividade e, ao mesmo tempo, a colocar-se diante de uma cada vez mais reduzida base tribut?ria. Neste sentido, um sistema tribut?rio que j? ? estruturado para ser financiado pela massa trabalhadora, sofre com maiores e crescentes perdas decorrente do chamado planejamento tribut?rio que permite ao grande capital burl?-lo, tanto de forma legal quanto ilegal (SALVADOR, 2010). E, como consequ?ncia, este sistema torna-se cada vez mais regressivo, principalmente em pa?ses perif?ricos como o Brasil. A regressividade tribut?ria pressup?e que um determinado sistema tribut?rio seja, em sua maioria, financiado por quem deveria contribuir proporcionalmente menos, isto ?, por quem possui ou percebe menor renda (a classe trabalhadora, pobre e assalariada). Sendo assim, em um modelo regressivo de tributa??o quanto menor a renda, maior ser? o seu comprometimento com o recolhimento de impostos e tributos. Em contraposi??o, num modelo progressivo, que se rege pelo princ?pio da capacidade contributiva (o que, 66 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado contraditoriamente, constitui um preceito constitucional brasileiro), a tributa??o deve ser proporcionalmente maior quanto maiores forem os rendimentos e o patrim?nio (PISCITELLI, 2003; SALVADOR, 2010). Historicamente, o Brasil adota um modelo regressivo de tributa??o, com uma participa??o maci?a dos tributos indiretos, que s?o aqueles que incidem sobre bens de consumo e servi?o (ao redor de 55,26%) e com uma comparativamente baixa tributa??o sobre a renda (em torno de 27,51%) (SALVADOR, 2010). A esse respeito, O?Connor (1977) j? ressaltava a relev?ncia dos sistemas tribut?rios como poderosos instrumentos de explora??o econ?mica, fato que, no Brasil, se observa sob o signo de uma duradoura injusti?a fiscal; pois, a grande concentra??o de renda brasileira ?coincide? exatamente com esta tend?ncia. A pol?tica tribut?ria (sob a franca influ?ncia da matriz neoliberal) foi tamb?m decisiva na condu??o da pol?tica econ?mica brasileira recente. Segundo Salvador (2010, p.18), a partir de 1999, por for?a dos acordos com o FMI, o Brasil comprometeu-se a produzir elevados super?vits fiscais prim?rios. A viabilidade dessa pol?tica foi obtida por meio do aumento da arrecada??o de impostos, via modifica??es da legisla??o infraconstitucional. O aumento da carga tribut?ria brasileira foi obtido, basicamente, com tributos cumulativos sobre o consumo, como a COFINS e a CPMF, al?m do aumento n?o legislado do IRPF, congelando a tabela e as dedu??es do IR. A eleva??o da arrecada??o, no entanto, n?o se destinou para os servi?os p?blicos, mas para cobrir os juros e a amortiza??o da d?vida p?blica. E mesmo na gest?o Lula (2002-2006/2006-2010), tal tend?ncia, n?o s? se manteve como se acentuou, visto que, j? em 2007, o percentual de incid?ncia tribut?ria sobre o consumo alcan?ou o patamar de 19,01% ante os 16,85% de 1999. O mesmo pode ser dito do Imposto de Renda sobre a pessoa f?sica, que possui car?ter progressivo, mas vem perdendo, gradualmente e de gest?o a gest?o, essa caracter?stica43 (SALVADOR, 2010). Al?m disso, existe uma clara diferencia??o entre a tributa??o sobre a renda do trabalho e a sobre a renda do capital; pois, enquanto que na conforma??o das al?quotas para a primeira h? um vi?s de redu??o para os maiores rendimentos, na segunda h? um vi?s para uma menor incid?ncia sobre os rendimentos de aplica??es financeiras, rendas fundi?rias e outros ganhos de capital ? situa??o que privilegia, obviamente, os rentistas (SALVADOR, 2010). 43 Ver tabela elaborada por Salvador (2010, p.220) sobre as al?quotas de IRPF no Brasil. 67 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado N?o bastasse essa contradi??o de fundo do sistema tribut?rio brasileiro, que retira mais de quem menos possui e d? mais para os mais abastados, o Brasil disp?e de uma metodologia de atua??o econ?mica orientada em dois expedientes: 1? - controle inflacion?rio, tendo como norte a sistem?tica de ?metas de infla??o?; e 2? - ajuste fiscal para a obten??o de super?vits prim?rios. Entretanto, como ser? exposto a seguir, tais medida inserem-se em uma espiral que faz com que a pol?tica seja um fim em si mesmo, promovendo um circulo vicioso que, a despeito de um suposto controle, apenas agrava as distor??es que se prop?e a debelar. O sistema de metas de infla??o foi estabelecido pelo Decreto n? 3088, de junho de 1999, como parte de compromissos assumidos com o FMI, desde o ano anterior, como rescaldo das crises do M?xico, do sudeste da ?sia e da morat?ria da R?ssia. Resumidamente, ap?s estes eventos estabeleceu-se um cen?rio de instabilidade que puxou para baixo as reservas do Pa?s para que se mantivesse o sistema de c?mbio fixo. A fuga de capitais fez com que a equipe econ?mica do Governo aumentasse as taxas de juros para inimagin?veis 40%, o que, naturalmente, teve consequ?ncias desastrosas sobre a d?vida p?blica. Esse foi o pano de fundo para que o Pa?s recorresse ? ajuda do FMI com o fim de sanear as suas obriga??es e transmitir uma imagem de confiabilidade aos agentes financeiros. Um dos itens deste acordo foi a ado??o de metas de infla??o, que significava que o Pa?s deveria estabelecer patamares de infla??o (sendo o atual de 4,5% ao ano) a serem alcan?ados utilizando-se, para tanto, de expedientes definidos em acordos com o Fundo Monet?rio Internacional (como os acordos de 1998 e 1999). No entanto, a ado??o de um sistema de metas de infla??o foi a concretiza??o de duas aspira??es dos agentes econ?micos: de um lado a cria??o de um ambiente de clareza, transpar?ncia e livre da corrosividade t?pica de um ambiente inflacion?rio, e a possibilidade de ado??o de mecanismos extremamente rent?veis, dependendo da solu??o a ser implantada. Os recursos encontrados pela equipe econ?mica e pelo Banco Central foram justamente a majora??o da taxa SELIC44 (n?o por acaso criada ainda em 1999 por meio da circular 2868) e a emiss?o de t?tulos da d?vida como forma de ?enxugar? o excesso de moeda em circula??o das institui??es financeiras. O resultado disso foi que, de 1998 44 Taxa de juros b?sica utilizada como refer?ncia na economia (desde opera??es interbanc?rias a transa??es comerciais ? prazo). De forma simplificada, ? obtida pela m?dia das opera??es realizadas no Sistema Especial de Liquida??o e de Cust?dia (da? a sigla) lastreadas em t?tulos p?blicos federais. 68 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado para 1999, a d?vida p?blica brasileira deu um salto de 37,8% para 50,4% em rela??o ao PIB. Desse momento em diante, tornou-se recorrente a utiliza??o da SELIC como forma de controle da infla??o. E a despeito da falsa ideia de controle inflacion?rio suscitada por essa estrat?gia, a d?vida p?blica, principalmente a interna, ? a que tem sofrido os maiores impactos (no curto prazo) dessa estrat?gia econ?mica. No m?dio e longo prazos, o principal impacto recai sobre as pol?ticas sociais ? principalmente as que n?o disp?em de recursos or?ament?rios vinculados ? cujas fontes de financiamento s?o redirecionadas ? via DRU, ou via contingenciamentos ? para o saneamento da d?vida p?blica, impactada, em sua maior parte, pelas pr?prias estrat?gias de controle inflacion?rio. Segundo Fattorelli (2011), ao contr?rio do que disseminam os governos e credores da d?vida, a infla??o tamb?m tem suas ra?zes no descontrole dos pre?os que deveriam ser controlados pelo Estado (os chamados pre?os administrados45), e n?o simplesmente no excesso de demanda. Esses insumos, al?m de terem um forte componente inflacion?rio, em caso de aumento de suas tarifas, possuem consider?vel efeito multiplicador, pois que fazem parte da composi??o de custos da maioria de produtos e servi?os comercializados no Pa?s. Para a autora, quando de um aumento da taxa SELIC a pretexto de um controle da infla??o, o que ocorre ? um recrudescimento no lado da ?oferta? de produtos, e n?o da demanda, provocado pela redu??o do cr?dito para a ind?stria, principalmente para as micro e pequenas empresas; e o encarecimento de maquin?rio, ou seja, aumento geral e em cadeia dos custos industriais, que s?o repassados, por seu turno, ao produto final. Em suma, o aumento da SELIC, reduz a infla??o ? a curto prazo ? fruto de uma diminui??o na oferta de produtos; mas esta volta a elevar-se, a m?dio e longo prazos, pois os custos incrementais s?o repassados aos pre?os dos produtos (FATTORELLI, 2011). Essa situa??o exp?e as v?sceras das pol?ticas econ?mica e fiscal brasileiras, posto que essas duas pol?ticas possuem liga??o umbilical: a pol?tica monet?ria do Governo e as inger?ncias das suas ag?ncias de regula??o geram press?es inflacion?rias, que incitam o aumento das taxas de juros e a emiss?o de t?tulos, e terminam por gerar mais infla??o, criando, assim, um circulo vicioso. Paralelamente, as press?es sobre a d?vida p?blica, decorrentes da emiss?o de novos t?tulos e de juros cada vez maiores, estimulam e justificam pr?ticas fiscais restritivas, principalmente as relacionadas ?s pol?ticas sociais, 45 Energia el?trica, combust?veis, transportes, telefonias e tarifas banc?rias. 69 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado que s?o financiadas em grande parte pelos impostos incidentes sobre o consumo de produtos - que tem o seu pre?o aumentado periodicamente em decorr?ncia desses pr?prios juros. Mesmo as empresas dos setores supracitados inscrevem-se nessa espiral permanente, visto que fizeram parte do processo de privatiza??es, no ?mbito da suposta reforma administrativa realizada na d?cada de 1990, sob o pretexto do saneamento da d?vida e a redu??o de custos para o Estado. Mas a situa??o de mais dif?cil compreens?o ? a inger?ncia em setores com atua??o ainda direta do Estado, como a Petrobr?s ? de alegada autossufici?ncia ?, o que tornaria, em tese, essa administra??o mais f?cil. Contudo, como essas empresas possuem pap?is no mercado, qualquer atua??o do Governo nesse sentido teria consequ?ncias desastrosas aos olhos dos rentistas, o que inviabiliza qualquer possibilidade de atua??o mais direta por parte do Estado ou mesmo algum incipiente controle de tarifas. A pol?tica de emiss?o de t?tulos p?blicos como sistem?tica de controle inflacion?rio, marcou um momento que poderia ser chamado (em forma de analogia) de uma privatiza??o do Estado. Uma empresa que lan?a seus pap?is no mercado de a??es procura manter sempre uma boa imagem junto ao p?blico, pois ? essa imagem que faz com que esses pap?is se valorizem continuamente. No caso dos t?tulos p?blicos, a situa??o ? semelhante: o governo lan?a t?tulos da d?vida e procura manter uma imagem de comprometimento com rela??o ? d?vida l?quida do setor p?blico junto aos agentes do setor financeiro. Seguindo a linha de Carvalho (2007), que procura politizar a quest?o da d?vida p?blica, conv?m tamb?m expor os principais mitos que gravitam em torno dela, que funcionam como justificativas para a manuten??o das atuais pol?ticas monet?rias e fiscais. O primeiro mito ? a fal?cia de que a d?vida ? decorrente de um d?ficit do setor p?blico (de onde decorre o velho chav?o do Estado perdul?rio). Uma an?lise mais detida sobre a estrutura da d?vida l?quida e das necessidades de financiamento do setor p?blico, demonstra que a maior carga est? justamente nas despesas com os juros que remuneram os t?tulos p?blicos. Outro mito, ? o de que as remunera??es dos t?tulos s?o justas, pois estes representam uma esp?cie de empr?stimo por parte dos credores. Na realidade o salto da d?vida ocorreu pelas facilidades concedidas pelo Governo quando da crise cambial, emitindo t?tulos corrigidos pela taxa de c?mbio, servindo de blindagem para institui??es 70 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado financeiras com d?vidas em d?lares. Desse modo, o pr?prio Governo assumiu os riscos das opera??es aumentando sobremaneira a sua d?vida. Estes s?o alguns dos exemplos dos argumentos utilizados pela ?rea econ?mica brasileira, assim como dos pr?prios agentes econ?micos, que inclusive fazem parte do corpo deliberativo do Comit? de Pol?tica Econ?mica ? COPOM (que ? quem fixa as taxas de juros), que disseminam uma cultura do medo, na qual os juros se constituem a pedra de salva??o para qualquer distor??o na economia. E assim os anacronismos e contradi??es persistem, e as pol?ticas sociais permanecem em segundo plano, ao sabor dos ?nimos ou azares do mercado. 71 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado CAP?TULO 3 - A Pol?tica de Assist?ncia Social no Brasil 3.1 - A constru??o da Pol?tica de Assist?ncia Social no Brasil A assist?ncia social ? uma das tr?s pol?ticas constitutivas da Seguridade Social brasileira, com status legal, e orientada pelos princ?pios do direito e da n?o- contributividade, condi??o esta prevista pela primeira vez na hist?ria do Pa?s na Constitui??o Federal de 198846. Trata-se, este acontecimento, de uma revolu??o n?o somente na organiza??o pol?tico-administrativa desta pol?tica, mas tamb?m na constru??o- reconstru??o te?rica de sua exist?ncia e finalidade, bem como de sua identidade. Tendo a maior parte de sua hist?ria sido associada ? filantropia e protagonizada pela iniciativa privada e institui??es religiosas, a assist?ncia social carrega cicatrizes (n?o apenas na sua concep??o, mas tamb?m na sua forma de execu??o) que a estigmatizam e desmerecem. As caracter?sticas atuais da pol?tica de assist?ncia mant?m matizes que remontam aos prim?rdios da prote??o social no Brasil, sendo que, a primeira delas, diz respeito, justamente, ? sua liga??o hist?rica com a filantropia. A hist?ria da prote??o social no Brasil remonta ?s primeiras iniciativas da Igreja Cat?lica e suas a??es de caridade e benemer?ncia. Neste primeiro momento as a??es ainda se expressavam, como afirma Sposati (1994), de forma ad hoc (com car?ter de esmola ou aux?lio material e moral) ou in hoc (em obras de interna??o em asilos ou orfanatos), ainda sem rela??o com a esfera do trabalho e com o estatuto da cidadania. J? num segundo momento, e conforme o mundo do trabalho se desenvolvia e se ajustava ? l?gica capitalista, a prote??o social passou a ser institu?da via associa??es profissionais, ou at? mesmo por algumas iniciativas p?blicas, como foi o caso do Plano de Assist?ncia aos ?rf?os ou vi?vas dos profissionais da Marinha de 1795 (BOSCHETTI, 2006). Nessa etapa, tais iniciativas visavam ? manuten??o e ao fortalecimento de categorias profissionais, e tinham, como condi??o, a inser??o do beneficiado no mundo do trabalho. Com efeito, as empresas privadas passaram, com o tempo, tamb?m a exercer maior participa??o neste campo, como uma forma de minorar conflitos, e assegurar a reprodu??o da classe trabalhadora (MOTA, 2008). Em 1923, foi aprovada a Lei Eloy Chaves, que definiu as formas iniciais de um sistema previdenci?rio baseado na l?gica do seguro e da solidariedade, criando as caixas de aposentadorias e pens?es ? CAPs. Essas caixas eram institu?das de forma obrigat?ria pelas 46 Constitui??o/1988, artigos 203 e 204. 72 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado empresas privadas circunscritas a algumas categorias profissionais (BOSCHETTI 2006). De acordo com Mestriner (2010), a assist?ncia social se estruturou historicamente pela alian?a entre o Estado, a Igreja e a burguesia, sendo que, o primeiro, teve uma participa??o retardat?ria neste processo, o que veio a influenciar a forma como a pol?tica assistencial se estruturou no s?culo XX. No entanto, a partir de 1930, com o processo de industrializa??o do Pa?s, bem como com o fortalecimento da classe oper?ria, o Estado passou a intervir com maior intensidade nas rela??es de trabalho por meio de regula??es diretas (BOSCHETTI, 2006). A partir de 1930, em meio a um cen?rio de crescente industrializa??o e organiza??o de uma nova classe oper?ria, numerosas iniciativas foram tomadas visando maior regula??o das rela??es de produ??o, como: a promulga??o do C?digo de Menores, a regulamenta??o do trabalho feminino, a cria??o da carteira de trabalho, que estabelecia um v?nculo obrigat?rio entre patr?es e empregados da ?rea urbana, entre outras medidas de cunho eminentemente repressivo, como a Lei de Sindicaliza??o47. Contudo, e mesmo com todas as mudan?as ocorridas na ?rea social, a prote??o social ?deveria, primeiro, resguardar o mundo do trabalho? (BOSCHETTI, 2006, p.20). Posteriormente, as Caixas privadas de pens?es foram paulatinamente sendo substitu?das pelos Institutos de Aposentadoria e Pens?es p?blicos - IAPs48, organizados n?o mais por empresas e sim por categorias profissionais. Estes institutos eram financiados com capital Estatal e tinham natureza jur?dica p?blica, o que permitiu uma maior interven??o governamental em sua gest?o (BOSCHETTI, 2006, p.21). J? em 1938, foi criado o Instituto de Previd?ncia e Assist?ncia Social dos Funcion?rios p?blicos ? Ipase, que, conforme Boschetti (2006), ?atribuiu ao Estado fun??es equivalentes ?quelas ocupadas pelas Caixas do setor privado?, pois, progressivamente os trabalhadores foram perdendo poder de influ?ncia dentro dos IAPs e estes se converteram em ?institui??es estatais de prote??o social? (BOSCHETTI, 2006 p. 25). Outro aspecto, al?m da pr?pria rela??o da prote??o social com o mundo do trabalho e a sua orienta??o pela l?gica do seguro, que veio moldar as futuras caracter?sticas institucionais da assist?ncia social e a sua identidade, foi a confus?o ou mesmo rela??o 47 ?Esta lei visava exercer um controle tanto com rela??o ? cria??o de sindicatos, quanto em rela??o a sua abrang?ncia, as suas discuss?es e delibera??es internas, futuramente assumindo fei??es de associa??es assistenciais, recreativas e culturais? (BOSCHETTI, 2006. p. 23). 48 Segundo Boschetti (2006), estes institutos se converteram em fontes estrat?gicas de arrecada??o de fundos para o Estado com vistas ? consecu??o dos seus intentos desenvolvimentistas. 73 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado conflitante desta com a pol?tica previdenci?ria e com outras pol?ticas sociais. Ainda de acordo com Boschetti (2006), at? os anos 1930 n?o havia uma defini??o entre os voc?bulos que definiam as pol?ticas existentes, sendo que ?os termos ?seguro? e ?previd?ncia? ainda nem eram utilizados nas legisla??es? (BOSCHETTI, 2006, p.18). Somente a partir desta ?poca verificou-se a necessidade de uma diferencia??o conceitual entre o que era previd?ncia (condicionada a contribui??es) e o que era assist?ncia (que englobava os servi?os e os aux?lios em dinheiro), embora tais equ?vocos e ?confus?es? conceituais tenham perdurado ao longo da hist?ria das duas pol?ticas. A pr?pria cria??o dos IAPs e as legisla??es posteriores ? sua cria??o evidenciam a falta de delineamento entre as pol?ticas previdenci?ria, de sa?de e de assist?ncia. Eram identificados com a previd?ncia apenas os benef?cios como aposentadorias e pens?es. J? a assist?ncia m?dica n?o era vista como seguro social, tendo em vista que implicava na presta??o de um servi?o, sendo, portanto, entendida como assist?ncia social. Entretanto, alguns IAPs atribu?ram aos servi?os m?dicos o status de direito, tendo sido utilizado, pela primeira vez, o termo seguro-sa?de, considerando o conceito de ?risco social?. A partir de 1940 novas formas de atua??o foram tomando corpo fora do sistema de prote??o social predominante, baseado no seguro. Em 1942 foi criada a Legi?o Brasileira de Assist?ncia (LBA), cujo objetivo era, inicialmente, atender as fam?lias de soldados brasileiros enviados ? Segunda Guerra Mundial. Em 1945 foi criado (mas n?o chegou a ser implementado, em fun??o da destitui??o do ent?o presidente Get?lio Vargas), o Instituto de Servi?os Sociais do Brasil (ISSB) como parte do projeto de reforma da previd?ncia social. Este instituto visava unificar as CAPs e os IAPs e introduzia princ?pios inovadores como a universaliza??o da cobertura para empregados maiores de 14 anos, a expans?o dos servi?os e a cria??o de um fundo financiador (BOSCHETTI, 2006). Em 1966, todos os institutos foram unificados no Instituto Nacional de Previd?ncia Social (INPS), indicando uma tend?ncia ? centraliza??o, e, em 1977, foi institu?do o Sistema Nacional de Previd?ncia e Assist?ncia Social, aproximando institucionalmente a previd?ncia, a assist?ncia social e a sa?de e ampliando o espectro dos atendimentos. Em 1960 foi aprovada a Lei Org?nica da Previd?ncia Social (LOPS), cujos princ?pios originais estavam no ISSB. A lei uniformizou os benef?cios e estabeleceu maior delimita??o entre as pol?ticas (previdenci?rias e de assist?ncia). Boschetti (2006) ressalta que a LOPS n?o alterou a estrutura desigual existente entre os institutos e indicava uma disposi??o governamental de redu??o nas suas contribui??es (retomando o financiamento 74 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado bipartite), tendo em vista o endividamento dos Institutos. A partir de 1974 foi criado o Minist?rio da Previd?ncia e Assist?ncia Social (MPAS), que englobava a Sa?de, a Previd?ncia e a Assist?ncia Social (integrando a LBA), ?num esbo?o do que seria a Seguridade Social? (BOSCHETTI, 2006, p.55). 3.2 - A Assist?ncia Social ap?s a Constitui??o de 1988 O processo de constru??o da pol?tica brasileira de assist?ncia social refletiu n?o apenas os embates te?ricos e pol?ticos ocorridos no per?odo ? como apresentou, em detalhes, Boschetti (2006) ? mas tamb?m o pr?prio processo de transi??o democr?tica. Em 1988, por ocasi?o da promulga??o da Constitui??o Federal vigente, e em meio a um cen?rio de densas negocia??es e conflitos entre for?as pol?ticas divergentes, principalmente durante todo o processo de redemocratiza??o do Pa?s, foram definidas as bases para o modelo de prote??o social cujos pilares s?o as pol?ticas de sa?de, assist?ncia social e previd?ncia social. Esta Carta inclu?a em seu texto, de forma in?dita no Pa?s, o conceito de Seguridade Social e representou a solidifica??o de demandas em disputa por mais de uma d?cada. Entre as principais conquistas desta Constitui??o, al?m da pr?pria Seguridade est?o: a fixa??o de 50% para o valor m?nimo de remunera??o das horas extraordin?rias de trabalho; jornada de trabalho de 44 horas semanais; f?rias com mais 1/3 de sal?rio; aviso pr?vio proporcional; equipara??o de direitos entre trabalhadores urbanos, rurais e dom?sticos; licen?a paternidade; amplia??o do tempo da licen?a maternidade; 13? sal?rio para aposentados; vincula??o da aposentadoria ao sal?rio m?nimo; direito ? informa??o; institui??o de um benef?cio de presta??o continuada, no valor de um sal?rio m?nimo para idosos e pessoas com defici?ncia de baixa renda; cria??o do sistema unificado e descentralizado de sa?de; valoriza??o da democracia participativa e dos mecanismos de participa??o direta da popula??o na defini??o de pol?ticas e no controle das a??es governamentais nas tr?s esferas da Federa??o; transforma??o dos Munic?pios em entes federados aut?nomos; convers?o do Minist?rio P?blico em parte leg?tima na defesa dos direitos individuais e sociais entre outros avan?os sociais (PEREIRA-PEREIRA, 1996). Em rela??o aos princ?pios da Seguridade Social, contidos no art. 194 do cap?tulo II do t?tulo V da Constitui??o de 1988 figuram: Art. 194. A Seguridade Social compreende um conjunto integrado de a??es de iniciativa dos poderes p?blicos e da sociedade, destinados a assegurar os direitos relativos ? sa?de, ? previd?ncia e ? assist?ncia social. 75 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Par?grafo ?nico. Compete ao Poder P?blico nos termos da lei, organizar a Seguridade Social, com base nos seguintes objetivos: I ? universalidade da cobertura e do atendimento; II ? uniformidade e equival?ncia dos benef?cios e servi?os ?s popula??es urbanas e rurais; III ? seletividade e distributividade na presta??o dos benef?cios e servi?os; IV ? irredutibilidade no valor dos benef?cios; V ? equidade na forma de participa??o no custeio; VI ? diversidade da base de financiamento; VII?car?ter democr?tico e descentralizado da administra??o, mediante gest?o quadripartite, com participa??o dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos ?rg?os colegiados. No tocante ? pol?tica de assist?ncia social, a Constitui??o estabeleceu um marco inovador ao elevar o seu status e ampliar o seu leque de atua??es; no entanto, ?limita-se a citar o campo de trabalho e das diretrizes organizativas e n?o especifica nem o sistema como na sa?de, nem os direitos como na previd?ncia? (SPOSATI, 2009, p.39). O texto constitucional tamb?m apresenta algumas imprecis?es com rela??o aos deveres do Estado e, portanto, com rela??o ao que deve ou n?o ser entendido como direito do cidad?o. O recorrente princ?pio da subsidiaridade presente em v?rios artigos sinaliza a disposi??o do Estado em distribuir as responsabilidades entre ele, a fam?lia e a sociedade, diluindo o car?ter de direito previsto na lei (SPOSATI, 2009). Tendo em vista, portanto, o car?ter geral e abrangente da Lei maior, por vezes contradit?rio, houve a necessidade de uma lei espec?fica que regulamentasse o campo de atua??o da Pol?tica de Assist?ncia Social; e este papel coube ? Lei Org?nica da Assist?ncia Social (LOAS), aprovada em 1993. Entretanto, esta se preocupou mais com a forma de gest?o participativa e controle democr?tico, do que com a dimens?o e o alcance da assist?ncia como pol?tica p?blica (SPOSATI, 2009). Mesmo assim, esta lei regulamentadora da assist?ncia social prevista na Constitui??o, foi mais um passo em dire??o a um modelo assistencial com orienta??o nos direitos de cidadania, conforme assinala Barreto, segundo Pereira-Pereira (1996, p. 101): Sem a LOAS a assist?ncia social na Constitui??o seria letra morta porque, como tantos outros dispositivos constitucionais, ela n?o ? um direito auto-aplic?vel. A doutrina jur?dica nos ensina que n?o basta um direito ser reconhecido para ser prontamente execut?vel. ? preciso que ele seja garantido (Barreto, 1990). Essa garantia ? assegurada por lei complementar ou ordin?ria (o caso da Loas), que ir? dar vida e concretude ao direito proclamado. 76 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado No entanto, como ? de costume em qualquer processo de cria??o e aprecia??o de lei que contrarie o ?desconhecimento, os preconceitos e vis?es equivocadas? (PEREIRA- PEREIRA, 1996, p.102) de quem a julga, de certo haver? resist?ncias muito poderosas que a transformar?o gradualmente em algo diferente do que foi originalmente idealizado. Como exemplo dessa ?resist?ncia? (a causar grandes contradi??es futuras), h? no cap?tulo 1? da Carta Magna, das defini??es e objetivos, uma orienta??o do que viria a ser a t?nica das pol?ticas assistenciais futuras orientadas para os ?m?nimos sociais?. A LOAS tamb?m estipula como diretriz organizativa da pol?tica de assist?ncia a descentraliza??o pol?tico-administrativa para os Estados, Munic?pios e o Distrito Federal, e define a forma de participa??o popular e de controle democr?tico. Institui tamb?m o Conselho Nacional de Assist?ncia Social (CNAS), que integra, de forma parit?ria, membros do governo e da sociedade civil, que tem como compet?ncias principais: 1) aprovar a Pol?tica Nacional de Assist?ncia Social; 2) normatizar as pr?ticas assistenciais no ?mbito p?blico e privado; 3) definir procedimentos para a emiss?o de certificado de entidade beneficente de assist?ncia social; 4) convocar a Confer?ncia Nacional de Assist?ncia Social a cada quatro anos, para avalia??es e sugest?es de atua??o no ?mbito da assist?ncia social. Tamb?m prev? a cria??o do Fundo Nacional de Assist?ncia Social (FNAS), em substitui??o ao Fundo Nacional de A??o Comunit?ria (FUNAC), com a fun??o de concentrar e distribuir todos os recursos para os programas e benef?cios assistenciais com a pr?via aprova??o do Conselho Nacional de Assist?ncia Social Em 2004 foi aprovada pelo CNAS, por recomenda??o da IV Confer?ncia Nacional de Assist?ncia Social, a Pol?tica Nacional da Assist?ncia Social (PNAS) e a Norma Operacional B?sica da Assist?ncia Social (NOB 2), que visavam preencher as lacunas ainda existentes sobre o seu campo de atua??o e sistematizar todas as suas a??es. A partir da PNAS foi institu?da uma nova estrat?gia governamental de Gest?o da Assist?ncia Social, denominado de Sistema ?nico de Assist?ncia Social (SUAS). Este sistema preconiza e operacionaliza a gest?o descentralizada e compartilhada entre as tr?s esferas da Federa??o (federal, estadual e municipal), implementando projetos e programas e hierarquizando-os de acordo com o seu grau de prioriza??o (b?sico e especial). Essa operacionaliza??o, por sua vez, ? realizada pelos Centros de Refer?ncia de Assist?ncia Social (CRAS), para a implementa??o dos servi?os de prote??o social b?sica, e pelos Centros de Refer?ncia Especializada da Assist?ncia Social (CREAS), para implementa??o dos servi?os de prote??o social especial. 77 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado A conclus?o a que se chega diante destes esfor?os relativamente complexos de constru??o e consolida??o da pol?tica de Assist?ncia Social ? de que tanto a viabiliza??o desta pol?tica como direito, quanto o seu entendimento te?rico e conceitual, s?o processos em constante constru??o e revis?o. Tanto o caminho para a consolida??o da Pol?tica de Assist?ncia Social como direito de cidadania, quanto o alcance de uma identidade, ainda se apresentam como longos, tortuosos e com perspectivas de grandes embates. Mas, tanto um quanto o outro caminhos sofrem influ?ncia do pr?prio passado da prote??o social do Brasil e ambos (como pol?tica e como identidade) se interrelacionam dialeticamente perpetuando contradi??es, incoer?ncias, resist?ncias e preconceitos. 3.3 - A rela??o conflituosa entre a Assist?ncia Social e a ?tica do trabalho Historicamente, a assist?ncia social e as pol?ticas de trabalho sempre mantiveram rela??o marcada por conflitos e aus?ncias. Aus?ncias estas, oriundas do entendimento de que a assist?ncia sempre teve como princ?pio norteador a ideia de que deve atuar apenas em situa??es de desemprego. No Brasil, tal concep??o ideol?gica se manteve na mesma medida, assim como a vis?o de que a prote??o social ? como previd?ncia e sa?de, por exemplo ? deveria se vincular ao exerc?cio profissional, cabendo ? pol?tica assistencial atuar junto aos que n?o estariam inseridos no mercado de trabalho formal. E como a l?gica dominante era a do trabalho como uma obriga??o moral, esta se prestava a alert?-los por meio do estigma do fracasso, de que n?o haveria sa?da sen?o pela reinser??o na vida laboral institucionalizada. Como j? mencionado, em 1988, na contram?o da tend?ncia mundial, que, neste per?odo, realizava uma reflex?o quanto ao papel dos Estados de Bem-Estar e a sua relev?ncia perante o modelo econ?mico vigente, o Brasil reconheceu, por meio da Constitui??o Federal promulgada em 198849, o status de direito da pol?tica de assist?ncia social. Fruto, em grande parte, da mobiliza??o de diversos setores da sociedade, que passava por um processo de redemocratiza??o do Pa?s e se mobilizava em diversas correntes em torno deste ideal, o reconhecimento deste status, bem como a reestrutura??o 49 Lembrando que o seu reconhecimento como direito n?o foi suficiente para que a sua estrutura institucional e o seu alcance pol?tico tenham se modificado. A Constitui??o de 1988 definiu as bases para que um novo modelo assistencial fosse implantado, mas a aplica??o e a execu??o das altera??es e princ?pios constitucionais se materializaram por meio de dispositivos legais complementares como a LOAS, promulgada apenas em dezembro de 1993. 78 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado parcial das rela??es trabalhistas, demonstram o descompasso (positivo) do Brasil em rela??o ? corrente neoliberal hegem?nica, pelo menos em principio. No curso da hist?ria, e principalmente at? meados dos anos 1980, a Assist?ncia social n?o esteve somente separada das pol?ticas de trabalho e de outras de maior relev?ncia, mas tamb?m representava uma esp?cie de ant?tese a estas, pois, conforme Boschetti (2006, p.7), era colocada em oposi??o a outras pol?ticas a que eram atribu?das a vantagem e a superioridade de serem fundadas sobre a l?gica da cidadania ou da contributividade (como a previd?ncia). Apresentada como simples instrumento de repara??o e compensa??o, ela fazia figura de paliativo pouco eficaz, estigmatizando os pobres assistidos desprovidos de direitos. Especificamente com rela??o ao trabalho, Boschetti (2006) apresenta as duas vis?es antag?nicas existentes entre estas duas pol?ticas: de um lado, a l?gica meritocr?tica e de dignidade ligada ao exerc?cio profissional e, de outro, a vis?o de naturaliza??o da pobreza e de incentivo ao ?cio, associada ? assist?ncia. At? a promulga??o da Constitui??o de 1988, e a sua consequente inser??o no ?mbito da Seguridade Social, estas duas pol?ticas eram separadas por um forte componente moral e ideol?gico. Uma ? o trabalho ? representava o socialmente desej?vel e os direitos sociais existentes se assentavam neste status; a outra ? a assist?ncia ? representava a nega??o da primeira, um subterf?gio para indiv?duos que n?o estavam dispostos a viver sobre a l?gica de que a na??o se constr?i por meio do trabalho dos seus cidad?os. E at? este momento ainda imperava a ideia de que o desemprego e a pobreza existiam por culpa individual de suas v?timas. O Estado, al?m disso, ainda n?o reconhecia, pelo menos n?o institucionalmente, a sua influ?ncia e responsabilidade nas causas dessa realidade e nem se via (ou n?o queria se ver) como agente privilegiado de seu enfrentamento. A Constitui??o Federal de 1988, apesar de n?o ter induzido mudan?as pol?ticas imediatas e efetivas, significou uma grande mudan?a no plano formal e ideol?gico. Neste sentido, a assist?ncia n?o mais deveria se contrapor ? ?tica do trabalho, uma vez que a ?tica de uma deveria deixar de ser vista como a nega??o da ?tica da outra. Com o reconhecimento do seu status de direito e de pol?tica p?blica a ser administrada pelo Estado, a finalmente reconhecida pol?tica de assist?ncia social viu-se em rota de aproxima??o com a pol?tica de trabalho, mesmo tendo a pol?tica previdenci?ria como o ?nico e fraco v?nculo de afinidade. Em suma, se antes a assist?ncia social era vista como 79 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado moralmente inaceit?vel (posi??o de contraposi??o), por supostamente incitar o ?cio e a desocupa??o, hoje (apesar desta vis?o preconceituosa n?o ter desaparecido) ? encarada como ?ltimo recurso para os desempregados e n?o atendidos pela previd?ncia (vis?o auxiliar). 3.4 - A influ?ncia neoliberal na Assist?ncia Social Conforme se pode inferir do conte?do deste trabalho, a influ?ncia do conjunto ideol?gico e te?rico neoliberal teve suas ramifica??es em todos os aspectos da vida econ?mica, pol?tica e social. Efetivamente, o neoliberalismo tornou-se o novo paradigma das rela??es humanas, moldando, inclusive, a cultura de quase todas as sociedades contempor?neas. No campo das pol?ticas sociais, mais especificamente da Assist?ncia social, tal reflexo se fez presente com mais contund?ncia por meio das seguintes estrat?gias: a) focaliza??o de seus programas sociais na pobreza extrema; b) transfer?ncia de responsabilidades governamentais para a iniciativa privada (privatiza??o das pol?ticas sociais); e c) centralidade dos programas de transfer?ncia de renda na pol?tica de assist?ncia social. 3.4.1 - A escolha por uma Assist?ncia Social focalizada N?o se pode perder de vista que o neoliberalismo ? uma atualiza??o das ideias liberais cl?ssicas nos novos tempos. Portanto, a ideia de que ? o mercado quem deve prover as condi??es necess?rias para a sobreviv?ncia, bem-estar e progresso individual, ainda se fazem presentes. O Estado, por sua vez, deve interferir o minimamente poss?vel, para que recursos sejam direcionados para o crescimento e a prosperidade econ?micos, pois estes conduziriam naturalmente a humanidade para o progresso social. Seguindo esta orienta??o, a estrat?gia da focaliza??o consistiria na sele??o de uma parcela (a mais pobre) da popula??o potencialmente benefici?ria de programa ou pol?tica social. Esta parcela seria determinada por crit?rios de acesso, tais como renda ou demais condicionantes s?cio-econ?micos (se possui filhos, quantidade de filhos menores entre outros), configurando um modelo de atendimento que se enquadra no que Pereira-Pereira (1996) chama de assist?ncia social stricto sensu, por se tratar de uma situa??o t?pica, circunstancial e sem garantia legal, voltada mecanicamente para minorar car?ncias graves, que deixaram de ser assumidas pelas pol?ticas s?cio-econ?micas setoriais. Trata-se de a??o 80 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado assistem?tica direcionada para o problema individual de pessoas submetidas ? situa??o de pobreza absoluta e cujo m?nimo vital encontra- se amea?ado, ou j? atingiu n?veis profundos de deteriora??o, em frontal colis?o com o conte?do social do direito do cidad?o que clama por assist?ncia condigna (...). ? sin?nimo de emerg?ncia; de amadorismo; de aus?ncia de planejamento; de esp?rito cr?tico; de indigna??o e de vis?o de conjunto. ? a anti-pol?tica social ou a??o eventual e incerta, profundamente dependente dos azares ou caprichos da rentabilidade privada, j? que nem sequer possui fundamentos espec?ficos, garantias legais e nem aliados pol?ticos ? estrategicamente situados ? para advog?- la (PEREIRA-PEREIRA, 1996, p.50). Al?m disso, a focaliza??o, sob um falso pretexto de economia e otimiza??o de recursos, e envolta em uma atmosfera de responsabiliza??o individual, produz consequ?ncias nefastas entre as quais se destacam: 1) a armadilha da pobreza; 2) a armadilha do desemprego e 3) a armadilha da poupan?a (ALCOCK, 1996). 1) armadilha da pobreza A armadilha da pobreza adv?m da pr?pria natureza e orienta??o pol?tica destes programas. Ao estabelecerem faixas de atendimento e de cobertura, os indiv?duos imediatamente acima deste corte n?o ser?o atendidos. Dessa feita, pessoas cujos rendimentos estejam situados em um patamar pr?ximo ao limite estabelecido para o acesso ao benef?cio ter?o o mesmo suprimido caso haja o menor incremento em sua renda. Em vista disso, e dadas as incertezas da vida a que est?o submetidas, as pessoas preferem manter-se na pobreza absoluta assistida com regularidade. 2) armadilha do desemprego A partir de meados dos anos 199050, com o advento dos programas de transfer?ncia de benef?cios em esp?cie focalizados e baseados em testes de meios51, o estranhamento entre a assist?ncia social e o trabalho se acentuou, a partir do momento em que ambos trouxeram ? tona a crua realidade do atual mercado de trabalho flexibilizado. Este conflito se deu por meio do que Alcock (1996) denomina de armadilha do desemprego, a qual est? intimamente relacionada com a armadilha da pobreza, porque, conseguir emprego significa, quase sempre, ultrapassar o corte de renda que justifica o merecimento do pobre ? prote??o social, desincentivando, assim, a inser??o deste no mercado de trabalho formal. Isso se deve, basicamente, a duas imposi??es perversas da pr?pria pol?tica social neoliberal: 1) se o benefici?rio da assist?ncia p?blica possuir sal?rio igual 50 Em 1995 ocorreu a implementa??o do primeiro programa de transfer?ncia de renda brasileiro no Distrito Federal e em munic?pios paulistas. Este modelo de pol?tica ser? discutido em item espec?fico mais adiante. 51 Testes que comprovam a pobreza e a incapacidade de auto-sustento. 81 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ou maior ao valor do ben?fico recebido, ele ter? obrigatoriamente de optar ou pela sua inser??o num mercado de trabalho prec?rio, incerto e flex?vel, ou pela manuten??o da sua condi??o certa, mas estigmatizada, de usu?rio da pol?tica social; 2) se a pessoa n?o for benefici?ria da assist?ncia e come?ar a trabalhar formalmente, provavelmente perder?, mesmo sendo pobre, o direito ao acesso ? pol?tica de assist?ncia social ? o que incentiva a informalidade (PEREIRA; SIQUEIRA, 2010, p.5) (Grifo adicionado). Este conflito vem confrontar a ideia existente por detr?s do princ?pio da menor elegibilidade concebido, no s?culo XIX, pela Lei52, de cunho liberal, que revisou de forma draconiana, as leis dos pobres anteriores, como a Speenhamland, de 1795, que previa a distribui??o de pequeno abono em dinheiro aos muito pobres. E, por esse princ?pio, que ainda prevalece nas pr?ticas atuais da assist?ncia social, os benef?cios assistenciais devem ser menores ou piores do que o menor sal?rio pago no mercado de trabalho. Entretanto, sabe-se que, no momento pelo qual atravessa o mundo do trabalho, de desestrutura??o gradativa e perda dos seus principais marcos legais, o capitalismo contempor?neo se enreda em mais uma contradi??o: estabelecer como refer?ncia para um sistema de prote??o social algo que por si s? j? vivencia um franco processo de precariza??o e perda de suas pr?prias refer?ncias. ? interessante notar tamb?m como, em tempos neoliberais ? mesmo que isto n?o seja uma caracter?stica intr?nseca ao neoliberalismo, visto que ? anterior a ele ? as quest?es de ordem moral e culpabiliza??o do pobre voltam a fazer parte das discuss?es e do imagin?rio popular. Este projeto n?o intenta enveredar por uma discuss?o acerca da criminaliza??o da pobreza, mas sim, ressaltar que o ?direito de escolha? deve ser discutido amplamente em todas as esferas (pol?ticas, econ?micas, sociais e acad?micas). E esse direito pressup?e que o indiv?duo seja consciente de seus direitos, suas capacidades e que possa selecionar o meio profissional que mais lhe satisfa?a, estabelecendo, portanto, uma ruptura com o mercado de trabalho na forma em que ele atualmente se configura (prec?rio e inst?vel). Mas, em vez disso, predominam na pol?tica de assist?ncia social incoer?ncias, assim percebidas: ?pode parecer um paradoxo, mas n?o ?. O principal objetivo do Programa Bolsa Fam?lia ? justamente fazer com que os seus beneficiados deixem de s?-lo? (WEISSHEIMER, 2006, p.67). Esta cita??o, de uma publica??o do pr?prio Partido dos Trabalhadores, ilustra bem a forma pela qual, tanto a assist?ncia social, quanto o trabalho s?o vistos na esfera governamental. De um lado, tem-se a velha vis?o da assist?ncia como 52 Poor Law Amendment Act, de 1834 82 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado algo que deva ser transit?rio, podendo ser algo nocivo social e moralmente em caso de continuidade; e, de outro lado, ainda perdura a ideia liberal-puritana da ?tica do trabalho (seja ele qual for). Esse discurso encerra em si um forte est?mulo para o fortalecimento do estigma e da criminaliza??o do benefici?rio da assist?ncia social, pois conduz ? falsa presun??o de que o Estado esteja firmemente empenhado (direta ou indiretamente) na gera??o de empregos formais e que o indiv?duo permanece na atual condi??o por mera acomoda??o. Por isso, raras s?o as vezes em que a discuss?o sai da esfera do como levar o indiv?duo ao trabalho para o como tornar este trabalho mais digno, certo e protegido. Assim, por mais que o Estado envide esfor?os no sentido de criar postos de trabalho, favorecer a contrata??o de empregados, entre outras a??es, estas ser?o medidas in?cuas dentro de um mercado cada vez mais desestruturado, desregulado, mau pagador e incerto. As ?portas de sa?da? dos programas de assist?ncia social, pensadas com o formato e limites que apresentam, retratam as caracter?sticas da atual estrutura do mercado de trabalho, a saber: a fragmenta??o do conhecimento, a flexibilidade e a baixa qualidade dos cursos t?cnicos e profissionalizantes em profus?o no Pa?s53, como atesta Pochmann: Com as recentes transforma??es no mercado de trabalho (redu??o na demanda de trabalho e amplia??o nos requisitos de contrata??o) a qualifica??o, a requalifica??o, o treinamento e a educa??o profissional passaram a ganhar maior import?ncia nas decis?es governamentais de financiamento das pol?ticas compensat?rias de emprego (POCHMANN, 1999. p. 122). E com rela??o ? qualidade destas qualifica??es, Dedecca, Barbosa e Moretto (2007, p. 56.) afirmam que, processos de forma??o especializada e de curta dura??o tornaram-se norma corrente, levando a que experi?ncias de forma??o de longo prazo, de antiga tradi??o, fossem abandonadas. As forma??es continuadas e de longa dura??o, muitas vezes articuladas ? forma??o educacional proped?utica ou mesmo profissional, foram desvalorizadas, tendo ganhado import?ncia as de natureza modular e de curta dura??o. A constru??o de uma trajet?ria de conhecimento, fundamentada na sua cumulatividade sist?mica, foi substitu?da por uma outra caracterizada pela aquisi??o de um mix de conhecimento marcado por uma forte fragmenta??o. O diploma vem sendo substitu?do por um conjunto de certificados. 53 As promessas de campanha de v?rios candidatos, principalmente ? presid?ncia da Rep?blica, na elei??o de 2010 confirmam esta tend?ncia. 83 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Essa tend?ncia tamb?m guarda afinidade com a l?gica da individualiza??o dos problemas sociais e com as chamadas pol?ticas de ?ativa??o? para o mercado de trabalho, que, mais do que promover uma forma de inser??o no mercado formal, podem provocar duas consequ?ncias distintas: a) incentivar a informalidade e a procura por qualquer forma de ocupa??o por mais prec?ria que esta seja, ou b) induzir o pr?prio desemprego tendo em vista as condicionalidades que engessam os benefici?rios na pobreza. Por fim, o empreendedorismo e a pol?tica de autoemprego ? estimulada, por meio dos programas de cr?dito p?blico (urbano e agr?cola), entre uma categoria de baixas qualifica??o e possibilidade de auto alavancagem (condi??o de manuten??o de um eventual empreendimento), o que produz mais pobreza e desemprego em detrimento de uma suposta emancipa??o. 3) a armadilha da poupan?a. A armadilha da poupan?a, assim como a armadilha da pobreza e do desemprego, adv?m da pr?pria l?gica dos crit?rios de elegibilidade da focaliza??o, uma vez que, em sendo o corte por faixas de renda o ?nico ou principal crit?rio para acesso, a acumula??o de rendimentos pode ocasionar a perda do benef?cio. Desta forma, o benefici?rio fica impossibilitado de manter uma poupan?a que poderia ser um ?porto seguro? ou ?p? de meia? para fazer frente a eventuais infort?nios ou a conting?ncias sociais. 3.4.2 - O movimento rumo ? privatiza??o da Assist?ncia Social Este tema diz respeito a uma das caracter?sticas mais not?rias do modelo neoliberal qual seja: a redu??o do papel do Estado a uma mera fun??o administrativa e mediadora, e a sua n?o interfer?ncia em setores potencialmente lucrativos para o mercado. Dessa feita, a privatiza??o das pol?ticas sociais serviria a esses dois prop?sitos de forma muito eficiente, na medida em que, de uma ?nica vez, se obteria tanto uma redu??o do escopo da interven??o estatal quanto uma nova oportunidade de lucros para o mercado. Soares (2000) assinala que as principais consequ?ncias dos ajustes estruturais ocorridos na Am?rica Latina e no Brasil, foram as que convergiram para a privatiza??o das pol?ticas sociais. A autora percebe um retrocesso em meio aos avan?os do per?odo de redemocratiza??o e consolida??o da Seguridade Social brasileira, o que fez com que as consequ?ncias do ajuste n?o fossem mais dram?ticas. Os avan?os ocorridos com a 84 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Constitui??o Federal de 1988 funcionaram como um obst?culo ao retrocesso, mas n?o foram capaz de impedi-lo. A privatiza??o das pol?ticas sociais produz consequ?ncias pol?ticas t?o nefastas quanto estruturalmente danosas, pois: a) cria uma dualidade de atendimentos discriminat?ria (SOARES 2000; BOSCHETTI; BEHRING, 2006) entre os que podem e n?o podem adquirir os servi?os; b) desestrutura o status de direito das pol?ticas sociais ao substituir esse status pelo contrato nas rela??es de mercado (rela??es estas com prazo delimitado pela periodicidade do pagamento das suas presta??es). Mesmo no caso de servi?os prestados por entidades do chamado Terceiro Setor, as rela??es tendem a se enfraquecer gradualmente, uma vez que o servi?o se pauta pelo principio do voluntariado (com suas motiva??es incertas e subjetivas) e n?o por uma obriga??o legal do Estado para com a sua execu??o; c) por fim, tem-se que a privatiza??o das pol?ticas sociais cria e acentua distor??es entre as no??es de necessidades sociais e desejos ou meros sonhos de consumo (DOYAL; GOUGH, 1991). No ?mbito da assist?ncia social, embora tenham ocorridos diversos avan?os rumo a um redirecionamento na responsabilidade da execu??o desta pol?tica pelo Estado com a promulga??o da Carta Magna de 1988, a sua regulamenta??o pela LOAS, a constitui??o dos Fundos de Assist?ncia Social, a institui??o dos Conselhos de Assist?ncia Social, a implanta??o do SUAS, entre outras conquistas, estas vem sendo gradativamente solapadas por um movimento de ?refilantropiza??o?que visa minar o ideal de uma pol?tica cuja primazia est? no dom?nio do Estado. Seguindo esta dire??o contr?ria aos preceitos estabelecidos a partir de 1988, muitos Estados v?m constituindo ?Fundos de Solidariedade?, em que verdadeiras redes de financiamento de projetos sociais s?o montadas sem o crivo das inst?ncias de controle social, al?m de gozarem de incentivos fiscais. Estas redes, al?m de implementarem as suas a??es sociais, executam tarefas que deveriam ser de ?rg?os gestores federais, seguindo a sua pr?pria cartilha cujos princ?pios n?o mant?m a menor rela??o com a ?tica do direito (CFESS, 2009). Seja como for, a privatiza??o das pol?ticas sociais, al?m de deslocar os seus meios e fins, desestrutura e destr?i pouco a pouco o verdadeiro sentido de uma pol?tica pautada em direitos. A privatiza??o representa, portanto, uma ofensiva neoliberal que extrapola a simples nega??o de um direito. Ela representa a cria??o de uma for?a atuante e proativa em dire??o ? desestrutura??o de toda forma de direito social. 85 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado 3.4.3 - Uma assist?ncia social centrada em transfer?ncias de renda Os debates sobre os programas de transfer?ncia de renda n?o s?o recentes ou apenas uma rea??o contempor?nea ao neoliberalismo. Muito antes da sua implementa??o em diversas partes do globo, como pol?tica p?blica, j? existiam vozes a consider?-los como mecanismos de promo??o de uma sociedade justa e capaz de garantir uma sobreviv?ncia digna a todos os indiv?duos. Com efeito, as funda??es de tais ideias remontam ? Gr?cia antiga, tendo a sua raiz nos princ?pios (embrion?rios) de justi?a social de Plat?o e Arist?teles, e tendo como pano de fundo a linha socr?tica de preceitos e condi??es humanas universais (em contraposi??o ao relativismo resgatado e posteriormente desenvolvido pelos te?ricos neoliberais). A partir deste marco, a hist?ria humana vivenciou muitos momentos em que se buscou uma reflex?o sobre a relev?ncia de cada indiv?duo em uma determinada sociedade e em que medida esta estava sendo justa para com os seus membros em termos de igualdades e oportunidades. Seja em passagens b?blicas, seja em hist?rias de civiliza??es ut?picas, como a de Thomas More ou de Francis Bacon, tais ideais estavam presentes e tomando cada vez mais forma (SUPLICY, 2002). Ainda no plano das ideias, e tendo tamb?m como aporte te?rico o humanismo de pensadores como Hugo Grotius (1583-1645), para quem a terra ? uma propriedade comum a todos, Thomas Paine escreveu, em 1796, a Justi?a Agr?ria propondo que fosse criado um fundo para homens e mulheres adultos (pobres ou ricos), bem como uma aposentadoria aos idosos a t?tulo de indeniza??o ? comunidade como forma de compensa??o pelo usufruto, por parte do propriet?rio de terras, de um bem coletivo (VANDERBORGHT; PARIJS, 2006). No s?culo XVIII, o professor ingl?s Thomas Spence publicou Os direitos das crian?as (1797), propondo, de forma radical para o seu tempo, que cada localidade distribu?sse de forma regular o lucro resultante do leil?o de todos os im?veis locais. Posteriormente, em 1803 e 1836, o socialista ut?pico franc?s Charles Fourier desenvolveu a sua ideia de repasse de um benef?cio garantido de forma incondicional aos pobres como compensa??o pelo n?o exerc?cio de direitos sobre a natureza (de ca?a e colheita). Na mesma linha de argumenta??o seguiram V?ctor Considerant (1845) e Joseph Charlier (1848), para os quais a sociedade, personificada na figura do Estado, deveria ser o ?nico propriet?rio da terra; e, at? mesmo, John Stuart Mill, com a sua segunda edi??o de 86 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Princ?pios de Economia Pol?tica (1848), flerta com o socialismo ut?pico de Fourier (VANDERBORGHT; PARIS, 2006; ANDERSON, 1996). Em suas obras sobre uma Renda de Cidadania ou Renda B?sica de Cidadania, Yannick Vanderborght e Philippe Van Parijs (2006) e Eduardo Suplicy (2002) apresentam diversos exemplos de viabiliza??o dessas ideias no plano pr?tico e pol?tico. Suplicy (2002) destaca que, no s?culo XVI, a proposta pioneira de Juan Luis Vives sugeria a implanta??o de uma renda m?nima na cidade espanhola de Bruges. Vives foi influenciado por uma iniciativa belga de assist?ncia aos pobres no ano de 1525 e seu trabalho De Subventione Pauperum (1526) tamb?m exerceu influ?ncia posterior sobre as primeiras Poor Laws inglesas (1531), embora se saiba que o objetivo destas ?ltimas, distanciadas da no??o de justi?a social, buscava restringir a movimenta??o dos trabalhadores entre as par?quias inglesas. O exemplo mais emblem?tico de implanta??o de um modelo de transfer?ncia de renda foi o que ocorreu em 1795 no munic?pio de Speenhamland na Inglaterra. Tendo como fatores condicionantes a fome e o medo de revoltas populares, o sistema de Speenhamland, mais tarde transformado em lei (act), foi institu?do pelos magistrados locais como uma forma de compensar as perdas econ?micas e o grave empobrecimento populacional decorrente do fim das propriedades comunit?rias (SUPLICY, 2002). Neste sentido, o benef?cio complementaria ? em car?ter de abono ? os sal?rios recebidos pelos trabalhadores e teria o seu valor indexado ao pre?o da farinha ou do p?o propriamente dito, principal g?nero aliment?cio naquele momento. O Speenhamland Act foi emblem?tico porque, al?m das implica??es de ordem estrutural decorrentes da sua execu??o ? redu??o no ritmo do processo de industrializa??o e desvaloriza??o dos sal?rios no ?mbito rural ? ela se aproxioua muito dos programas atuais de transfer?ncia de renda, tendo em vista o seu car?ter controverso. Durante a sua vig?ncia, as rela??es salariais, em termos de produtividade e rendimentos, foram se deteriorando ciclicamente haja vista o abono ser auferido independente dessas circunst?ncias. Tais acontecimentos serviram tamb?m para assentar no imagin?rio coletivo a ideia de que, tais medidas assistenciais estimulavam o ?cio, ao mesmo tempo em que ajudaram a estabelecer a associa??o estigmatizante entre estas (as pol?ticas) e seus benefici?rios supostamente ?pregui?osos? e ?acomodados?. Com efeito, este sistema provocou reviravoltas e reflex?es, como a de Polanyi (1988), ao questionar-se sobre a possibilidade de concilia??o entre sal?rios subsidiados por um fundo p?blico e a exist?ncia 87 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado de uma sociedade capitalista. Em suma, um programa de transfer?ncia de renda (a Lei Speenhamland) foi o marco hist?rico decisivo para a constitui??o de um novo paradigma social fundado no capitalismo industrial e suas implica??es econ?micas e sociais moldaram a pr?pria consci?ncia social do homem moderno (POLANYI, 1988). Outros exemplos semelhantes se seguiram, tanto na arena pol?tica quanto na ideol?gica, e, j? neste momento, surgiram cr?ticas mais duras a esses modelos de redistribui??o centrados apenas na renda, como a realizada por Marx em sua Cr?tica ao Programa de Gotha, (apresentada em 1875). Para Marx, tais iniciativas buscavam apenas remediar iniquidades de um sistema produtor de desigualdades. Por este prisma, a raiz das injusti?as sociais residiria nos pr?prios mecanismos criadores da renda, e n?o apenas nas suas formas de circula??o e distribui??o. Entretanto, a hist?ria mostrou e continua a evidenciar que tais modelos originaram-se de um arcabou?o te?rico aristot?lico baseado em arremedos nos meios de produ??o e n?o na sua modifica??o (PEREIRA-PEREIRA, 2006). O s?culo XX foi bastante prof?cuo para os PTRs, pois este momento significou a sua consolida??o como pol?tica de orienta??o liberal/social-democrata, a cujos princ?pios de justi?a foram acrescidos e adaptados outros como liberdade, efici?ncia, capacidades e potencialidades. Vanderborght e Van Parijs (2006) detalham o caldeir?o de ideias e sugest?es a respeito de um modelo ideal, ou mesmo a implanta??o de algum tipo de transfer?ncia de renda, sobretudo em per?odos cr?ticos, como o caso do primeiro p?s-guerra e o p?s-crise de 1929. Segundo eles, em 1935 foi criado, nos Estados Unidos, o Aid for families with dependent children, que complementava a renda de fam?lias cujos ganhos se situassem em um limite pr?-estabelecido e que se encontrassem em dificuldades relacionadas ? educa??o dos seus filhos. A pr?pria institui??o de um Estado de Bem-Estar e a orienta??o para uma maior interven??o e protagonismo do Estado carreou uma grande quantidade de iniciativas desta natureza por todo o globo, como reflexo da disposi??o para a expans?o de pol?ticas de bem-estar. A partir desta d?cada, diversas experi?ncias se seguiram, tais como na Inglaterra, em 1948; Finl?ndia, em 1956; Su?cia, em 1957; Alemanha, em 1961 e Pa?ses Baixos, em 1963 (SILVA E SILVA et al. 2004) . Outras iniciativas de vulto se seguiram nos anos 1970, como o Eamed Income Tax Credit ? EITC, criado, em 1974, tamb?m nos Estados Unidos, como o maior programa desta modalidade j? implementado neste Pa?s, destinado a trabalhadores e fam?lias com filhos. Esta iniciativa constituiu um paradigma para programas condicionados ? inser??o 88 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado no mercado de trabalho, a despeito de a grande maioria de programas anteriores tamb?m terem seguido esta linha. Contudo, pode-se dizer que os PTRs possuem um ponto de ruptura nesta d?cada, pois enquanto a constru??o do modelo inicial de transfer?ncia de renda, bem como as suas replica??es posteriores, foram direcionadas por um princ?pio de justi?a social (pautado em direitos e redistributividade), com o advento do paradigma neoliberal, tais iniciativas foram reorientadas54 ? com subs?dios te?ricos de peso, como os de John Rawls (1997), Amartya Sen (2000) entre outros ? visando tanto a remedia??o dos subprodutos do sistema capitalista (pobreza, desemprego estrutural, crises econ?micas), quanto a legitima??o da sua ideologia. Nos anos 1970, e com maior intensidade em 1980, os programas de transfer?ncia de renda vivenciaram a chamada ?segunda onda de renda m?nima,? marcada por um processo contradit?rio de reorienta??o qual seja: a mudan?a de uma fun??o de ap?ndice das estrat?gias de prote??o social, para incorpora??o de uma postura protagonista. Ao mesmo tempo, houve uma profus?o de iniciativas pontuais, residuais e cada vez mais focalizada na pobreza extrema (STEIN, 2005). Na Europa, os debates e as experi?ncias, referentes aos PTRs, encontraram uma diversidade maior do que em outras partes do mundo, em fun??o do maior leque de orienta??es e, porque n?o dizer, de modelos de Estado de Bem-Estar. No estudo realizado por Stein (2005), fica evidente essa heterogeneidade durante toda a evolu??o dos sistemas de prote??o social europeus. No que diz respeito aos modelos de programas de renda m?nima europeus, Moreno (2003) os classifica em tr?s: 1) um de presta??es generosas e cobertura ampla (ex: Alemanha e Holanda); 2) outro, de presta??es m?nimas e ampla cobertura (Fran?a, B?lgica); e 3) mais outro, de presta??es modestas e baixa cobertura (Inglaterra) (STEIN, 2005). Na Fran?a, as propostas da Renda M?nima de Inser??o (RMI), criadas em 1988, estabeleciam uma contrapartida que era a procura por uma ocupa??o profissional, enquanto, na Inglaterra, o chamado Income Suport, criado em 198855, previa uma presta??o a indiv?duos sem trabalho ou em trabalhos de tempo parcial (tal benef?cio n?o exigia contrapartidas de procura e ativa??o para o mercado de trabalho). Al?m disso, a Europa tamb?m apresenta experi?ncias focalizadas em conjunto com uma s?rie de experi?ncias universais, como ? o caso dos modelos escandinavos. (STEIN, 2005). 54 Isto n?o exclui a possibilidade de pol?ticas anteriores terem se orientado por princ?pios liberais. 55 Em substitui??o aos Supplementary Benefits, de 1966. (STEIN, 2005) 89 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Enquanto isso, nos Pa?ses Baixos e em outras partes da Europa, diversos debates tomam corpo, em dire??o a uma desvincula??o entre emprego e renda, entendida como essencial para um desenvolvimento humano com independ?ncia e autonomia. Diversas foram as ocasi?es em que ocorreram acirradas divis?es e disputas ideol?gicas at? que se chegasse ao exerc?cio de uma determinada pr?tica legislativa. A Europa, que historicamente desempenhou um papel fundamental como celeiro de ideias, mant?m, portanto, esta caracter?stica no final do s?culo XX, culminando com a cria??o de diversos grupos de pesquisas sobre transfer?ncia de renda (como o Basic Income Research Group em 1984, e a Basic Income Earth Network ? BIEN em 1986). Todavia, enquanto as experi?ncias europ?ias ainda demonstrem heterogeneidade, e haja uma tend?ncia de que estes programas exijam cada vez mais condicionalidades relacionadas ao trabalho, ou outro tipo de contrapartida, na Am?rica Latina, tanto os seus sistemas de prote??o social, de forma geral, quanto os seus modelos de transfer?ncia de renda, exp?em e refletem a realidade das suas economias afetadas pelos ajustes estruturais e pela pr?pria incorpora??o da ideologia neoliberal. Os programas latino-americanos surgiram no per?odo em que era vivenciada na Europa a chamada ?terceira onda? dos programas de transfer?ncia de renda, em que as presta??es monet?rias associavam-se com pol?ticas de inser??o ou ativa??o para o mercado de trabalho. A despeito da influ?ncia dos organismos multilaterais na Am?rica Latina, por meio das exig?ncias de estrat?gias combinadas de ajuste econ?mico e de combate ? pobreza extrema ? pr?-condi??es para a obten??o de aux?lio desses organismos ? a implanta??o e a condu??o de PTRs conviveu, ao longo da sua hist?ria, com conflitos e altern?ncias entre estrat?gias de corte liberal, pluralista, populistas e at? iniciativas progressistas. Dentre as primeiras experi?ncias latino-americanas destaca-se a Mexicana (Programa Oportunidades, criado em 1997), que tem como estrat?gias a combina??o de pol?ticas de presta??es focalizadas na pobreza extrema com a exig?ncia de frequ?ncia escolar e realiza??o de exames de sa?de. Tal estrat?gia ? uma refer?ncia na Am?rica Latina, moldando-se aos preceitos do Banco Mundial, pois, al?m da j? dita focaliza??o, visa: a interrup??o do ciclo intergeracional da pobreza, via est?mulo educacional; o desenvolvimento de capacidades individuais e a cria??o de uma estrat?gia de responsabilidade compartilhada. No Brasil, os PTRs possuem uma hist?ria recente na biografia das pol?ticas sociais. Para Silva e Silva (2004), o processo de constru??o deste modelo de programa tem 90 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado como ponto de partida a aprova??o do Programa de Garantia de Renda M?nima (PGRM), de autoria do Senador do Partido dos Trabalhadores, Eduardo Suplicy56 (Projeto de Lei n? 80/1991). Pelo projeto de Suplicy, todo residente no Pa?s, com 25 anos ou mais, que tivesse rendimentos inferiores a um patamar estipulado, receberiam uma complementa??o de 30% entre este teto e o seu rendimento mensal (podendo ser de at? 50%, dependendo da disponibilidade de recursos). Entretanto, vale mencionar as contribui??es de Josu? de Castro, em 1956, quando era deputado federal, ao defender a cria??o de uma garantia de renda m?nima a todos os cidad?os. Tamb?m merece destaque o debate suscitado por Ant?nio Maria da Silveira, com a publica??o, em 1975, na Revista Brasileira de Economia, do artigo Moeda e redistribui??o de Renda, na qual prop?e a cria??o de um imposto de renda negativo (SILVA E SILVA 2009). Em 1978, Edmar Lisboa Bacha e Roberto Mangabeira Unger publicaram Participa??o, sal?rio e voto: um projeto de democracia para o Brasil e tamb?m fazem uma defesa a um imposto de renda negativo, a ser financiado pela parcela mais rica da popula??o com vistas a salvaguardar o Estado democr?tico (SILVA E SILVA et al. 2004). O segundo momento do processo de constru??o hist?rica dos programas de transfer?ncia de renda, apontado por Silva e Silva et al (2004), precedido pela aprova??o da proposta de garantia de renda m?nima, teve como papel o ajustamento das discuss?es e propostas pol?ticas ?s orienta??es de co-responsabiliza??o. Neste sentido, o economista Jos? Marcio Camargo publica artigos na Folha de S?o Paulo intitulados os Miser?veis, defendendo que as pol?ticas devam ser conferidas n?o ao indiv?duo, mas a um n?cleo familiar. Para tanto, o mecanismo ideal para que esta rela??o se justifique seria a introdu??o da condi??o de que a fam?lia, para receber o benef?cio, deva ter e manter os seus filhos em idade escolar matriculados na rede p?blica, assim como obter n?veis m?nimos de frequ?ncia. O Brasil dos anos 1990 atravessava um momento de forte turbul?ncia econ?mica, com altas taxas de infla??o, forte endividamento externo, desemprego crescente e desestrutura??o das rela??es de trabalho decorrentes do processo de ajuste estrutural. E 56 Silva e Silva et al (2004) aponta as circunstancias que envolveram a aprova??o do primeiro projeto de lei de garantia de renda m?nima. Segundo os autores, a proposta de Suplicy foi retardada em fun??o da quantidade de propostas semelhantes em tramita??o no Congresso. Foram quase seis anos, desde a aprova??o em 1991, at? que uma proposta substituta tenha sido sancionada pelo ent?o Presidente Fernando Henrique Cardoso ? n?o por acaso a proposta do deputado do PSBD Nelson Marchezan (Lei 9.533, de 1997). 91 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado assim como para os idealizadores e promotores dos ajustes econ?micos a pobreza foi reconhecida como um subproduto das suas determina??es e tornou-se um entrave ao crescimento econ?mico sustent?vel, a mesma percep??o ocorreu nos legisladores ? dada a profus?o de propostas de renda m?nima apresentadas neste per?odo ? e nos governos estaduais que implantaram tais modelos assistenciais, como foi o caso das experi?ncias pioneiras57 do Distrito federal, Ribeir?o Preto e Campinas, em 1995. A experi?ncia de Campinas, crida pela lei n? 8.261, foi chamada de Programa de Garantia da Renda Familiar M?nima (PGRFM). Direcionava-se ?s fam?lias com crian?as de 0 a14 anos, com prioridade para as desnutridas, em situa??o de rua ou com defici?ncia, e que tivessem renda per capita de meio sal?rio m?nimo. O Programa brasiliense, denominado Bolsa Familiar para a educa??o, conhecido como Bolsa Escola, criado pelo decreto n? 16.270, tinha como crit?rio de elegibilidade a renda per capita de meio sal?rio m?nimo e a matr?cula e frequ?ncia escolares de seus filhos entre 7 e 14 anos (STEIN, 2005). E o Programa Garantia de Renda Familiar M?nima, de Ribeir?o Preto-SP, criado pela lei n? 7.188, era destinado a fam?lias com renda total de at? dois sal?rios m?nimos, fam?lias monoparentais e pessoas em situa??o de rua. Como contrapartida as crian?as deveriam estar matriculadas em escolas da rede p?blica ou outras entidades n?o- governamentais (SILVA E SILVA et al, 2004). Nesse momento de constru??o das pol?ticas brasileiras de transfer?ncia de renda ? que Silva e Silva et al (2004) chama de terceiro momento de constru??o hist?rica ? os programas supracitados surgem para, inclusive, estabelecerem-se como paradigmas para o programa federal que viria a ser constitu?do posteriormente. Diante da movimenta??o nacional em torno dos PTRs, imersos em uma conjuntura de degrada??o das condi??es econ?micas e sociais da popula??o, baixa qualifica??o do trabalhador diante das transforma??es tecnol?gicas do trabalho e o crescimento da informalidade e do trabalho infantil (SILVA E SILVA et al, 2004), o Governo Federal deu in?cio aos seus pr?prios programas ? como o Programa de Erradica??o do Trabalho Infantil (PETI), institu?do em 1996 ? mesmo que de forma t?mida e coadjuvante em rela??o ?s iniciativas estaduais. Tendo em vista o debate cada vez mais constante em torno das transfer?ncias de renda, o Governo Federal aprovou a lei n? 9.533, concedendo apoio financeiro aos munic?pios que desenvolvessem as suas experi?ncias 57 Para informa??es mais detalhadas sobre esses tr?s programas ver Silva e Silva et al (2004) 92 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado tendo como refer?ncia o n?cleo familiar e associadas a a??es de educa??o e sa?de (SILVA E SILVA, 2009). Um benef?cio de grande envergadura e relev?ncia a entrar em vigor neste per?odo foi o Benef?cio de Presta??o Continuada (BPC), institu?do pela lei n? 8742 (Lei Org?nica da Assist?ncia Social/LOAS, de 1993) e alterado pelas leis n? 9.720 de 1998, n? 10.741 de 2003 e pelo Decreto n? 1.744 de 1995. O BPC, em vigor desde janeiro de 1996, foi previsto pela Constitui??o de 198858 ? em substitui??o ? Renda Mensal Vital?cia (RMV) de 1974 ? garantindo um sal?rio m?nimo mensal a pessoas idosas com mais de 65 anos e pessoas com defici?ncia que tenham, em ambos os casos, renda per capita familiar mensal inferior a um quarto de sal?rio m?nimo. Al?m disso, o idoso deve declarar n?o receber nenhum outro benef?cio previdenci?rio ou assistencial e a pessoa com defici?ncia deve passar por uma avalia??o realizada pela per?cia m?dica do INSS, de modo a ter comprovada sua incapacidade para a vida independente e para o trabalho. Em 2001, deu-se in?cio ao quarto momento de constru??o hist?rica brasileira dos PTRs (SILVA E SILVA et al. 2004) com a aprova??o da lei de n? 10.219/2001, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Por meio deste dispositivo legal, o Governo Federal pode realizar conv?nios com todos os munic?pios brasileiros para que fosse implantado o Programa Nacional de Renda M?nima/Bolsa Escola ou outro Programa de sua ?Rede de Prote??o Social? ? iniciativa lan?ada por Fernando Henrique Cardoso, composta de programas como o pr?prio Bolsa Escola, o Bolsa-alimenta??o e o Aux?lio- G?s ? cujo eixo se estruturou em programas de transfer?ncia de renda. O chamado quinto momento apontado por Silva e Silva et al (2004) teve como ponto de partida o ano de 200359 e a proposta da nova gest?o Lula de integra??o de todos os programas de transfer?ncia de renda com a cria??o do Programa Bolsa Fam?lia. Este programa ? parte da estrat?gia governamental de combate ? fome denominado Fome Zero, que engloba diversas vertentes de atua??o, da transfer?ncia de renda ao abastecimento de ?gua. O Bolsa Fam?lia oferece benef?cios ? para fam?lias com renda per capita inferior a R$ 140,00 ? que variam de R$ 32,00 a R$ 306,00 a depender da estrutura familiar (quantidade de dependentes) e dos rendimentos mensais. Como premissa para a integra??o 58 Artigo 203 Inciso V da Constitui??o Federal. 59 Neste mesmo ano, ap?s um retorno ?s discuss?es sobre a renda de cidadania, houve a aprova??o da lei n? 266/2001, de autoria de Eduardo Suplicy, criando assim a Renda B?sica de Cidadania (SILVA E SILVA, 2006) 93 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado junto ao governo federal, os benefici?rios desses programas devem atender a condicionalidades educacionais e de sa?de (matr?cula, frequ?ncia escolar, exames pr?- natais, atividades educativas e campanhas de aleitamento materno). A administra??o e a coordena??o destes dois programas ? BPC e Bolsa Fam?lia ? s?o realizadas pelo Minist?rio de Desenvolvimento Social e Combate ? Fome (MDS)60, criado em 2004, com apoio t?cnico e operacional da Previd?ncia, INSS e Caixa Econ?mica Federal. Segundo dados do pr?prio MDS61, o programa Bolsa Fam?lia atendeu em Dezembro de 2011, treze milh?es e trezentas mil fam?lias, com um total repassado neste m?s de R$ 1.602.079.650. O BPC, por sua vez, atendeu, nesse mesmo per?odo, cerca de 3 milh?es e meio de benefici?rios, com um total repassado de R$ 1.955.513.770,05. Entretanto, vale uma ressalva quanto ? natureza dos modelos de PTRs introduzidos no Brasil. Diferentemente de um modelo de renda de cidadania, ou de renda b?sica de cidadania, que pressup?e a presta??o de um benef?cio universal sem a cobran?a de contrapartidas, no pa?s tais medidas s?o not?rias pelas suas estreitas faixas de elegibilidade, pela sua centralidade na figura familiar, e pelas suas condicionalidades educacionais e de sa?de, a pretexto de uma suposta intersetorialidade. Isso quer dizer que os programas de transfer?ncia de renda brasileiros s?o benef?cios de renda m?nima, pautados pelo princ?pio dos m?nimos sociais. A esse respeito, Pereira-Pereira (2000) identifica uma s?rie de incoer?ncias at? mesmo na formula??o da legisla??o brasileira de assist?ncia social, a LOAS. Segundo a autora, al?m de ser clara quanto a n?o contributividade em seu texto, o que levantaria quest?es quanto ? aplica??o de contrapartidas (PEREIRA-PEREIRA, 2000, p. 25), a referida lei apresenta j? de antem?o a sua inclina??o como pol?tica a prover ?m?nimos sociais?. Uma pol?tica pautada por este princ?pio reduz as necessidades do indiv?duo a meras quest?es de ordem fisiol?gica e se orientam naturalmente aos estratos mais pobres de uma determinada popula??o. Um programa de transfer?ncia de renda pautado por esse prisma tamb?m reduz todo o espectro multidimensional da pobreza (suas causas estruturais, hist?ricas, culturais e pol?ticas) a simples esquemas matem?ticos centrando-se apenas na ?renda? do indiv?duo. 60 O MDS incorporou em sua estrutura as seguintes Secretarias: Secretaria Nacional de Assist?ncia Social; Secretaria Nacional de Renda da Cidadania; Secretaria Nacional de Seguran?a Alimentar e a Secretaria de Articula??o Institucional e Parcerias. 61 Fonte: Matriz de Informa??o Social do Minist?rio do Desenvolvimento Social e Combate ? Fome. Dispon?vel no s?tio http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/mi2007/tabelas/mi_social.php 94 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado N?o por coincid?ncia, te?ricos famosos do neoliberalismo e mesmo do liberalismo cl?ssico advogaram em favor de uma garantia de renda m?nima. Friedrick Hayek, George Stigler, Milton Friedman, James Tobin, Paul Samuelson, John Kenneth, Galbraith, Robert Lampman, Harold Watts, entre muitos outros nomes, defendiam que fosse garantida uma renda, m?nima o suficiente para cobrir as necessidades vitais dos indiv?duos. Em 1968, 1.200 economistas norte-americanos, dentre os quais alguns citados anteriormente, encaminharam um protesto ao Congresso dos Estados Unidos para que fosse institu?do um modelo de complementa??o de rendimentos (SILVA E SILVA, 2009). Os programas de transfer?ncia de renda brasileiros tamb?m se caracterizam, utilizando-se classifica??o de Stein (2005), em rendas m?nimas complementares em detrimento de rendas m?nimas substitutivas, pois, ao serem introduzidas no sistema de prote??o social brasileiro, somaram-se ?s experi?ncias e demais programas j? existentes, apenas complementando-os. Uma renda substitutiva viria, como o nome sugere, a substituir todos os programas de transfer?ncia de renda existentes, por uma ?nica renda, com vistas a, de acordo com o pr?prio governo, reduzir influ?ncias clientelistas. Outro ponto de fundamental import?ncia acerca dos programas de transfer?ncia de renda brasileiros, ? que estes, a exemplo do modelo franc?s ? RMI, e da grande maioria dos outros modelos adotados mundo afora, possuem como eixos epistemol?gicos o princ?pio da efici?ncia econ?mica, ? englobando tanto a redu??o de custos quanto a inje??o de recursos na economia e a amplia??o da base fiscal ?; da ativa??o para o mercado de trabalho e, consequentemente, da auto-responsabiliza??o do indiv?duo. Ou seja, os modelos ?atuais? de transfer?ncia de renda brasileiros, al?m de um est?mulo ? informalidade, n?o questionam, e nem se prop?em a evidenciar o lado perverso da produ??o capitalista. 3.5 - Imprecis?es conceituais no campo da Assist?ncia Social e o mito da ?assistencializa??o? das Pol?ticas Sociais. Ap?s o exposto, pode-se perceber que impera a falta de uma identidade concretamente definida e a exist?ncia de uma persistente imprecis?o conceitual e te?rica no campo da Assist?ncia Social. Essa falta de defini??o e diferencia??o pode ocorrer de duas maneiras: a) no aspecto institucional e de organiza??o administrativa; b) no aspecto de identidade te?rica e conceitual. No aspecto institucional, a Constitui??o de 1988 deu ? Assist?ncia Social um status de pol?tica p?blica e de direito nunca antes observado nem em outras partes do mundo. A partir desde marco, e posteriormente com a aprova??o da 95 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado LOAS, a pol?tica de Assist?ncia disp?s n?o somente de um lastro legal, mas passou tamb?m a construir um aparato administrativo e burocr?tico que desse forma ?s suas a??es. No campo te?rico e conceitual, a despeito de a Assist?ncia Social ser, como aponta Potyara Pereira ?um fen?meno antigo, duradouro e ub?quo e, portanto, relevante do ponto de vista emp?rico e hist?rico, quase n?o existem esfor?os intelectuais no sentido de construir uma base anal?tico-conceitual a partir destas evidencias? (PEREIRA- PEREIRA, 2006, p.9). Em vista disso, n?o por acaso, a Assist?ncia Social teve e ainda tem dificuldades em compreender-se como fen?meno a ser entendido emp?rica e cientificamente como um direito devido. Pelo contr?rio, ele sempre se definiu de acordo com ideias e preconceitos, ou conforme as suas mais marcantes anomalias e distor??es. N?o ? de espantar que diante de tais indefini??es e lacunas te?ricas ocorram debates como os que est?o presentes na academia h? mais ou menos 20 anos, sobre a ?assistencializa??o? das pol?ticas sociais. Mais interessante ainda ? notar que esta mesma afirma??o se desdobrou em tr?s vertentes distintas ao longo do tempo quais sejam: 1? ? a da tend?ncia de um direcionamento das pol?ticas sociais em torno da Assist?ncia social; 2? - a que aponta estar ocorrendo uma ?assistencializa??o? das pol?ticas sociais brasileiras em virtude do predom?nio de pol?ticas de cunho ?assistencialista?, de tipo compensat?rio; 3? ? a vertente que aponta haver uma ?assistencializa??o? das pol?ticas sociais devido ? transfer?ncia de responsabilidades do setor p?blico para o setor privado. A seguir apresentam-se os principais argumentos de cada vertente bem como algumas das suas mais importantes express?es, para, finalmente, tecer coment?rios sobre cada uma delas. A primeira vertente a utilizar o termo ?assistencializa??o?, de certa forma ? a ?nica que poderia ser considerada verdadeiramente uma ?corrente?, tendo em vista a densidade te?rica e a quantidade de autores renomados no estudo das pol?ticas sociais que lhe d?o voz, tais como: S?nia Draibe, Ana Elisabete Mota, Jos? Paulo Netto, entre tantos outros. Esta corrente afirma que tem havido uma maior polariza??o na Pol?tica de Assist?ncia Social haja vista a relev?ncia dada a programas compensat?rios, como os de transfer?ncia de benef?cios monet?rios focalizados, que ? caso do Bolsa Fam?lia e do Benef?cio de Presta??o Continuada (BPC) entre outros da mesma modalidade. Tais afirma??es se devem ao novo aparato governamental criado para o enfrentamento das desigualdades e para ?atenuar? os efeitos nefastos da precariza??o do trabalho, cujo eixo central s?o os programas sociais focalizados na pobreza extrema. De acordo com dados referentes ao gasto social publicados, por exemplo, por Pochmann em 96 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado 2007, a Pol?tica de Assist?ncia Social teve uma eleva??o real per capita no per?odo de 2001 a 2005 de 11,11%, enquanto que a Pol?tica previdenci?ria teve uma redu??o per capita de -0,70% e a de sa?de tamb?m uma redu??o de -7,49%. Tais dados indicam ainda que, em m?dia, os gastos com a ?rea social tiveram uma redu??o per capita neste mesmo per?odo, assim como o investimento do Governo Federal (-2,73% e -39,73% respectivamente) (POCHMANN apud BOSCHETTI 2008). Segundo Salvador (2010), os gastos com programas de transfer?ncia de benef?cios monet?rios condicionados, cresceram a sua participa??o em 15 vezes, indo de um gasto de 0,20% em rela??o ao PIB para 3,02% em 2007. Enquanto isso, os gastos com atendimento hospitalar do SUS, reduziram a sua participa??o em rela??o ao conjunto da Seguridade Social (de 8,58% em 2000 para 6,68% em 2007) (SALVADOR, 2010, p. 255). Embora existam varia??es de um estudo para outro, a depender da s?rie hist?rica de dados analisada, do tipo de rela??o entre as vari?veis e da metodologia utilizada, tais estudos indicam uma mudan?a de prioridades no tocante ao gasto federal com a seguridade social, seja nominalmente, seja em rela??o ao PIB, ou seja, ainda, em rela??o ao gasto real (per capta). Para Ana Elisabete Mota est? ocorrendo um redirecionamento de for?as em dire??o ? Assist?ncia Social e um enfraquecimento paulatino e consequente sucateamento das demais pol?ticas da Seguridade Social. Segundo ela: Arma-se a burguesia de instrumentos para esgar?ar a hist?rica rela??o entre trabalho e prote??o social, visto que a partir de ent?o a tend?ncia ? ampliar as a??es compensat?rias ou de inser??o, antes restritas ?queles impossibilitados de prover o seu sustento e, ao mesmo tempo, impor novas condicionalidades de acesso aos benef?cios sociais e materiais nos casos de afastamento do trabalho por doen?as, acidentes, desemprego tempor?rio, para n?o falar na perda de poder aquisitivo das aposentadorias [...]. No caso da sa?de, a despeito do estatuto da universalidade, a realidade aponta para dois mecanismos: o do acesso a servi?os privados [...] e o da expans?o de planos de sa?de populares [...] (MOTA, 2007, p. 132). A ?assistencializa??o? das pol?ticas sociais seria, portanto, a express?o concreta do que Mota define como a ?fetichiza??o" da Assist?ncia Social, uma vez que, para a autora, depositou-se na Assist?ncia a responsabilidade por encontrar solu??es para a profunda desigualdade social brasileira, para o desemprego e a precariza??o do trabalho. Situa??es estas que ?extrapolariam as finalidades de uma pol?tica de Assist?ncia Social? (MOTA, 2008, p.16). Trata-se, desta forma, de um percurso natural diante da incapacidade de o Estado garantir o direito ao trabalho. 97 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado A segunda corrente indicada nesta disserta??o, que afirma estar ocorrendo uma ?assistencializa??o? em decorr?ncia da predomin?ncia de pr?ticas assistencialistas e focalizadas, n?o difere muito da primeira. A vertente anteriormente apresentada tamb?m demonstra preocupa??o com os rumos das pol?ticas sociais j? que as mesmas tendem a ser cada vez mais residuais e paliativas. A diferen?a entre as duas ? que a primeira n?o perde de vista a import?ncia e o car?ter universalizante da Assist?ncia social, enquanto que a segunda demonstra certo desconhecimento do papel da Assist?ncia Social como componente estrat?gico e estruturante da Seguridade Social. Carlos Monta?o, em Col?quio realizado no Rio de Janeiro em 2002 apresenta a seguinte vis?o: A focaliza??o constitui um processo de verdadeira assistencializa??o da pol?tica social, na medida em que transfere para esta ?ltima as caracter?sticas pr?prias da assist?ncia, substituindo o car?ter preventivo daquela pelo curativo/reparador desta, o car?ter ex-ante da primeira pelo ex-post da segunda, o car?ter universal da pol?tica social pela focaliza??o pr?pria da atividade assistencial, a perspectiva delongo prazo da primeira pelo imediatismo da segunda. Neste sentido, processa-se uma substantiva altera??o na responsabilidade pela resposta ? "quest?o social". Se no contexto do Estado de bem-estar social esta ? de responsabilidade do conjunto da sociedade por via do Estado, agora ? fundamentalmente o pr?prio trabalhador quem tem o encargo de responder ?s suas necessidades e reproduzir-se como for?a de trabalho, liberando o capital deste "?nus". (MONTA?O, 2002, p.2) (Grifo adicionado) Monta?o (2002) apresenta aqui dois olhares acerca do atual est?gio das pol?ticas sociais brasileiras: um que demonstra de forma concisa a principal contradi??o de tais modelos de pol?ticas que ? a de, no final das contas, transferir as responsabilidades do Estado na satisfa??o das necessidades da classe trabalhadora, e mesmo do Capital, para os indiv?duos. Neste sentido, tais a??es teriam compromisso n?o com a prote??o social, mas com a auto-responsabiliza??o do indiv?duo por meio de pol?ticas centradas unicamente na renda, e com o atendimento a uma pequena parcela da popula??o, n?o comprometendo receitas com atividades economicamente mais atraentes. J? o segundo olhar, e o motivo pelo qual este autor figura como express?o desta segunda corrente, ? a associa??o imediata que este faz entre ?Assist?ncia Social? e ?focaliza??o?, como se a segunda fosse a express?o da primeira. Neste ponto vale recordar que a Assist?ncia Social ?quase nunca ? considerada pelo que ?, mas pelo que aparenta ser ou pelo tradicional (mau) uso pol?tico que fazem dela, onde est?o ocultas rela??es de poder, de antagonismos e reciprocidades s?cio-econ?micas de dif?cil visualiza??o e decodifica??o? (PEREIRA-PEREIRA, 1996, p.16). 98 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado A terceira vertente de concep??es sobre o atual rumo das pol?ticas sociais ? a da associa??o das pol?ticas assistenciais com o processo de privatiza??o e desresponsabiliza??o do Estado. Esta corrente ? mais comum entre estudiosos de outras ?reas acad?micas, que naturalmente n?o possuem um entendimento mais aprofundando sobre o tema, e geralmente associam a atividade assistencial com o exerc?cio filantr?pico privado. Alguns estudiosos das Pol?ticas Sociais e da Seguridade Social, entretanto, apontam um problema verdadeiramente preocupante e nocivo ao exerc?cio da cidadania e do direito, que ? a nefasta aproxima??o entre o p?blico e o privado. Contudo, n?o h? tratamento adequado do termo ?assistencializa??o?, quando estabelece um v?nculo entre a filantropia e a pol?tica assistencial, como se as duas fossem sin?nimas. Nessa linha, Rose Serra afirma que: De fato, est? em desenvolvimento um engenhoso processo de aprimoramento dessa atua??o focalista de enfrentamento da quest?o social atrav?s da utiliza??o de tecnologias que aperfei?oam os antigos modelos existentes, principalmente porque nos tempos neoliberais ganha corpo a rela??o p?blico/privado, o que confere e requer novas inventivas no trato social. Da?, ?novidades? como os Programas de Governo como o PRONASOL no M?xico e a Comunidade Solid?ria no Brasil, modelos com indica??o marcante da transfer?ncia ?invis?vel? das a??es estatais para o privado, pelas ?m?os? da assistencializa??o da prote??o social em nome da solidariedade, denomina??o atual da assist?ncia. (SERRA, 2007, p.5) (Grifo adicionado). Algumas vezes a utiliza??o do termo ocorre tanto para designar o deslocamento do sentido das pol?ticas, da esfera do direito, para a esfera do clientelismo, quanto para a privatiza??o / mercadoriza??o da prote??o social, que de acordo com Jabur (2009, p.31), autora da ?rea da psicologia social, com muito pouca sofistica??o e quase nula reflex?o, al?m de repetir os argumento liberais, as proposi??es do campo social foram, basicamente, num processo que se inicia ao final dos anos 80, aquelas que inspiraram os governos Tatcher e Reagan: as tentativas de desestabiliza??o dos pilares do Welfare State, reduzindo a universalidade e os graus de cobertura de muitos programas sociais, ?assistencializando?, isto ?, retirando do campo dos direitos sociais ? muitos dos benef?cios e, quando puderam, privatizando a produ??o, a distribui??o ou ambas as formas p?blicas de provis?o dos servi?os sociais. A partir desta perspectiva de ?ajuste social?, tr?s teses traduzem as reformas dos programas sociais: a descentraliza??o, a focaliza??o e a privatiza??o. ? importante frisar que, apesar de suas diferen?as, todas as opini?es apresentadas convergem para um mesmo ponto: o de que a ofensiva neoliberal em curso ? at? mais perigosa do que antes, pois se apresenta de forma mais camuflada. Se antes o capital 99 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado impunha restri??es ? implementa??o de qualquer pol?tica de prote??o social, hoje ele estimula pr?ticas, que sob o pretexto de serem a solu??o para a pobreza, aprofundam ainda mais as desigualdades e as injusti?as sociais. O que causa certa apreens?o, com rela??o a tais an?lises, ? a impress?o de que o que est? realmente em jogo ? simplesmente a import?ncia dada ? pol?tica de Assist?ncia Social, principalmente na Gest?o Lula, em detrimento das outras esferas da Seguridade Social, quando o que deve ser levado em conta ?, n?o apenas a desestrutura??o da Sa?de e da Previd?ncia (al?m de outras pol?ticas como educa??o e habita??o), mas o que se faz e o que se pensa ser, atualmente, a pol?tica de Assist?ncia Social. Alguns chegam a afirmar estar ocorrendo uma ?hipertrofia da pol?tica de assist?ncia social?, quando o que deveria realmente estar na pauta de discuss?es s?o as distor??es impostas a essa pol?tica e o seu ?nfimo financiamento (com pouco mais de 1% do PIB, a despeito do seu grande crescimento percentual), simultaneamente ? ?atrofia? de pol?ticas como a sa?de, educa??o e pol?ticas t?o negligenciadas como a de habita??o. S?o ineg?veis os benef?cios que programas como o Bolsa Fam?lia e o BPC t?m trazidos para as popula??es de baixa renda, assim como tamb?m s?o inquestion?veis as suas lacunas, limita??es e at? mesmo perigos; mas ao colocar os holofotes apenas nos seus aspectos falhos, dando a impress?o de que a pol?tica de assist?ncia est? tendo uma import?ncia que n?o deveria ter, ? dar armas para que futuros governos destruam as poucas conquistas que esta pol?tica obteve ap?s a sua institucionaliza??o como ?direito de cidadania?. A utiliza??o da express?o ?assistencializa??o?, ao mesmo tempo em que associa a pol?tica de Assist?ncia ?s suas distor??es e ao uso perigoso que se tem feito dela, acentuando e perpetuando preconceitos, esvazia a sua for?a pol?tica e institucional como pol?tica p?blica que visa concretizar direitos. Al?m disso, reduz-se toda uma gama complexa de quest?es e problemas de ordem estrutural a uma mera quest?o de disputa de prioridades entre pol?ticas ? ?ou quem deve roer o osso? ? quando devem ser exigidos maiores recursos e espa?os de atua??o para todas as pol?ticas sociais, como uma pol?tica ?realmente universal? para a sa?de. E n?o que enormes montantes em dinheiro sejam gastos com os planos privados, que pol?ticas habitacionais sejam finalmente implementadas para que as estat?sticas anuais de cat?strofes fa?am parte de um passado distante. 100 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Quando a discuss?o sobre a precariedade e residualidade das pol?ticas sociais brasileiras desloca-se somente na dire??o da import?ncia dada ? Assist?ncia (como se esta pol?tica fosse o que est? se fazendo dela) em rela??o ?s demais pol?ticas, o debate se empobrece e se apequena. A partir do momento em que se discutir em un?ssono o que est? sendo feito com a Seguridade Social como um todo, al?m das demais pol?ticas sociais fora do seu escopo, ver-se-? que os desafios s?o bem mais complexos do que a apar?ncia apresenta. Ser? que o que verdadeiramente importa, e o ponto central da quest?o n?o ? o papel relegado ?s Pol?ticas Sociais em seu conjunto, em detrimento de pol?ticas que visem a rentabilidade econ?mica? Ser? que n?o se deveria, em primeiro lugar, questionar os investimentos e recursos p?fios destinados aos programas sociais? Ser? que n?o se deveria questionar a verdadeira descaracteriza??o da pol?tica de Assist?ncia Social como ocorre hoje? O volume de recursos destinados para a Assist?ncia social na ?ltima gest?o n?o seria simplesmente ?o? problema, como muitos analistas d?o a entender, se tais recursos fossem destinados a programas sociais e servi?os de qualidade, de escopo universal e orientados pelo direito, e n?o por rela??es clientelistas ou de balc?o de neg?cios. Se mesmo programas como o Bolsa Fam?lia ou o BPC tivessem outra orienta??o e fossem coadjuvantes de servi?os e programas sociais estruturantes, o gasto social logicamente seria bem superior ao observado atualmente. Mas n?o ? esta a quest?o. A quest?o ? que as atuais cr?ticas ? pol?tica de Assist?ncia d?o a entender que a Assist?ncia ? realmente isso o que se tem observado. Como se ela tivesse passado da condi??o de ?gata borralheira? para a de ?cinderela?. A ?ltima gest?o do presidente Lula, a pretexto da sua suposta preocupa??o com os pobres, provocou um total desvirtuamento da Assist?ncia Social, ocasionando o que outros autores, como Pereira-Pereira (1996), chamam de ?(des)assistencializa??o?62. Esta ?desassistencializa??o?, segundo Pereira-Pereira (2010), tem servido sobremaneira aos imperativos do neoliberalismo e da globaliza??o neoliberal, ou pelo alto, de estimular o consumo, o empreendedorismo e a chamada ?ativa??o para o mercado de trabalho?. Neste sentido, nunca a assist?ncia social esteve t?o atrelada ao trabalho como hoje. A autora aponta, ademais, que est? em curso um processo de invers?o de pap?is das pol?ticas sociais, com predom?nio 62 Esse termo foi empregado, pela primeira vez, por Pereira-Pereira, em 1996, em resposta ao uso do termo ?assistencializa??o? por S?nia Draibe (1993). 101 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado da ?tica da auto-responsabiliza??o e do individualismo competitivo [...] est? havendo uma cont?nua e crescente passagem de um padr?o capitalista de Estado Social de Direito para outro padr?o capitalista de Estado neoliberal meritocr?tico, de car?ter laborista ou do que a literatura especializada vem chamando de transi??o do Welfare State de estilo keynesiano / fordista para o ?Workfare State? de estilo Schumpeteriano/ p?s-fordista. (PEREIRA-PEREIRA, 2010, p.) Em vista disso, ressalta-se a necessidade de novas reflex?es e uma mudan?a de foco nos presentes debates sobre a assist?ncia, pois os seus rumos atuais tendem a manter as coisas como est?o: em dire??o ? fragmenta??o dos ganhos conquistados pela Constitui??o de 1988. Ao final destas reflex?es poder? ser poss?vel responder, com mais precis?o, a seguinte pergunta: o que est? realmente ocorrendo ? uma ?hipertrofia da Assist?ncia Social?, ou uma gradual desestrutura??o da pol?tica social em seu conjunto ? consequ?ncia da influ?ncia direta ou indireta de organismos internacionais multilaterais, em especial, do Banco Mundial? 102 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado CAP?TULO 4 ? Os organismos multilaterais e oficiais como influ?ncias te?ricas, pol?ticas e ideol?gicas - o caso emblem?tico do Banco Mundial 4.1 - Um breve hist?rico do desenvolvimento da influ?ncia do Banco Mundial ? ?bvio que uma dire??o pol?tica e governamental que leve a cabo um conjunto de pol?ticas, projetos, programas e demais expedientes, n?o ? tomada ao acaso ou fruto de um bloco de poder monol?tico. As decis?es e a??es dos governos63 tanto refletem os jogos pol?ticos e interesses disputados, como s?o frutos de influ?ncia interna e externa. Por conseguinte, podem ser resultado de influ?ncias: a) da legenda pol?tica ? qual o governo se vincula, bem como de seus aliados pol?ticos; b) das legendas de oposi??o; c) da sociedade civil, como formuladora de opini?o p?blica; d) dos movimentos sociais, como representantes da sociedade civil, organizados politicamente e com maior poder de influ?ncia e press?o; e) do pr?prio aparelho burocr?tico estatal; f) do aparelho jur?dico e legal ? tanto interno quanto externo (acordos, tratados e conven??es internacionais); g) da m?dia, como formuladora de opini?o e disseminadora de ideologia (seja ela dominante ou n?o); h) de institui??es religiosas; i) do terceiro setor j) do mercado; k) da academia (universidades, institutos e centros de pesquisa), como geradora de teorias, ideologias e l?cus e ve?culo de produ??o cient?fica; l) e, finalmente, dos organismos internacionais e multilaterais, tais como o FMI, o Banco Mundial, a ONU (e seus institutos de pesquisa), o BID, os blocos econ?micos e supranacionais (Mercosul, Alca, Euro), entre outros. Todos estes atores ou sujeitos circunscrevem-se em um sistema de rela??es de classe (de luta de classes), que produzem rela??es econ?micas e de produ??o, que por sua vez est?o ?ligadas constitutivamente ?s rela??es pol?ticas e ideol?gicas que as consagram e legitimam? (POULANTZAS, 1981, p. 41). Com base nessa premissa, ao se estudar o arcabou?o pol?tico, ideol?gico e te?rico que serviu de alicerce para a compreens?o mais circunstanciada da pol?tica de assist?ncia social brasileira, tornou-se necess?rio investigar como foi o processo dial?tico e contradit?rio de realiza??o desta pol?tica. Dial?tico e contradit?rio, porque tal processo n?o ocorreu de forma linear e harm?nico e nem foi movido por uma vis?o manique?sta entre o 63 Aqui a utiliza??o da express?o ?governo? em lugar de ?Estado? ? utilizada para demarcar o objetivo proposto que ? o de definir e qualificar as op??es pol?ticas do ?aparelho pol?tico-administrativo? do Estado. 103 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado bem e o mal, mas por uma mir?ade de determina??es e de interesses, assim como de avan?os e retrocessos. Assim, mesmo que, nesse processo, um direcionamento pol?tico tenha sito tomado em favor de uma classe hegem?nica (no caso, a burguesa) ? e no sistema capitalista esta foi e ser? uma constante enquanto n?o houver a sua supera??o ? n?o se pode ignorar as conquistas e resist?ncias dos estratos n?o-hegem?nicos. Em muitas ocasi?es, estes estratos (que tamb?m transitam pela arena governamental) obtiveram vit?rias ou atuaram como forte resist?ncia aos interesses do capital (como no caso do processo que culminou com a Constitui??o Federal de 1988). Ao longo desta disserta??o foram apresentados os processos de constru??o da pol?tica de assist?ncia social tanto em rela??o ? sua pr?pria institucionaliza??o, quanto em rela??o ? sua estrutura??o fiscal (nestes dois casos, processos de foro interno). Mas, agora, faz-se necess?ria uma an?lise sobre os vetores de influ?ncia te?rica, econ?mica e pol?tica externa, que tamb?m tiveram presen?a privilegiada e determinante nesse processo, na d?cada de 1980. Isso porque, muitos s?o os vetores de influ?ncia externa, seja no meio cient?fico, acad?mico e pol?tico, seja no pr?prio mercado global (com seus ?nimos expressos pelas bolsas de valores ao redor do mundo e, particularmente, na de Wall Street). A primeira d?cada do s?culo XXI diferencia-se das anteriores pela pretensa aura de independ?ncia pol?tica e ideol?gica do Estado brasileiro. Contudo, embora n?o haja muitas evid?ncias concretas, em compara??o com d?cadas anteriores, da liga??o pol?tica dos organismos multilaterais, como o Banco Mundial, o FMI ou o BID, com o governo brasileiro, na condu??o das pol?ticas sociais nacionais, ? not?ria a influ?ncia desses organismos no pensamento e linguagem dos ide?logos e administradores dessas pol?ticas. E nesse processo o Banco Mundial foi um dos principais protagonistas, como ser? tratado a seguir64. Mas, antes ? importante que se diga, conforme Baer e Lichtensztejn (1986) que, embora o comportamento de organismos multilaterais, como o Banco Mundial e o FMI, seja em grande parte atribu?do, equivocadamente, a um vi?s puramente ideol?gico, suas a??es, assim como suas ideologias resultam de um arcabou?o te?rico s?lido e de forte apelo junto aos meios governamentais. Consoante os autores, rejeitar a exist?ncia dessa fonte te?rica ?pode incorrer no paradoxo de rejeitar frontalmente a ideologia do Banco 64 Muito embora outros organismos como o FMI, o BID e a ONU, por meio das suas ag?ncias (Internacional Poverty Centre ? IPC, UNESCO, PNUD) tamb?m tenham tido papel importante na constitui??o deste ?pensamento? e ?linguagem?. Por isso, tra?os de outras influ?ncias ser?o tratados pontualmente ao longo deste texto, embora o foco seja no Banco Mundial. 104 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Mundial e, simultaneamente, aceitar de maneira t?cita e parcial a sua teoria? (BAER; LICHTENSZTEJN,1986, p. 186). A influ?ncia inconteste do Banco Mundial sobre os pa?ses do capitalismo perif?rico deve, antes de tudo, ser observada como resultado de um processo encabe?ado pelo pr?prio mercado. Ou melhor, o papel atual do Banco deve ser observado, n?o apenas como resultante de eventos de ordem conjuntural como o fim da Segunda Guerra, mas como decorr?ncia do desenvolvimento do pr?prio modelo capitalista, que, por seu turno, se expressa e concretiza por meio do capitalismo monopolista e transnacional (e, na atualidade por meio de empresas do setor financeiro e especulativo). A express?o ?transnacional? define claramente o est?gio de evolu??o destes organismos, que hoje s?o capazes de estabelecer o seu pr?prio espa?o de influ?ncia global. Contudo, apesar da falta de uma nacionalidade, tais empresas, assim como o mercado de forma geral, n?o teriam o poder pol?tico e econ?mico que possuem, n?o fosse a aquiesc?ncia dos governos dos seus pa?ses de origem (DOWBOR, 1998). Segundo Dowbor (1998, p.86), o peso das transnacionais ? refor?ado pelo fato que se trata cada vez menos de simples empresas que produzem em escala mundial, e cada vez mais de empresas organizadoras da produ??o, comercializa??o, financiamento e promo??o, com impacto de reordenamento do universo econ?mico, que vai muito al?m das fronteiras da propriedade empresarial. O autor assinala ainda, que, em rela??o ? estrutura de poder, este deixou de se concentrar nas m?os de um mero ?propriet?rio? para ?fluir? nas m?os de acionistas e grupos de acionistas, fundos de investimento e seguradoras. No entanto, ao contr?rio do que Dowbor (1998) afirma, os organismos multilaterais, como o FMI, o Banco Mundial, ou o BID, n?o est?o se tornando estruturas obsoletas e ?desatualizadas?, que estariam sendo suplantadas pelas c?pulas regionais e mundiais, como o G-7, G-20, os f?runs econ?micos mundiais, entre outros. Conforme apontam Pereira (2010), Mason e Asher (1973), Castro (2009), o Banco Mundial sempre teve uma rela??o muito estreita com Wall Street e com grandes representantes do setor capitalista financeiro e industrial65, como o Grupo Rockefeller e Funda??o Ford. Estes, inclusive, tiveram influ?ncia importante na cria??o futura de ag?ncias e institutos do Banco, como a Associa??o Internacional de Desenvolvimento (AID), a Corpora??o Financeira Internacional (CFI) e o Instituto de Desenvolvimento Econ?mico (IDE) ? sendo este ?ltimo um instrumento decisivo para a 65 Das onze gest?es (presid?ncias) do Banco Mundial, sete foram desempenhadas por executivos do setor banc?rio, financeiro e automobil?stico. 105 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado articula??o ideol?gica entre os interesses pol?ticos das economias centrais e as demais economias perif?ricas. ? bem verdade que ao longo da exist?ncia do Banco Mundial este se viu diante de momentos de altera??o institucional e reorienta??o pol?tica. Por?m, tais mudan?as ocorreram mais como adapta??o ?s mudan?as no mundo, como no caso da guerra fria e da necessidade de estabelecer entraves ao avan?o sovi?tico ou da subsequente prioriza??o dos pa?ses pobres e em desenvolvimento, como forma de conter conflitos internos e garantir o escoamento de produtos norte-americanos. Muitas foram as mudan?as de enfoque do Banco Mundial, mas sempre mantendo como horizonte a defesa dos interesses dos Estados Unidos e de mais pa?ses centrais (PEREIRA66, 2010). O estudo da influ?ncia do Banco Mundial sobre a formula??o e gest?o de pol?ticas p?blicas nos pa?ses sob sua influ?ncia ? fundamental, pois este organismo se constituiu em um importante elo entre os objetivos de uma elite hegem?nica mundial e o restante do mundo; e essa influ?ncia se fez muito presente no Brasil. Segundo Pereira, a influ?ncia nevr?lgica dessa institui??o se deve ? sua condi??o singular de emprestador, formulador de pol?ticas, ator social e veiculador de ideias ? produzidas pelo mainstream anglo- sax?nico e disseminadas por ele ou produzidas por ele, em sintonia com o mainstream ? sobre o que fazer, como fazer, quem deve fazer e para quem, em mat?ria de desenvolvimento capitalista (2010, p.260). Na gest?o de Robert Macnamara, entre 1968 e 1981, o Banco Mundial n?o s? ampliou sobremaneira as suas opera??es de empr?stimos67 (financiadas em grande parte pela emiss?o de t?tulos no mercado), como tamb?m o seu apelo junto ao mercado mundial e aos demais governos centrais se tornou mais intenso. Com efeito, a obten??o de empr?stimos junto ao Banco significava uma porta aberta a novos empr?stimos governamentais e privados. Portanto, j? naquele momento fechar ?s portas ao Banco significaria fechar ?s portas a uma s?rie de vantagens junto ?s fontes internacionais de empr?stimo. 66 PEREIRA. Jo?o M?rcio M. O Banco Mundial como ator pol?tico intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civiliza??o Brasileira, 2010. 67 N?o por acaso este foi o momento em que a institui??o mais se aproximou de um Banco Comercial e menos de um Banco de desenvolvimento. Neste per?odo n?o importava a qualidade ou o impacto socioecon?mico dos empr?stimos, mas sim o seu volume (PEREIRA, 2010). 106 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado A entrada em cena do Banco Mundial, como ator intelectual e te?rico, teve o seu in?cio em 1970, com a nomea??o de Hollis Chenery (ex-professor de Stanford e Harvard) para o cargo de economista-chefe do Banco e, posteriormente, vice-presidente de Pol?tica de Desenvolvimento. O objetivo da expans?o do seu departamento de pesquisa era n?o s? fornecer elementos para a amplia??o e cria??o de pol?ticas mais eficientes, mas tamb?m, e principalmente, para potencializar os efeitos das suas ?pol?ticas de governo? (PEREIRA, 2010). Destarte, o Banco percebeu que uma influ?ncia direta sobre os governos teria impactos muito mais profundos e abrangentes do que os seus projetos setoriais (KAPUR et al, 1997). Tal influ?ncia se daria tanto pela cria??o de estrat?gias de ?assist?ncia t?cnica?68, quanto pela cria??o e dissemina??o de teorias, paradigmas e modelos de ?boas? pr?ticas na ?administra??o de problemas sociais?, por meio de pol?ticas p?blicas mais eficazes. Como inicialmente o ?rg?o refletia as concep??es malthusianas do seu corpo diretivo, as suas a??es direcionavam-se mais para quest?es de ordem nutricional e de controle demogr?fico, de acesso ? ?gua e saneamento. Contudo, embora a pobreza ainda fosse entendida como fruto da explos?o demogr?fica, j? come?ava a haver, na d?cada de 1970, um entendimento de que o modelo econ?mico vigente n?o era capaz de conter a escalada crescente da pobreza, conquanto que essa reflex?o ainda n?o fosse tratada abertamente (FINNEMORE, 1997; PEREIRA, 2010). Era, portanto, fundamental que o Banco Mundial empreendesse uma ?cruzada contra a pobreza?, principalmente visando ? conten??o de movimentos democr?ticos e nacionalistas (como o de Salvador Allende no Chile). De acordo com Pereira (2010), o marco te?rico da vincula??o do Banco com tal empreendimento foi a publica??o, em 1974, de Redistribution with Growth, coordenado por Hollis Chenery, no qual despontavam conceitos como pobreza absoluta e pobreza relativa, conceitos estes que viriam a servir de paradigma te?rico para a cria??o e an?lise de pol?ticas sociais ao redor do globo (n?o apenas no meio governamental, mas na pr?pria academia). Com isso, o Banco Mundial dava provas (ainda que embrion?rias) do seu poder de influ?ncia, at? mesmo sobre o pr?prio estudo das pol?ticas sociais. Entretanto, tal publica??o tratava a pobreza como um fen?meno dado, naturalizado e deslocado das suas determina??es estruturais. A despeito do t?tulo, do documento (?redistribui??o com 68 Segundo Pereira (2010) esta assist?ncia t?cnica poderia se dar por meio da cria??o de institui??es nacionais (no interior dos Pa?ses sob sua influ?ncia), cria??o de unidades de projeto dentro de minist?rios e a reorganiza??o / fortalecimento de institui??es estrat?gicas. 107 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado crescimento?), nada havia de solu??es redistributivas, mas sim de meras abstra??es e divaga??es sobre o dever moral das elites em ajudar aos pobres, repartindo, por esse meio, uma pequena parte do ?crescimento? econ?mico concentrado. Nada havia, portanto, de concreto e material, como solu??o para o enfrentamento da pobreza; e as a??es subsequentes se concentraram, verticalmente, no desenvolvimento de pequenas (e potencialmente mais produtivas) propriedades agr?colas. (PEREIRA, 2010; LACROIX, 1985). Contudo, apesar da aus?ncia de uma diretiva que definisse estrat?gias redistributivas ou ao menos distributivas, n?o se pode negar que a ado??o do conceito de pobreza como ?unidade de an?lise?, significou um avan?o de mentalidade para o Banco Mundial, que at? ent?o sequer considerava esta categoria. Kay (2006) define este momento como o in?cio da era da ?pobretologia?, isto ?, da introdu??o do seu estudo como uma ci?ncia exata, germe do economicismo reinante ap?s este marco, e no qual a pobreza significava apenas aus?ncia de capacidades produtivas e de inser??o na virtuosa roda do crescimento econ?mico. A pobreza - como inclusive ? uma t?nica nos dias atuais, em que o econ?mico impera no estudo das pol?ticas sociais - desmembrou-se em conceitos como produtividade, custo-benef?cio, renda, ativos e cr?dito, em detrimento de conceitos chave como explora??o e luta de classes (PEREIRA, 2010), que s?o os ?nicos capazes de explicar a pobreza em sua totalidade e complexidade. A obra de Chenery (1974) foi germinal na dissemina??o e solidifica??o de uma ideologia e, at?, de uma teoria, mesmo que carente de profundidade social e de vi?s economicista ? como, ali?s, ? uma constante na an?lise sobre pol?ticas sociais. Tal obra n?o s? n?o visava atacar o problema da redistribui??o, como, diante da impossibilidade desta em uma sociedade capitalista, erigir todo um arcabou?o argumentativo defender uma redistribui??o gradual de ativos econ?micos, basicamente por meio de pol?ticas de incremento de produtividade e de pol?ticas sociais residuais que retroalimentassem esse aumento de produtividade (como foi o caso das pol?ticas educacionais e de sa?de). Segundo Chenery (1974), uma redistribui??o abrupta de ativos e de renda traria impactos negativos ao crescimento econ?mico, reduzindo sua produtividade. Em vista disso, apenas os novos ativos e seus rendimentos deveriam ser redistribu?dos ? e n?o os j? existentes ? de modo a atender as necessidades mais elementares da popula??o pobre. De acordo com Baer e Lichtensztejn (1986, p.193), com esse racioc?nio, ap?ia-se uma redistribui??o de rendas e ativos, mas na margem, sem que se questione uma din?mica da acumula??o, que opera por diferencia??o do consumo, precisamente em virtude das agudas 108 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado desigualdades na apropria??o do excedente econ?mico. Devido a isso ? que n?o existem maiores refer?ncias de altera??es da propriedade em toda a estrat?gia do Banco Mundial. Os anos 1980, conforme apresentado no cap?tulo 1, foram os anos dos ajustes estruturais, sendo que as prescri??es do Banco Mundial, materializadas nos Relat?rios sobre o Desenvolvimento Mundial posteriores ao de 1980, procuravam criar um terreno socialmente prop?cio para a implementa??o das pol?ticas de ajuste. Entretanto, diferentemente da d?cada anterior, em que o gasto social era compreendido como um investimento necess?rio para a acumula??o capitalista (e isto se refletia nos documentos e relat?rios produzidos pelo Banco), na d?cada de 1980 este gasto era visto como uma forma de compensa??o e manuten??o da ordem social; isso porque, se sabia (mesmo que n?o fosse admitido explicitamente), dos altos custos sociais inerentes ao ajuste estrutural. Da? a ?nfase, maior do que nunca, na focaliza??o das pol?ticas sociais e a considera??o apenas da ?dimens?o absoluta? da pobreza (VILAS, 1997). Nesse momento tamb?m surgiu, com mais veem?ncia, o discurso da transitoriedade das pol?ticas sociais, at? mesmo porque tais pol?ticas deveriam se concentrar, principalmente, em iniciativas que desenvolvessem as capacidades produtivas dos benefici?rios (ideologia presente desde a d?cada de 1970, por?m mais evidente em 1980). Surgiu tamb?m, nesse momento, a orienta??o para a ado??o de parcerias entre o Estado e as organiza??es sociais. Em decorr?ncia, a partir desse per?odo come?ou tamb?m existir uma aproxima??o maior entre o Banco e as ONGs, iniciado ap?s os embates ocorridos com as organiza??es ambientalistas e o desgaste crescente da sua imagem perante a opini?o p?blica. Al?m de estabelecer um novo paradigma de rela??es entre o p?blico e o privado, presentes nas diretrizes dos Fundos Sociais de Emerg?ncia, que previam a cria??o de ?redes de prote??o social?, o Banco Mundial criou um lastro de confiabilidade e de responsabilidade ao estabelecer parcerias estreitas com as ONGs. Durante a fase dos ajustes estruturais nos pa?ses perif?ricos, o FMI teve papel crucial na execu??o dos programas de estabiliza??o econ?mica, enquanto o Banco Mundial, de forma complementar ao Fundo, auxiliava na formula??o das estrat?gias e adequa??o das pol?ticas p?blicas, utilizando-se da sua expertise tanto na ?rea social quanto no conhecimento da estrutura pol?tica dos pa?ses sob sua influ?ncia. Segundo Pereira (2010, p.250), ?o FMI estabelecia metas e crit?rios de desempenho fiscal e financeiro bem definidos?, sofrendo avalia??es quantitativas claras, enquanto que o Banco Mundial definia condicionalidades mais abrangentes e de impactos mais duradouros, at? mesmo sobre a 109 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado pr?pria cultura pol?tica do Pa?s ? como se verificou nos anos subsequentes. Contudo, e consoante o pr?prio autor, os pap?is entre as duas institui??es por muitas vezes se superp?s, sendo que em alguns momentos at? existiram contradi??es na condu??o de medidas de ajuste. Ainda na d?cada de 1980, ganhou relevo, no interior do Banco Mundial, a ideia de ?capital humano?, a qual impulsionou a participa??o do Banco na forma??o deste capital. Para tanto, o Banco Mundial norteou-se pelas orienta??es da pr?pria Organiza??o das Na??es Unidas para a Educa??o, Ci?ncia e Cultura (UNESCO), tra?adas desde a d?cada de 1970, as quais, apoiadas em contribui??es te?ricas de Theodore William Schultz69 (1973), percebem a educa??o n?o como meio de obten??o de autonomia cr?tica e participa??o social, mas como auxiliar do crescimento econ?mico, da amplia??o de capacidades produtivas e desenvolvimento de talentos individuais. Nessa dire??o, a UNESCO, teve (e ainda tem) papel importante na difus?o de uma cultura de ?capacita??o?, cultura esta oriunda de autores como Schultz e Gary Becker, que disseminada pelo Banco Mundial, que a atualizou e conferiu-lhe car?ter de estado da arte de boas pr?ticas pol?ticas. ? interessante notar que at? mesmo para o pr?prio Banco Mundial a d?cada de oitenta foi conturbada e repleta de press?es por parte do governo americano (de Ronald Reagan) que o obrigava a tomar medidas cada vez mais radicais em prol da redu??o da influ?ncia do Estado. Dessa feita, se antes havia ainda um sopro de humanidade no multilateralismo, os anos 1980 vieram para estirp?-lo completamente. A partir deste momento a pol?tica, tanto Banco Mundial, do FMI, quanto das demais ag?ncias multilaterais, seriam totalmente direcionadas para a consecu??o de todas as orienta??es do Consenso de Washington. Segundo Pereira (2010), em fun??o disso, numerosos funcion?rios de express?o no corpo do Banco, respons?veis pela dissemina??o da ideologia da ?cruzada contra a pobreza?, como Hollis Chenery, foram substitu?dos e passaram a integrar os quadros de outros organismos como, por exemplo, o PNUD70 (Programa das 69 Theodore William Schultz e Gary Becker s?o tidos como os pioneiros da teoria do capital humano. Em linhas gerais, esta teoria, em mais uma demonstra??o de economiza??o da complexidade humana e social, advoga que os fatores de produ??o de um Pa?s sofrem a influ?ncia direta do n?vel educacional da sua popula??o e da sua m?o-de-obra. Neste sentido, a educa??o (e todas as escolhas que envolveriam o desenvolvimento de capacidades) seria um investimento, capaz de no futuro n?o apenas ampliar o n?vel de renda do indiv?duo, mas de todo um Pa?s. Para Bendfeldt (1994, p.39), ?um livro, uma escola, um programa de ensino, uma nova descoberta e a simples experi?ncia do que ? ?til na vida s?o bens econ?micos?. 70 O PNUD, como descendente do ?natimorto? Fundo Especial das Na??es Unidas para o Desenvolvimento Econ?mico ? Sunfed, resultou de um embate ocorrido, no final da d?cada de 1950, entre a ONU e o Banco Mundial / governo norte-americano, que se opunham a cria??o de um ?rg?o que rivalizasse com as pretens?es do Banco, como ?financiador do desenvolvimento? (PEREIRA, 2010, p.146-148). 110 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Na??es Unidas para o Desenvolvimento). Sendo assim, o staff liberal do Banco Mundial, tido como de ?tend?ncias socialistas?, deu lugar a uma nova administra??o em sintonia com a mentalidade neoliberal vigente na pol?tica norteamericana (PEREIRA, 2010). Durante um lapso de sete anos, entre 1981 e 1987, o Banco Mundial expressou e executou as premissas do governo e do tesouro americano. Nesse per?odo, todos os relat?rios do Banco e seus acordos de empr?stimos seguiam uma linha de doutrinamento para que os pa?ses perif?ricos criassem as condi??es necess?rias para a libera??o de suas economias e dos seus mercados. O relat?rio de 1983 foi bastante direto na apresenta??o das seguintes solu??es para a crise fiscal dos pa?ses perif?ricos: a) cria??o de uma autoridade respons?vel pela coordena??o das pol?ticas de ajuste; b) aperfei?oamento dos sistemas internos de controle do gasto p?blico; c) redu??o da amplitude de atua??o do Estado, visando o repasse do maior numero poss?vel de atividades ? iniciativa privada; d) reforma do setor produtivo estatal objetivando o incremento da sua produtividade e a redu??o de custos, entre outras orienta??es voltadas ? maior penetra??o do mercado (BANCO MUNDIAL, 1983). Pouco tempo depois, tendo uma relev?ncia ainda maior no cen?rio internacional (de hegemonia norteamericana) o Banco Mundial passou tamb?m a estabelecer como orienta??es e condicionalidades a privatiza??o de empresas estatais (PEREIRA, 2010). A partir de 1987, com a troca de dire??o do Banco Mundial, a quest?o da pobreza e das pol?ticas sociais passou novamente a ser pauta das discuss?es internas e das suas prescri??es. Agora a justificativa era, n?o apenas a cria??o de condi??es para a consecu??o do ?efeito derrama? e a dissemina??o do progresso econ?mico, mas tamb?m uma forma de compensa??o (visando ? coes?o social) dos custos sociais dos ajustes estruturais, pois agora se reconhecia ? ainda que com resist?ncias ? que parcelas da sociedade n?o estavam e nem estariam futuramente inseridas no circuito do progresso econ?mico. Uma contribui??o importante do Banco Mundial na condu??o das pol?ticas sociais dos pa?ses perif?ricos foi a cria??o dos Fundos Sociais de Emerg?ncia ? FSE em mais de 70 pa?ses, com o objetivo claro de aliviar poss?veis tens?es sociais advindas dos ajustes estruturais. Tais fundos, geridos cada vez mais por ONGs, visavam financiar pol?ticas multissetoriais de curto prazo para popula??es extremamente pobres e que se enquadrassem em um perfil espec?fico (PEREIRA, 2010). O final da d?cada de 1980 observou um forte ?consenso?, entre as principais institui??es multilaterais ? Banco Mundial e FMI, o BID, o tesouro norte americano e 111 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado demais institui??es financeiras de Washington e Wall Street ? sobre a necessidade das reestrutura??es nos pa?ses da periferia, os m?todos de implementa??o dessas reestrutura??es e a sua intensidade, culminando tal sinergia no Consenso de Washington e nas suas amargas prescri??es em dire??o a uma plena liberaliza??o comercial e econ?mica desses pa?ses. Em decorr?ncia, os direitos sociais e trabalhistas foram os mais afetados, por supostamente atravancarem o progresso econ?mico nos moldes neoliberais. O Relat?rio de Desenvolvimento Mundial ? RDM de 1990 ? Poverty ? representou a s?ntese do pensamento dominante ? n?o apenas do Banco Mundial, mas tamb?m dos policy makers ? a respeito da pobreza, seus determinantes e estrat?gias de enfrentamento. Este relat?rio tinha como objetivo ?preparar o terreno? para as reformas, alertando para os seus custos sociais tidos como necess?rios ao desenvolvimento econ?mico e social naturalmente decorrente dos ajustes (em longo prazo). A partir desse documento consolidou-se um conceito de pobreza ? n?o muito diferente de suas concep??es passadas ? orientador de pr?ticas focalizadas, de car?ter compensat?rio, tendo em vista os ?referidos custos sociais? dos ajustes estruturais. A posi??o do Banco Mundial e dos demais membros do staff capitalista central era, portanto, a de subordinar as pol?ticas sociais ?s pol?ticas econ?micas. Fazendo uma analogia: seria como se um profissional de engenharia realizasse um diagn?stico cl?nico. E o que ? ainda pior ? prescrevesse medicamentos para uma enfermidade. O Banco Mundial em seu relat?rio de 1990 (tal como procedem muitos organismos e institutos que realizam pesquisa econ?mica aplicada) analisa a pobreza, a define e prescreve medidas de enfrentamento como se a pobreza fosse apenas uma vari?vel econ?mica a ser problematizada/contabilizada via esquemas matem?ticos e econom?tricos (abordagem esta criticada at? mesmo por Amartya Sen). Ou, para citar a Ministra da Fazenda do governo Collor: como se pobreza fosse ?um detalhe?. Mais precisamente: de acordo com o referido relat?rio, a pobreza n?o est? relacionada apenas com uma linha de pobreza (ou a um padr?o m?nimo de consumo), mas deve ter em vista o n?vel econ?mico de um determinado Pa?s e a ?sua percep??o do que seja um n?vel m?nimo aceit?vel? (WORD BANK, 1990, p. 27). Neste sentido, pobreza (segundo este documento) est? vinculada ? incapacidade em se ?consumir? itens essenciais ? sobreviv?ncia e a uma razo?vel nutri??o. A pobreza deve, portanto, ser medida n?o apenas pela renda, mas pelo seu ?ponderador? (o consumo), que reflete as caracter?sticas econ?micas de determinado pa?s ou regi?o geogr?fica (se ?rea rural ou urbana). 112 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Observa-se, contudo, que, a despeito de esse relat?rio, inserir-se num contexto francamente neoliberal, ele procura dar um tom moderado ?s suas an?lises e prescri??es, n?o abandonando posi??es de d?cadas anteriores nem ?demonizando? o papel do Estado no que tange a promo??o de pol?ticas sociais. Entretanto, o papel estatal71 ? bem delimitado pelos seguintes vetores: 1?. Oportunidades ? um ente catalisador de oportunidades para o livre mercado ? que naturalmente conduziria ao crescimento econ?mico e a gera??o de empregos; 2?. Autonomia ? como promotor de servi?os e benef?cios sociais como sa?de e educa??o b?sicas e como fomentador de parcerias entre pobres, n?o pobres e o mercado. Tal vetor facilitaria o ingresso do pobre no circuito do mercado e dar-lhe-ia maior poder de participa??o pol?tica e decis?ria via fortalecimento e abertura institucional; 3?. Seguran?a ? o termo seguran?a est? aqui relacionado a riscos e conting?ncias ? pol?ticas voltadas para situa??es transit?rias, tais como cat?strofes naturais, doen?as e ?choques econ?micos? (BANCO MUNDIAL, 1990). O relat?rio de 1990 tamb?m deu consider?vel ?nfase ao investimento em ?capital humano?, por meio de pol?ticas de educa??o b?sica e sa?de, considerada como estrat?gia central para o desenvolvimento da autonomia do indiv?duo, sua empregabilidade e produtividade (tanto do seu trabalho quanto dos seus bens de produ??o). O documento faz uma breve explana??o sobre as potencialidades das transfer?ncias como fonte de renda para os pobres, sem deixar claro de onde partiriam tais iniciativas (se do Estado, parentes, ONGs ou do mercado via linhas de cr?dito). Contudo, j? h? uma clara sinaliza??o de que tais a??es seriam de grande ajuda ?s fam?lias mais pobres e vulner?veis economicamente e cujos membros integram a informalidade (BANCO MUNDIAL, 1990, p.36). Neste ponto vale fazer uma importante ressalva com rela??o ao relat?rio de 1990. Ao considerar a pobreza com base num crit?rio unidimensional, como a renda e, mais especificamente, o consumo (embora o documento discorra de forma rasa sobre as limita??es dessa unidimensionalidade), o relat?rio se posiciona claramente quanto ao papel da pol?tica social em face da pobreza: o de administr?-la economicamente, e n?o compreend?-la em sua multidetermina??o e rela??o umbilical com a desigualdade social, apesar de serem diferentes. Al?m disso, ao enfatizar o consumo como unidade de medida, 71 Sobre esta quest?o, o Relat?rio de Desenvolvimento Mundial, de 1991 ? O desafio do desenvolvimento ? ? mais espec?fico e enf?tico em rela??o ao papel do Estado como propulsor da abertura econ?mica via: a) reforma administrativa e pol?tica de privatiza??es; b) ajuste fiscal com vistas a redirecionar o gasto p?blico para a esfera financeira; c) e transfer?ncia de servi?os e fun??es p?blicas para as ONGs (PEREIRA, 2010; BANCO MUNDIAL, 1991). 113 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado desconsidera uma faceta crucial da pobreza qual seja: a inconst?ncia da renda e os mecanismos e estrat?gias de que o pobre lan?a m?o para que este consumo seja mantido em patamares minimamente aceit?veis (se por meio da informalidade, da mendic?ncia, da criminalidade, entre outros recursos de sobreviv?ncia). O relat?rio at? discorre sobre tais dificuldades, ao longo de seu texto, mas incorre em incoer?ncia ao privilegiar tais crit?rios. Ou melhor, o que importa para o relat?rio ? se o indiv?duo conseguiu ou n?o consumir determinada cesta de produtos, independente dos meios e situa??es que viabilizaram esse consumo. Entre 1980 e ao longo dos anos 1990, o Banco sofreu forte oposi??o de ONGs, principalmente ambientalistas, que se colocavam contra os efeitos nocivos dos ajustes empreendidos pelos pa?ses sob sua influ?ncia. A alternativa ent?o criada pelo pr?prio Banco Mundial para superar esta animosidade foi a de se juntar a elas, como parceiras e executoras de seus projetos, principalmente de assist?ncia internacional. Desta forma, do come?o de 1980 at? meados de 1990, quase metade dos projetos do Banco contavam com a participa??o direta ou indireta de ONGs, constituindo-se esta em grande estrat?gia de ingresso de recursos e influ?ncia nos pa?ses da periferia que estavam na mira dos ajustes estruturais (BARROS, 2005; PEREIRA, 2010). Como pode ser notado, a influ?ncia do Banco Mundial n?o se circunscreveu apenas ao ?mbito dos governos, mas tamb?m alterou at? mesmo a estrutura burocr?tica de atua??o de v?rias organiza??es n?o governamentais, constituindo este um novo paradigma de atua??o, semelhante ao de empresas e organiza??es multilaterais (PEREIRA, 2010). Al?m disso, a atua??o desses organismos serviu de forma ideal aos prop?sitos da reforma administrativa propalada nos relat?rios de desenvolvimento da d?cada de 1990 (WOODS, 2006; DAVIS 2006). Um exemplo brasileiro dessa triangula??o (Governo72 ? ONG ? Banco Mundial) foi o caso da implementa??o da Pol?tica Nacional de Combate ao HIV/AIDS, criada em 1985, que recebe aportes financeiros do Banco Mundial desde 1994. As pr?prias an?lises que se faziam antes e ap?s a reforma do Estado empreendida no governo de Fernando Henrique Cardoso ? como a realizada por Bresser-Pereira e Grau, em 1999; nessa reforma 72 A Constitui??o brasileira de 1988, que, de um lado, sofreu influ?ncias do seu momento hist?rico de investida neoliberal, e de outro, foi gestada por for?as progressistas que ensejavam uma ruptura com o passado autorit?rio (e portanto desejava um novo modelo de Estado ? supostamente mais ??gil e gerencial?, sem deixar de lado velhas pr?ticas centralizadoras) previa, a partir de seu artigo193, do Cap?tulo que trata da Ordem Social Social previa delimitar os espa?os de atua??o entre o Estado, o mercado e a sociedade civil (representada tamb?m pelas entidades do terceiro setor, ONGs ou Organiza??es Sociais/O.S.). Lei n? 9.637 de 15/05/98, que versa sobre as O.S. 114 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado em que se privilegiava o p?blico n?o estatal da relev?ncia das ONGs e de suas rela??es multilaterais. Com uma vis?o generalista e de certa forma ing?nua a respeito do car?ter dessas organiza??es73, como se elas representassem inteiramente os interesses da sociedade e n?o sofressem influ?ncia de interesses diversos, Bresser-Pereira e Grau (1999, p. 17), afirmavam que, em vez de um Estado Social-Burocr?tico que contrata diretamente professores, m?dicos, assistentes sociais para realizar de forma monopolista e ineficiente os servi?os sociais e cient?ficos, ou de um Estado Neoliberal que se pretende m?nimo e renuncia a suas responsabilidades sociais, um Estado Social-Liberal, que por sua vez proteja os direitos sociais ao financiar as organiza??es p?blicas n?o- estatais que defendem direitos ou prestam os servi?os de educa??o, sa?de, cultura, assist?ncia social, e seja mais eficiente ao introduzir a competi??o e a flexibilidade na provis?o desses servi?os. Fica claro que o Banco Mundial possui um apelo e influ?ncia que perpassam a simples rela??o de um Banco prestat?rio, pois, al?m dos acordos de empr?stimos (que podem ser casados aos do FMI), h? tamb?m a rela??o entre governos, mercado e Banco Mundial; sendo que este ?ltimo, expressa, em certa medida, os ?nimos e expectativas do segundo, j? que h?, de forma internalizada nos meios burocr?ticos, uma ?cultura? de autoridade e respeito ?s orienta??es do Banco e demais organismos ditos oficiais. Al?m disso, o Banco Mundial possui duas vertentes de atua??o que, como apontam Stern e Ferreira (1997), Wade (1997) e Pereira (2010), s?o muito bem estruturadas e articuladas. A primeira ? a vertente de pesquisa e difus?o de conhecimento, que, desde os anos 1980, possui uma equipe cada vez maior e mais equipada. Com efeito, o Banco Mundial ? a institui??o que mais gasta74 com pesquisa econ?mica e ?social?, mais do que qualquer outro instituto de pesquisa ou universidade (PEREIRA, 2010). A segunda vertente, a do relacionamento direto com os governos, possui um nexo direto com a ?rea de pesquisa, que ? quem estabelece o direcionamento das pol?ticas e define as condicionalidades dos empr?stimos. Al?m disso, e com base em an?lises de ex- funcion?rios do Banco, como Stern e Ferreira (1997) e Wade (1997), h? uma consider?vel 73 Que, como toda organiza??o humana, est? sujeita a influ?ncias e interfer?ncias de muitas frentes. De fato, assim como muitas ONGs serviram de ponte para projetos entre o Banco Mundial e o Estado, muitas tamb?m se prestaram, por exemplo, ao importante papel de cr?tica e resist?ncia contra projetos question?veis do Banco, como nos casos do projeto de transposi??o do rio Narmada na ?ndia e o projeto POLONOROESTE no Brasil. Muitas ONGs inclusive provocaram uma das maiores reformula??es no Banco em termos de transpar?ncia e cria??o de uma pol?tica de publicisa??o de informa??es em meados da d?cada de1990 (PEREIRA, 2010). 74 Segundo estudo de Stern e Ferreira (1997), at? meados de 1990 o Banco Mundial gastou em torno de R$ 25 milh?es em pesquisa. 115 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado rigidez e verticaliza??o no tocante ? atividade de pesquisa. O processo intelectual n?o abre margem a experimenta??es, inova??es e disson?ncias em rela??o ao definido pelo corpo diretivo e as pesquisas j? partem de pressupostos previamente estabelecidos. Ap?s um per?odo de relativa turbul?ncia para o Banco Mundial e de ampla revis?o das suas pol?ticas de ajustamento estrutural - que culminaram com a realiza??o de diversos f?runs, oficinas e consultas75 junto a ONGs de diversas partes do mundo e demais organiza??es sociais (a partir de 1994) - o Banco viu-se na posi??o de apresentar ? comunidade internacional uma mudan?a de postura e uma reflex?o em rela??o aos rumos tomados at? ent?o. O RDM de 1997 (The State in a changing World) foi o in?cio da revis?o de postura do Banco, mas que deve ser vista, n?o como uma mudan?a na sua forma de pensar o mundo, e sim como parte integrante de suas constantes adapta??es ?s press?es e altera??es nos ?nimos da economia e da sociedade (por meio dos seus grupos de press?o). De fato, esse relat?rio, pregava o retorno do papel do Estado como garantidor da estabilidade do mercado e fornecedor de infraestrututa e servi?os sociais b?sicos e focalizados. Advogava ainda que um dos segredos para a sa?de fiscal (que, segundo o relat?rio, foram afetadas negativamente pelos Estados de Bem-Estar) ? justamente a clara distin??o entre o que ?: 1) seguro social ? ligado aos benef?cios previdenci?rios, pens?es e demais situa??es cobertas pelo seguro; e 2) assist?ncia social ? afeta ?s camadas mais pobres da popula??o, desvinculadas da esfera do trabalho e que n?o tenham condi??es de manter um seguro privado. Segundo o relat?rio, ?Com uma distin??o clara entre o seguro social e a assist?ncia social, os Estados poder?o trazer a participa??o privada e da concorr?ncia em sistemas de seguros anteriormente dominados por monop?lios p?blicos? (WORLD BANK, 1997). Neste sentido, a mensagem transmitida pelo Banco ? bastante clara: os seguros devem ser privados e seguir a l?gica da concorr?ncia (o que supostamente traria maior qualidade aos servi?os a um menor pre?o); e a assist?ncia social deve atender apenas aos estratos que n?o tenham a menor condi??o de custear-se. A defesa em favor da focaliza??o, 75 A Structural Adjustment Participatory Review ? Sapri (que prop?s uma avalia??o dos impactos dos ajustes estruturais e formou inclusive uma rede mundial de organiza??es sociais, a Saprin); a Extractive Industries Review e a Extractive Industries Review. Apesar de ter se disposto a participar do processo desde o in?cio, ap?s as conclus?es alcan?adas pelas comiss?es ? nada favor?veis ?, o Banco apresentou resist?ncia, no caso das duas ?ltimas, e se retirou completamente do processo em 2001 no caso da Sapri (PEREIRA, 2010). Segundo o relat?rio da Saprin, os ajustes desestruturaram as ind?strias locais, principalmente as pequenas e m?dias, em favor do setor financeiro e especulativo, acirraram o desemprego e a precariza??o do trabalho, e promoveram uma concentra??o de renda em favor dos estratos mais ricos da popula??o (SAPRIN, 2002). 116 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ao contr?rio do verniz de melhor aplica??o dos recursos ?aos realmente merecedores?, deve-se, sem ingenuidades, ao seu impacto reduzido sobre as finan?as p?blicas e a n?o interfer?ncia do Estado em um espa?o de atua??o do mercado potencialmente lucrativo. Ainda neste relat?rio, o Banco apresenta o enfoque universalista como sendo algo j? ultrapassado ? datado da ?poca do per?odo de ouro do Welfare State. Segundo o RDM 1997, este modelo de pol?tica ? caro e ineficiente no alcance da pobreza. Contudo, para chegar a esta conclus?o ?geral?, o documento baseia-se em estudos ?particulares? sobre subs?dios a pol?ticas de financiamento habitacional e de alimenta??o76. Deixa tamb?m uma mensagem quase expl?cita de que nenhuma pol?tica social est? garantida pol?tica e legalmente (desconsiderando-se o direito) e a salvo de per?odos turbulentos e de arrochos fiscais. Aponta, ademais, que os programas mais resistentes ?s intemp?ries fiscais s?o os que conjugam focaliza??o com condicionalidades (reciprocal obligations), bem como outros mecanismos como o microcr?dito a pequenos produtores. Por fim, e mais importante, segundo o Banco, ? a necessidade de mobiliza??o de esfor?os no sentido de se dar voz a essa popula??o pobre para que ela, e somente ela, encontre os meios necess?rios para a satisfa??o das suas necessidades. As turbul?ncias que se aprofundaram no final de 1990, conflu?ram para a forma??o de uma clivagem dentro do Banco: de um lado, posicionava o seu ex-diretor e, at? ent?o, economista-chefe Joseph Stiglitz77 como um cr?tico das reformas no modelo do Consenso de Washington; e. de outro lado, situavam-se os que eram favor?veis ? manuten??o dos princ?pios do Consenso com ajustes (no sistema financeiro, na educa??o, na administra??o p?blica e sistema judici?rio) de modo a dar maior sustentabilidade no processo de abertura econ?mica (PEREIRA, 2010). Por fim, novas cr?ticas aos ajustes estruturais vieram de diversas frentes, principalmente ap?s uma sucess?o de crises econ?micas (M?xico, ?sia, R?ssia e Argentina), dando lugar a um novo e mais aprofundado momento de modera??o e reflex?o78 no establishment79 pol?tico e econ?mico mundial e, consequentemente, no comando do Banco Mundial. 76 De acordo com o racioc?nio do Banco Mundial, benef?cios aliment?cios s?o mais eficientes quanto mais focalizados nos estratos mais pobres, devido ao seu reduzido e simples card?pio aliment?cio (WORLD BANK, 1997). 77 Sobre o conjunto de reformas propostas por Stiglitz e seus pressupostos te?ricos, ver Fiori (1999) e Pereira (2010). 78 Sobre isso ver, em Pereira (2010), um trecho do discurso anual feito pelo ent?o presidente do Banco Mundial James Wolfenson ? Junta de Governadores, no qual reconhece terem se ?centrado excessivamente 117 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado A partir de ent?o, o Banco procurou assumir um enfoque mais ?individualizado?, posto que uma das principais cr?ticas sofridas pelo ?rg?o dizia respeito ao car?ter despersonalizado e padronizado de suas pol?ticas de ajuste. Esse esfor?o se materializou em uma s?rie de relat?rios denominados Vozes dos Pobres (Voices of the Poor), como parte de uma pesquisa realizada em duas etapas: uma, primeira, em 50 pa?ses e, outra, por meio de estudo comparativo (Consultations with the Poor) realizado em 23 pa?ses, incluindo o Brasil. Esta pesquisa tamb?m teve como intuito fornecer subs?dios ao RDM de 2000/2001. No Brasil, ela foi executada pela Funda??o de Apoio ao Desenvolvimento, da Universidade Federal de Pernambuco (FADE), e entrevistou 632 indiv?duos nos munic?pios de Recife (Pernambuco), Santo Andr? (S?o Paulo) e Itabuna (Bahia). A despeito de seus condutores terem alegado independ?ncia em seus crit?rios e m?todos de an?lise (em rela??o ao Banco Mundial), a sua metodologia teve como ponto de partida os eixos definidos pelo Banco ? oportunidades, capacidades e seguran?a ? e as localidades pesquisadas eram as que tinham projetos em andamento pelo Banco. E mais, apesar da constata??o de que n?o h? rela??o direta entre emprego e bem-estar (posto que a pobreza n?o se justifica simplesmente por uma falta de inser??o no mercado de trabalho, j? que ? algo estrutural ao capitalismo), e atestar a piora dos indicadores sociais na d?cada de 1990, essa piora ? creditada a atua??o dos governos anteriores, que n?o criaram ambiente favor?vel ?s reformas realizadas (e n?o culpa da reforma em si). Al?m disso, os pr?prios entrevistados reportaram a quest?o da desigualdade e da concentra??o de renda, ponto quase que ignorado nas conclus?es do estudo, para dar lugar ao aspecto da viol?ncia urbana, da articula??o entre setores (p?blicos e privados), e da responsabiliza??o das institui??es80 entre outras pr?-condi??es para uma amplia??o das ?capacidades? individuais. A partir das informa??es coletada nestas pesquisas in loco e de suas conclus?es, o Banco Mundial lan?ou o RDM de 2000/2001, Luta contra a Pobreza (Attacking Poverty), ainda mantendo as mesmas frentes de atua??o da d?cada anterior: 1 - cria??o de oportunidades; 2 - desenvolvimento de ?capacidades? e 3 - seguran?a contra ?vulnerabilidades?. A principal diferen?a em rela??o ao ultimo relat?rio a tratar especificamente desta tem?tica (o RDM 1990), diz respeito ao car?ter multidimensional da no econ?mico, sem compreender bem os aspectos sociais, pol?ticos, ambientais e culturais da sociedade? (PEREIRA, 2010, p. 394). 79 Ordem econ?mica e pol?tica vigente, estabelecida por uma elite. 80 Remetendo ? quest?o da accountability discutida em relat?rios anteriores do Banco, como o de 1993. 118 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado pobreza, abandonando as percep??es estritamente focadas na renda e no consumo. Por esse novo prisma, a pobreza passou a ser entendida como a priva??o de capacidades (econ?micas, sociais biol?gicas, pol?ticas, psicol?gicas, afetivas e ambientais) que impedem o exerc?cio de uma vida plena e livre. Outra diferen?a importante ? referente a um novo discurso em prol de uma internacionaliza??o desta quest?o, na medida em que o Banco Mundial passou a reconhecer abertamente os problemas decorrentes do processo de globaliza??o. Segundo o documento, as a??es no ?mbito local e nacional n?o s?o suficientes. A experi?ncia da ?ltima d?cada revela a import?ncia da a??o mundial, tanto para assegurar que as oportunidades da integra??o global e do avan?o tecnol?gico beneficiem os pobres quanto para controlar os riscos de inseguran?a e exclus?o que podem resultar da globaliza??o (BANCO MUNDIAL, 2000, p. VI) Al?m disso, o Banco afirma que ?n?o existe um padr?o? a ser seguido no combate ? pobreza ? assumindo uma postura diferente das de outros per?odos ? e que as solu??es a serem implementadas n?o podem perder de vista os aspectos culturais e espec?ficos de cada localidade. Contudo, apesar de introdutoriamente apresentar quest?es importantes e que marcariam, a priori, uma evolu??o no pensamento do Banco a respeito da pobreza e de seus determinantes, nota-se que tanto a sua percep??o quanto a sua ideia de solu??o passam longe do real problema a ser encarado. Realmente, no relat?rio de 2000 /2001, as causas da pobreza s?o creditadas basicamente ? escassez de recursos e obstru??o aos mercados que n?o criam, em fun??o disso, oportunidades de emprego (BANCO MUNDIAL, 2000 p. 1). Ignora-se a quest?o da concentra??o de renda, da explora??o do trabalho e da pr?pria explora??o da pobreza como forma de controle sobre os sal?rios e amplia??o de lucros. O relat?rio at? faz men??o ? desigualdade econ?mica, mas credita a sua exist?ncia apenas a atua??o do Estado e de suas institui??es, que n?o permitem uma distribui??o igualit?ria dos recursos e dos benef?cios econ?micos de um mercado plenamente aberto. De acordo com o Banco, num mundo em que o poder pol?tico se distribui de maneira desigual e muitas vezes acompanha a distribui??o do poder econ?mico, o funcionamento das institui??es do Estado pode ser particularmente desfavor?vel aos pobres. Por exemplo, os pobres em geral n?o recebem os benef?cios do investimento p?blico em educa??o e sa?de. E muitas vezes s?o v?timas da corrup??o e arbitrariedade por parte do Estado (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 1-3) A desigualdade ? vista como uma m? aloca??o dos ganhos do capitalismo e uma quest?o entre na??es pobres (e com menos acesso ? suposta riqueza gerada pelo processo 119 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado de globaliza??o e abertura econ?mica) e na??es ricas, que souberam aproveitar todas as benesses do progresso econ?mico produzido no s?culo passado. O relat?rio tamb?m confunde participa??o popular e controle democr?tico com corresponsabiliza??o e dilui??o de papeis/fun??es do Estado entre diversos agentes (entre eles o mercado, as ONGs e as pr?prias fam?lias). Neste sentido, as redes sociais s?o um importante meio de cria??o de oportunidades para os pobres, ou, como aponta o documento, ?uma forma importante de capital [social] que as pessoas podem usar para sair da pobreza? (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 10). No entanto, a t?nica da vers?o repaginada sobre a pobreza, apresentada no relat?rio de 2000 ?na qual ser pobre resulta da falta de acesso a oportunidades (que impede as capacidades individuais de serem plenamente desenvolvidas) ? teve um respaldo te?rico influente nos ?ltimos anos: estudos do economista indiano e ganhador do Nobel de economia, Amartya Sen81. Com base nessa legitimada refer?ncia, o RDM 2000 assim se expressa: Este relat?rio aceita a vis?o tradicional da pobreza, que abrange n?o apenas a priva??o material (...), mas tamb?m um baixo n?vel de educa??o e sa?de (...) Este relat?rio tamb?m amplia a no??o da pobreza, nela incluindo a vulnerabilidade e a exposi??o a riscos, assim como a falta de influ?ncia e poder. Todas essas formas de priva??o restringem severamente o que Amartya Sen chama de ?capacidades inerentes ? pessoa, ou seja, as liberdades substantivas de que desfruta para levar a vida que ela prefere82. Esta abordagem mais ampla da priva??o, ao caracterizar mais precisamente a experi?ncia da pobreza, melhora o nosso entendimento de suas causas. Este entendimento mais profundo traz ? tona um maior n?mero de ?reas de a??o e pol?ticas para a redu??o da pobreza (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 15) Ao utilizar as concep??es de Amartya Sen sobre a pobreza, desigualdade e desenvolvimento, o Banco reproduz o entendimento impl?cito na fonte que subsidiou as suas recomenda??es: o pobre ? o primeiro e ?nico respons?vel pela sua emancipa??o econ?mica. Ao Estado cabe (ap?s a cria??o de um ambiente economicamente f?rtil para o mercado) criar condi??es de educa??o e sa?de b?sicas, e de aten??es sociais residuais, para que as capacidades dos indiv?duos sejam potencializadas e estes sejam capazes de, por si mesmos, maximizar suas fontes de renda e sustento digno. Trata-se, portanto, de criar 81 Amartya Sen foi consultor especial do Banco Mundial desde 1980, tendo participado de diversas pesquisas e publica??es do Banco neste per?odo, bem como de palestras e confer?ncias sobre a tem?tica da pobreza e do desenvolvimento. Os seus estudos serviram de refer?ncia n?o apenas para o pr?prio Banco Mundial, mas tamb?m para todo o complexo de ag?ncias da ONU, o FMI, e as principais ONGs que tratam dessa tem?tica, como a Oxford Committee for Famine Relief (Oxfam) da qual ele ? presidente honor?rio. 82 Apud Sen (1999) 120 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado oportunidades para o exerc?cio de uma plena liberdade mediante a qual o indiv?duo possa exercer a tutela sobre seu pr?prio destino, e n?o o Estado. E nesse exerc?cio, o mercado estar? naturalmente sendo requisitado, posto que constitui o meio pelo qual a liberdade se expressa. ?Os mercados s?o essenciais para a vida dos pobres? (BANCO MUNDIAL, 2000, p.38). Consequentemente, ?queles incapazes de desenvolver suas capacidades, cabe a interven??o estatal pontual e, de prefer?ncia, transit?ria, bem como a atua??o plural de v?rios atores, sob a forma de redes de prote??o social, que incluem associa??es comunit?rias, ONGs, fam?lia, parentes, vizinhos e amigos (JOHNSON, 1990). Ainda segundo esse entendimento, tais indiv?duos s?o os menos favorecidos em um sistema (criado pelas institui??es do Estado) que pressup?e a desigualdade e n?o distribui corretamente os seus ganhos. Basta que os governos criem um ambiente favor?vel ao mercado, para que ocorra uma consequente melhora na distribui??o da renda entre seus cidad?os. A desigualdade ?, portanto, apenas uma quest?o de arranjos econ?micos e de grau de interfer?ncia estatal, donde se conclui inexistir (ao contr?rio das frases atribu?das aos pobres entrevistados) a explora??o do trabalho e uma interfer?ncia do pr?prio mercado nos arranjos de poder de modo a criar e acentuar esta m? distribui??o. N?o se pode dizer que o relat?rio n?o trate do tema da redistribui??o. Este assunto ? abordado, mas, desde que, a redistribui??o n?o interfira na efici?ncia econ?mica. Neste sentido, as pol?ticas voltadas para os segmentos mais pobres devem, necessariamente, ampliar o seu capital humano (como pol?ticas de sa?de e educa??o). J? as pol?ticas de transfer?ncias diretas de renda (em dinheiro), vistas com cautela pelo Banco, devem ser direcionadas de modo a buscar a efici?ncia na aloca??o de recursos, estimulando a amplia??o deste capital (humano), e n?o interferindo na oferta de m?o-de-obra (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 57). Al?m dos relat?rios citados, com destaque para os de 1990, de 2000, e a pesquisa vozes dos pobres, uma s?rie de documentos83 especificamente sobre o Brasil foram 83 An agenda for stabilization (1994), Brazil - Rural poverty alleviation in Brazil : towards an integrated strategy (2001), Brazil - Public expenditures for poverty alleviation in Northeast Brazil - promoting growth and improving services (2001), Brazil - Critical issues in social security (2001), Brazil - The new growth agenda: Policy briefing (2002) , Bringing microfinance services to the poor : Crediamigo in Brazil (2002), Big steps in a big country: Brazil makes fast progress toward(2003), Brazil - Inequality and economic development (2003), Brazil - equitable competitive sustainable contributions for debate (2004), Brazil - Trade policies to improve efficiency, increase growth, and reduce poverty (2004), Brazil - Crime, violence and economic development in Brazil : elements for effective public policy (2006), 121 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado elaborados, desde a d?cada de 1990, com ou sem liga??o com os projetos do Banco em andamento no Pa?s. Entre estes relat?rios, destaca-se o realizado em 2001, com o nome de O combate ? pobreza no Brasil84, de 2001, em que s?o apontados os avan?os realizados no pa?s na ?rea social e caminhos a serem seguidos em rela??o ?s suas pol?ticas sociais. Mantendo a linha do RDM 2000 o Banco reconhece a import?ncia do envolvimento do Estado no enfrentamento da pobreza, contudo, este deve encontrar um arranjo que melhor otimize os gastos p?blicos; e ? ai que est? a grande semelhan?a com o cen?rio verificado na Gest?o Lula: para o Banco Mundial, o ?pulo do gato? ser? uma estrat?gia que alie programas de transfer?ncia de renda focalizados, melhorias no sistema de educa??o e crescimento econ?mico, que por sua vez viria ?naturalmente? dadas as reformas de estabiliza??o j? empreendidas. Segundo o relat?rio (2001, p.11), as reformas estruturais da economia t?m lan?ado as bases para a estabilidade econ?mica. Essa estabilidade econ?mica proteger? os pobres das flutua??es de renda que, no passado, estavam frequentemente relacionadas com esfor?os frustrados de estabiliza??o. O impacto de uma retomada do crescimento na redu??o da pobreza ser? gradual mas importante. Se houver um grande empenho no sentido de melhorar a educa??o, haver? tamb?m uma redu??o significativa da pobreza a m?dio prazo. ? dif?cil quantificar o impacto das melhorias em outras ?reas estruturais cobertas pela pol?tica social, tais como sa?de, reforma agr?ria, melhorias urbanas, treinamento profissional e mercado de trabalho, mas este impacto ser? qualitativamente importante e deve manter-se. O impacto dos programas de transfer?ncias na redu??o da pobreza tem sido grande nos ?ltimos anos e esse impacto tamb?m deve continuar, especialmente se for poss?vel melhorar a focaliza??o dos recursos. Este documento apresenta ainda uma s?rie de recomenda??es bastante expl?citas sobre as formas mais eficientes de aloca??o dos recursos p?blicos. Colocado de forma direta, recursos p?blicos deveriam ser utilizados apenas em programas direcionados aos mais pobres, e quaisquer outros mecanismos devem ter como base de compara??o um programa de transfer?ncia de renda bem focalizado, que segundo o seu entendimento ? a forma mais barata de se combater a pobreza. Contudo, mesmo tais programas devem estar balizados por par?metros claros de efici?ncia e efic?cia. ? preciso haver uma compara??o rigorosa da efici?ncia e da efic?cia dos programas sociais. A demanda e a disposi??o para pagar funcionam como 84 Relat?rio que contou com apoio do IPEA em sua confec??o. O IPEA mant?m uma tradi??o de parcerias n?o apenas com o Banco Mundial mas tamb?m com outras institui??es multilaterais e internacionais e suas opini?es e vis?es sobre pobreza e pol?ticas sociais refletem uma proximidade de ideias (salvo exce??es). Al?m deste relat?rio sobre pobreza urbana, um outro foi elaborado especificamente para tratar da pobreza rural. 122 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado uma orienta??o b?sica para se estimar os benef?cios do programa. Investimentos e transfer?ncias correntes deveriam ser comparados com base numa an?lise de custo benef?cio e de efic?cia da transfer?ncia. Objetivos redistributivos n?o deveriam ser usados para justificar investimentos ruins. Os investimentos sociais deveriam ter de passar por um teste de efici?ncia para comprovar que s?o uma forma mais barata de trazer benef?cios monet?rios e n?o-monet?rios para os pobres que as transfer?ncias de renda. (BANCO MUNDIAL, 2001, p.28) (Grifo adicionado). No ano de 2003 foi publicado, em parceria com o Governo Federal e o Governo do Estado do Cear?85 o relat?rio Brasil: estrat?gias de redu??o da pobreza no Cear? (tendo em vista os projetos em andamento neste Estado), em que o Banco Mundial, j? mais otimista em rela??o aos programas de transfer?ncia de renda, e tendo em vista as iniciativas em curso (como o Bolsa Escola e o Oportunidades do M?xico), apresenta um auspicioso progn?stico deste modelo de programa social, de acordo com as novas demandas de um ?mundo moderno e globalizado?. Diferentemente de uma postura mais ?professoral? como foi de costume em relat?rios anteriores, neste estudo o Banco apresenta propostas e estrat?gias pontuais para enfrentar o que se chamou de ?Desafios da Moderniza??o Inclusiva?. Entre os fatos que motivaram este estudo, estava a pr?pria perplexidade do Governo do Estado diante de persistente desigualdade em meio a ?tantas iniciativas em prol do desenvolvimento?. Com efeito, o Banco Mundial assim sintetizou as quest?es colocadas pelo seu cliente (2003, p.14): ? Por que ainda existe mis?ria em alta escala no Cear? apesar de tantos anos de esfor?os em prol do desenvolvimento? Os programas do governo foram bem estruturados? ? O que pode ser feito de modo diferente no futuro? Como ? poss?vel combinar uma estrat?gia de maior inser??o social com as iniciativas de moderniza??o? Como ? de costume em relat?rios do Banco Mundial, mesclam-se an?lises por vezes at? acertadas sobre determinados temas (sem aprofund?-los, obviamente), mas as solu??es nada tem rela??o com os pr?prios problemas, e a? entram em cena os conhecidos dogmas do Banco. Ao responder estas perguntas, que ali?s poderiam ser transpostas para a realidade brasileira de um modo geral, o Banco acerta ao indicar a quest?o da estrutura desigual da propriedade, a desestrutura??o dos sal?rios, o sucateamento do sistema educacional, mas novamente se equivoca ao credit?-la a uma suposta ?cultura da 85 Como uma encomenda do pr?prio Governo do Estado do Cear?. 123 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado desigualdade?, como se fosse resultado de atitudes por parte do pr?prio Estado e de suas gest?es anteriores. O Banco Mundial tamb?m fala da exist?ncia de uma estrutura desigual no Estado, que impediu que este se aproveitasse do crescimento, mas sequer realiza uma simples an?lise sobre os pormenores desta desigualdade, como se fosse algo dado, fruto da referida ?cultura da desigualdade? (talvez para ele, uma faceta da cultura brasileira). Sobre essa quest?o o relat?rio afirma que (2003, p. 31), As quest?es relacionadas a cultura fazem parte do problema de duas maneiras diferentes. Em primeiro lugar, as culturas pol?tica e social de desigualdade s?o normalmente parte das sociedades onde n?o h? eq?idade - e s?o percebidas, por exemplo, na import?ncia hist?rica das estruturas clientelistas no Brasil (e em outras partes da Am?rica Latina). Em segundo lugar, os padr?es de adapta??o dos grupos de pobres ou de exclu?dos ?s condi??es adversas podem, frequentemente, levar a pr?ticas cujas conseq??ncias s?o negativas para o seu pr?prio desenvolvimento - como no caso do aumento da cultura de drogas e viol?ncia em muitas partes urbanas do Brasil, incluindo o Cear?. Sem d?vida, muitos aspectos culturais dos pobres - tanto no sert?o quanto nas favelas urbanas - t?m grande valor e for?a intr?nsecos (Grifo adicionado). Percebe-se que para o Banco Mundial, o fim da desigualdade depende apenas da amplia??o de pol?ticas educacionais e de qualifica??o profissional, passando longe do real problema da estrutura de classes e da explora??o. A solu??o reside, novamente, na combina??o virtuosa entre abertura para novos mercados e est?mulo a produ??o agr?cola (sob adversidades clim?ticas), investimentos em educa??o e sa?de b?sicas e programas de transfer?ncia de renda focalizados em fam?lias de baixa renda. Segundo o seu entendimento, as transfer?ncias t?m o poder de aliar impactos de curto prazo com resultados profundos de m?dio e longo prazo, por meio da amplia??o do capital humano. 4.2 - Uma s?ntese da teoria de Amartya Sen e o alcance da sua teoria das capacidades Feitas as considera??es sobre os suportes te?ricos e ideol?gicos do Banco Mundial cabe aqui uma breve discuss?o sobre uma das suas refer?ncias mestras, hoje largamente prestigiada pelas institui??es multilaterais, al?m do Banco, pelos governos e pelas burocracias dos pa?ses centrais e perif?ricos: Amartya Kumar Sen. Sen estabeleceu uma renova??o no pensamento econ?mico de seu tempo (a despeito de sua posi??o pr?xima a dos liberais cl?ssicos e n?o disruptiva em rela??o ao modelo econ?mico predominante), na medida em que afirma que existem vari?veis (no caso, a ?tica) que antecedem a uma vis?o puramente econ?mica (KERSTENETZKY 2000). De fato, Sen (1999) realiza uma saud?vel e apropriada autocr?tica, como 124 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado economista, da mudan?a na abordagem econ?mica que, segundo o autor, se distanciou dos aspectos ?ticos e pr?prios da dimens?o humana em detrimento de uma chamada ?abordagem de engenharia? e automatizada das rela??es sociais ? ent?o predominante nas an?lises econ?micas contempor?neas (MURIEL, 2008). Em seu livro Sobre ?tica e economia ? On ethics and economics (1999) ? Sen resgata as ideias de Adam Smith, para quem, a despeito da sua abordagem te?rica do autointeresse, n?o deixou de lado as quest?es ?ticas em suas an?lises (ao contr?rio da vis?o comum sobre Smith86). Em Desigualdade reexaminada (2001), Sen questiona, de forma salutar, as limita??es de se considerar a renda como a ?nica medida, n?o apenas das an?lises econ?micas sobre a pobreza e a desigualdade, mas tamb?m das solu??es e estrat?gias de enfrentamento das desigualdades. Dessa feita, o autor apresenta uma vis?o que corrobora a ideia de que, na contemporaneidade, a renda se constitui, ao mesmo tempo, em instrumento de an?lise (meio) e objetivo a ser alcan?ado (fins). E esse prisma ?, segundo o seu entendimento, fruto do vi?s t?pico da economia tradicional, e, portanto, de economistas que subordinam as dimens?es humanas e sociais ? l?gica meramente econ?mica. Esta ? sua cr?tica mais recorrente aos formuladores de pol?ticas sociais. E, em fun??o dessa cr?tica, percebe-se, em seus argumentos, um certo cuidado ou mesmo uma aura de pondera??o ao tratar de certos temas. Com efeito, suas an?lises estabelecem, ao mesmo tempo, uma cr?tica e uma renova??o no Capitalismo atual, demarcando um ?meio termo? entre a vis?o cl?ssica do liberalismo com a vis?o moderna da ?globaliza??o? e das novas rela??es de produ??o (flex?veis). Como exemplo de sua vis?o ?hibrida?, ou diga-se ?plural? tem-se a sua concep??o de pobreza e de necessidades b?sicas. Para este autor, ainda de acordo com a sua obra Desigualdade reexaminada (2001), a pobreza deve ser vista de uma forma abrangente e dissociada da concep??o tradicional de mera falta de rendimentos. A pobreza, e tamb?m a desigualdade, devem basicamente ser compreendidas como car?ncia de ?capacidades? ? entendidas estas como o caminho para o exerc?cio pleno de liberdades efetivas. E essa liberdade, por sua vez, pressup?e, n?o apenas a posse de bens materiais (a partir deste momento, Sen se distancia da tese do homem econ?mico e da teoria da escolha racional), mas tamb?m o exerc?cio de sua identidade (o ser) e de suas potencialidades de participa??o 86 Conforme se observou no primeiro cap?tulo desta disserta??o, o pensamento liberal cl?ssico foi marcado por uma intensa pluralidade de ideias e posicionamentos pol?ticos; e este aspecto contradit?rio o diferenciou sobremaneira do pensamento neoliberal (ou ultraliberal). Mesmo o pensamento de Adam Smith, tido por muitos como ?ultraliberal? n?o foi un?voco, e, neste aspecto Amartya Sen expressa bem esta quest?o. 125 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado e modifica??o da sua realidade (o fazer). Ou mais especificamente: Sen introduziu os novos e importantes conceitos de ?funcionamento? (functioning) e ?capacidade? (capability) no estudo da pobreza e da pol?tica de bem-estar, angariando com eles apreci?vel aceita??o; pois, por interm?dio desses conceitos, estabeleu uma rela??o de totalidade e mutua refer?ncia entre o ser e o fazer neste campo particular de conhecimento e a??o. Para ele, um funcionamento significa uma conquista de uma determinada pessoa - o que ela consegue fazer ou ser - enquanto que a capacidade representa o vetor de todos os diferentes funcionamentos que essa pessoa pode ser capaz de executar. Portanto, capacidade ? muito mais do que funcionamento (mera conquista) na medida em que reflete a oportunidade real da pessoa exercer a sua liberdade de escolha entre estilos de vida poss?veis. E, para ele, essa reflex?o abriria importante espa?o para se pensar as pol?ticas sociais (GOUGH; McGREGOR; CAMFIELD, 2008). Contudo, tais conceitos, al?m de serem de dif?cil operacionaliza??o, medi??o e controle porque incluem n?o s? oportunidades escolhidas, mas tamb?m impostas pelas pr?prias pol?ticas, dentre outras dificuldades, passam ao largo da seguinte contradi??o: ao mesmo tempo em que Sen ?anuncia? rupturas com vis?es liberais e neoliberais, como, por exemplo, a reifica??o do mercado, esse anuncio n?o se concretiza, apenas ?se soma? a outras vis?es e matizes, de modo a supostamente ampliar o espectro anal?tico acerca da desigualdade, mas que, no fim das contas, pressup?e uma igualdade em termos de potencial de inser??o no ?mbito do mercado. Para Sen, por conseguinte, o bem-estar n?o deve ser foco das aten??es, mas sim a liberdade para ?optar? por uma condi??o de vida valorizada pelo indiv?duo. Desta forma, os fins revelam-se relativos e dependem do que o indiv?duo perceba, no plano das ideias, como sendo uma vida plena, e os meios que realmente definem uma identidade plena. A escolha, e as consequ?ncias das escolhas individuais, pertencem somente a este foro, sendo que o que deve ser verdadeiramente valorizado, consoante Sen, ? a oportunidade e a capacidade individual de escolha pelo que ? ?percebido? (individual e relativamente) como sendo o que traz mais felicidade e bem- estar. Em sua cr?tica ao comportamento autointeressado87, como mais um exemplo de uma ?quase ruptura?, Sen (1999 ? sobre ?tica e economia) afirma que o indiv?duo pode sim ser levado a escolhas n?o apenas individuais, mas que tamb?m levem em considera??o uma coletividade ou interesses alheios aos seus. Contudo, n?o se verifica, no decorrer de 87 Orientado a objetivos individuais ou bem estar individual 126 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado sua an?lise, uma cr?tica propriamente dita ao padr?o autointeressado (e a todo o hedonismo, desigualdade e explora??o decorrente disso, no sistema capitalista), mas sim ao padr?o utilitarista de se conceber uma decis?o apenas tendo em vista ?s suas consequ?ncias, no caso o bem-estar individual. Para este autor, o preponderante s?o os meios pelos quais o indiv?duo pode obter o seu bem-estar, ou melhor, o poder e a sua capacidade de tomar decis?es (o que ele chama de condi??o de ?agente? ? agency). Tal postula??o, como j? mencionado, representa um marco para a an?lise de pol?ticas p?blicas (e para a vis?o dos organismos multilaterais e dos policy makers), pois deve ser avaliada como o momento em o papel das pol?ticas sociais para o come?o do s?culo XXI adquiriu contornos mais claros: ela deve ser abrangente o bastante para que n?o haja interfer?ncia sobre as capacidades e potencialidades individuais. Particularmente para o Brasil, que esteve, no final da d?cada de 1980, no limiar de uma experi?ncia de prote??o social respaldada em direitos de cidadania, o problema da desigualdade social cr?nica passou a ter um horizonte mais distante de enfrentamento, na medida em que a percep??o dos seus determinantes e as op??es de equacionamento se distanciou das condi??es materiais e da esfera do real, para adentrar na esfera do relativo e do valorativo. Para Amartya Sen, o preponderante n?o ? a renda, mas o que se ? capaz de realizar com ela; e, nesta compreens?o, arma-se um perigoso ardil: termina-se por justificar a exist?ncia de situa??es deplor?veis de pobreza e de desigualdades econ?micas, j? que o problema em quest?o n?o s?o os rendimentos individuais, mas a inexist?ncia de condi??es que favore?am o usufruto da pouca renda que se tem. Em verdade, a sua cr?tica a padr?es universais de valores e de distribui??o igualitaristas (neste caso at? discordante com John Rawls), em detrimento da necessidade de se lan?ar olhares diferenciados sobre os indiv?duos (tendo em vista as suas naturezas e experi?ncias desiguais), deu origem a uma s?rie de impropriedades na an?lise e na gesta??o de pol?ticas sociais; entre elas, a internaliza??o de uma vis?o particularista e individualizada dos problemas sociais, como se estes fossem alheios a qualquer estrutura societ?ria e de explora??o. Com efeito, tal vis?o, corroborada e amplificada pelos organismos multilaterais (a despeito do seu apelo junto ?s minorias, que buscam de forma sadia um tratamento diferenciado para a sua condi??o diferenciada), tem criado, principalmente neste s?culo, um rol de pol?ticas de vi?s paliativo, com forte vincula??o com o mercado, mas desvinculadas da origem da pr?pria desigualdade que as demandou: a explora??o capitalista. 127 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Conclus?es importantes podem ser tiradas da obra de Amartya Sen, as quais tiveram e ainda tem reflexos nas pol?ticas sociais, notadamente a brasileira: 1? Conclus?o - as quest?es estruturais (explora??o das classes trabalhadoras, a desigualdade social) d?o lugar a concep??es individualizadas (no m?ximo de pequenos grupos, minorias e movimentos sociais). O indiv?duo passa a ter a import?ncia primordial na busca de seu bem-estar, dada a sua condi??o de ?agente? e tendo em vista que somente o indiv?duo, no entendimento de Sen, ? capaz de reconhecer o que ? melhor para si, e o que possui valor para sua vida. Neste sentido, bem-estar para um pode n?o significar bem-estar para outro, o que representaria por si s? uma barreira para o Estado como promotor do bem-estar para toda a popula??o. Ainda no entendimento de Sen, o Estado n?o deve impor um modelo de sociabilidade, mas sim criar condi??es para que os indiv?duos tenham oportunidades de exercer a sua individualidade e a liberdade; 2? Conclus?o ? Sen n?o rompe com os mecanismos de mercado. Pelo contr?rio, o mercado ? visto como o meio principal pelo qual o indiv?duo exercer? a sua liberdade e pelo qual o bem-estar ser? alcan?ado. Nesse caso, o Estado ter? um papel residual e isso pode ser observado na defesa do autor das pol?ticas sociais focalizadas e restritas aos estratos mais pobres da popula??o; 3? Conclus?o ? Sen ? claro em sua concep??o de que as pol?ticas p?blicas devem estar voltadas para os segmentos mais pobres. Segundo ele, ao desenvolver pol?ticas universais, o Estado interfere nas liberdades individuais, na medida em que n?o leva em considera??o as diferen?as de capacidades entre os indiv?duos. O Estado deve, ao inv?s, criar condi??es para que haja equaliza??o nas capacidades individuais (com o mercado como protagonista), de modo a se criar um ambiente de oportunidades iguais. Tal equaliza??o somente poder? ser alcan?ada em um n?vel mais b?sico (via pol?ticas focalizadas); e a partir deste patamar, as diversas caracter?sticas e capacidades seriam mobilizadas individualmente, tendo o mercado como meio de interc?mbio para o consequente desenvolvimento. 4? Conclus?o ? ao definir as pol?ticas de sa?de e educa??o (b?sicas, vale ressaltar) como instrumentos (liberdades instrumentais) para o alcance de uma liberdade plena, as suas ideias se mesclam ?s teorias do capital humano, difundidas desde os anos 1970 pelas ag?ncias da ONU e organismos multilaterais (notadamente a UNESCO e o Banco Mundial). Em desenvolvimento como liberdade, Sen critica, a priori, a utiliza??o de 128 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado pol?ticas de educa??o e de sa?de como mecanismo para se combater a pobreza de renda. No entanto, para o autor, o equivoco est? em se ?confundir os fins com os meios?, isto ?, atribuir a estas pol?ticas um car?ter final?stico, posto que s?o ?instrumentos? para uma melhoria nas condi??es econ?micas, fruto do pr?prio esfor?o individual. 5? Conclus?o ? o autor confunde direitos com intitulamento, que ? a capacidade de se adquirir determinado conjunto de bens no mercado mediante diversos canais legais e a posi??o do indiv?duo na estrutura de classe e de propriedade ou a sua ?dota??o? (MURIEL, 2008). Neste sentido, os direitos n?o constituem um fim, mas um meio para a obten??o de bens e servi?os no mercado. 6? e mais importante conclus?o ? Sen n?o discute a quest?o central da desigualdade e da explora??o econ?mica. Ao mesmo tempo em que se prop?e a trazer algo inovador ?s pol?ticas p?blicas, resgata posi??es antigas como a pr?pria naturaliza??o da pobreza e da desigualdade. Para ele, a partir do momento em que o indiv?duo tiver condi??es de participar do mercado por meio da venda da sua for?a de trabalho (que ? a sua propriedade natural), estar? plantada a semente para o desenvolvimento e a frui??o de uma plena liberdade. At? mesmo a cr?tica feita ao comportamento autointeressado, o que, em um primeiro momento, poderia ser vista como uma cr?tica ao pr?prio paradigma societ?rio do capitalismo, ? utilizada como argumento para justificar a in?rcia perante as situa??es de concentra??o de renda. A obra de Amartya Sen, mais do que trazer algo novo para o estudo da desigualdade e das pol?ticas p?blicas (e a despeito de refletir uma cl?ssica endogenia, j? que n?o trata da pol?tica social como disciplina acad?mica e ramo de conhecimento cient?fico, e privilegiar economistas que atuam ?no social? ou se preocupam com o social), deu um lastro acad?mico e aparentemente cr?tico a ideias que inclusive j? se faziam presentes em muitos espa?os pol?ticos e cient?ficos (como a ONU e o Banco Mundial). O corpo de sua obra procurou sistematizar uma s?rie de orienta??es esparsas de uma produ??o liberal (cl?ssica e moderna), como foi o caso do resgate das ideias de Adam Smith, a cr?tica a John Rawls e do utilitarismo cl?ssico. Mas, ao mesmo tempo em que Sen revisita teorias, quest?es que se apresentavam como cr?ticas se converteram apenas em ?revis?o? e ?adapta??o?, como no caso do comportamento autointeressado, que deve se ajustar de modo a contemplar tamb?m o interesse coletivo. Al?m disso, quest?es-chave s?o deliberadamente ignoradas, como a explora??o do trabalho pelo capital e a expropria??o das suas propriedades mais elementares ? quest?es inclusive discutidas por Adam Smith. 129 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado De sua obra decorre, portanto, uma grave naturaliza??o da desigualdade. De forma a concluir este t?pico, ? importante frisar que mesmo os relat?rios do Banco Mundial de per?odos anteriores, como o de 1990, ainda t?m os seus reflexos nos dias atuais, na medida em que consolidaram um pensamento de ?controle da pobreza?, e n?o o enfrentamento de quest?es estruturais, como a pr?pria desigualdade, a explora??o econ?mica e a concentra??o de renda. E mesmo que haja mudan?as de comando pol?tico, deve-se ter em mente que a estrutura burocr?tica de hoje ? fruto do que foi constru?do no passado (inclusive ideologicamente); e que as influ?ncias n?o s?o superadas de imediato quando de uma nova gest?o ? muito pelo contr?rio. Um caso cl?ssico e emblem?tico neste sentido foi o pr?prio governo de transi??o criado quando da elei??o de Lula, de modo a sinalizar (ao mercado) um n?o rompimento com as estruturas pol?ticas e administrativas ent?o vigentes. Uma das principais heran?as desse per?odo de neoliberaliza??o (d?cada de 1990) ? justamente o acirramento da subordina??o da esfera social (e de suas pol?ticas) ? esfera econ?mica. E como a pol?tica econ?mica empreendida pelo governo Lula manteve os mesmos ditames da gest?o anterior n?o ? de estranhar que as pol?ticas sociais brasileiras ainda pade?am ? embora muitos avan?os tenham ocorrido ? de problemas experimentados naquele per?odo e de concep??es ideol?gicas (como a focaliza??o e as condicionalidades) tamb?m constru?das desde ent?o. 4.3 ? ?O modelo brasileiro de assist?ncia social? e a rela??o entre o MDS e o Banco Mundial A realidade atual, tanto no conjunto ideol?gico predominante na ultima gest?o do presidente Lula (e a sua continuidade na gest?o Dilma Rouseff), quanto nas suas estrat?gias e no seu universo de atua??o burocr?tica, refletem a pr?pria postura tomada pelos partidos de esquerda que assumiram o controle pol?tico do Pa?s: a) a de n?o se posicionar em favor de uma classe espec?fica, atendendo a interesses tanto das elites quanto das classes menos favorecidas; b) a da necessidade em demonstrar a sua capacidade de assumir e exercer o poder (de forma respons?vel), de modo que as suas ideologias e convic??es devem aliar-se sempre a princ?pios de governan?a (regidos por crit?rios de efici?ncia, efic?cia e efetividade) e responsabilidade econ?mico-financeira (austeridade fiscal, correta prioriza??o dos gastos p?blicos); c) refletem a bagagem te?rica e ideol?gica de suas frentes e de seus apoiadores, que tamb?m s?o mutuamente influenciados pelo aparelho burocr?tico do Estado, que por sua vez, deve atender a princ?pios e utilizar como 130 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado fontes prim?rias informa??es de organismos oficiais / multilaterais, de modo a respaldar, nacionalmente e internacionalmente a sua pol?tica interna. Definir quais foram as influ?ncias internas e externas do governo brasileiro, na formula??o e condu??o da sua pol?tica de assist?ncia social ? uma tarefa herc?lea. Trata-se de uma intrincada e complexa rede de influ?ncias, determina??es e relacionamentos que s?o tamb?m mais ou menos dif?ceis de serem delimitadas, a depender do per?odo analisado. Durante as gest?es Collor e FHC, por exemplo, tais rela??es eram mais claramente definidas, em grande parte pela situa??o de depend?ncia econ?mica internacional e subservi?ncia ?s determina??es do FMI e Banco Mundial em tempos de ajustes estruturais. A partir da gest?o Lula tais imbrica??es se tornaram menos aparentes (embora comecem a mostrar novamente as suas matizes no governo da presidenta Dilma Roussef88) e influ?ncias que antes eram mais francas e tinham contornos pol?ticos mais n?tidos, agora parecem se concentrar mais no ?mbito da afinidade ideol?gica do que propriamente de ?obriga??es contratuais?. No auge do per?odo de influ?ncia neoliberal, as determina??es externas provocavam necessidades de ajustamentos internos e ditavam os rumos da gest?o p?blica (vide o caso da reforma do Estado empreendida no governo FHC), e a situa??o do endividamento p?blico acirrava essa situa??o. Ao se analisar a condu??o da pol?tica de assist?ncia social no ?mbito federal, que ? onde esta se concentra, percebe-se um paradoxo fundamental ou mesmo um dilema estrutural: conciliar a bagagem adquirida pela forma??o acad?mica e pol?tica de seus profissionais (no caso, do MDS que ? quem implementa esta pol?tica), com as limita??es e dificuldades do pr?prio exerc?cio profissional, como tamb?m a necessidade de um governo de esquerda em apresentar, aos olhos da popula??o, da m?dia, e, principalmente, do mercado, uma face confi?vel e bem fundamentada (o que explica a ?nfase dada a informa??es de organismos ?oficiais? como a ONU e o Banco Mundial). Antes de se adentrar no debate sobre as for?as contradit?rias que moldaram o atual modelo brasileiro de assist?ncia social, faz-se necess?rio apresentar um breve hist?rico do processo de institucionaliza??o desta pol?tica, dando destaque, consoante o objeto desta pesquisa, ? Pol?tica Nacional de Assist?ncia Social encabe?ada pelo MDS durante a gest?o Lula. Com efeito, esta pol?tica est?, desde 2005, organizada e 88 N?o por acaso a gest?o Dilma j? realizou altera??es nas linhas de pobreza do Pa?s, ajustando-as aos par?metros da ONU e do Banco Mundial, bem como est? a dar maior import?ncia ? educa??o profissionalizante como um ap?ndice do seu programa Brasil Sem Mis?ria. 131 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado parametrizada pelo SUAS, a qual inclui em seu rol de atua??es a implementa??o do Programa Bolsa Fam?lia, carro chefe desta gest?o, e que, ap?s a ado??o dos seus mecanismos de controle e acompanhamento de condicionalidades, constitui-se em um ?modelo de pol?tica social? at? mesmo para o Banco Mundial. A despeito de ter sido criado em 2004, pelo ent?o presidente Lula, o MDS se aproveitou de esfor?os oriundos da d?cada anterior, das antigas SAS ? Secretaria de Assist?ncia Social, posterior SEAS ? Secretaria de Estado de Assist?ncia Social, para constituir e fortalecer uma pol?tica de assist?ncia social p?s-LBA. E isso se deu em meio a um franco processo de influ?ncia neoliberal (e ajustes pol?ticos e institucionais, seguindo os determinantes do Banco Mundial e FMI) que culminou na prolifera??o de bolsas, programas compensat?rios e demais redes socioassistenciais privadas (DE PAIVA; LOBATO, 2011). Independente das motiva??es pessoais de Lula, sua bagagem ideol?gica e intelectual, desde o per?odo de participa??o sindical, o fez abra?ar a ideia de um ?programa? de erradica??o da fome (que resultou no Bolsa Fam?lia). Mas, esse programa n?o foi cria??o sua, e sim de um conjunto de cabe?as e setores pensantes, ora contra determinados pontos de sua proposta inicial, ora a favor de outros, mas que, no final, moldaram a sua forma como ficou conhecida. O percurso trilhado por uma ideia inicial foi e ainda ? t?o longo e tortuoso que apenas uma lista dos indiv?duos, organismos e setores que o influenciaram e modificaram consumiriam dezenas, quando n?o centenas, de p?ginas. O Programa Fome Zero, e posteriormente o Bolsa Fam?lia, assim como a pr?pria pol?tica de assist?ncia social que nasceu de sua gest?o, s?o reflexos do que foi o pr?prio Governo Lula: uma administra??o que, antes de representar interesses de uma classe (dos trabalhadores), representa os intentos de um grupo pol?tico que almeja, antes de tudo, o poder (MARQUES, 2006). Pode-se dividir ? por crit?rios did?ticos ? o processo de cria??o institucional da pol?tica de assist?ncia social na gest?o Lula em tr?s momentos: 1) o primeiro diz respeito ao pr?prio arranjo e rearranjo burocr?tico que culminou com a cria??o do MDS; 2) o segundo refere-se ? implementa??o do SUAS e ao ajustamento entre as demandas e expectativas dos diversos agentes, tanto internos (oposi??o, demais pastas governamentais) quanto externos (organismos multilaterais); 3) e o terceiro, foi o momento de consolida??o de um modelo assistencial alicer?ado em transfer?ncias condicionadas de renda (nos moldes do preconizado pelo Banco Mundial). Contudo, em todos estes momentos as 132 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado decis?es foram frutos de processos contradit?rios e conflituosos entre for?as em prol de uma assist?ncia social universalizante e, porque n?o, ?desmercadorizante? ? tendo em vista o seu potencial pouco explorado de emancipar o indiv?duo da explora??o do mercado ? e for?as que encaram a assist?ncia social como um passaporte para encaminhar o pobre absoluto para fora de si mesma, ou, em outras palavras, apenas uma etapa para a ?emancipa??o? do indiv?duo extremamente pobre por seu pr?prio m?rito individual. Desde o in?cio do Governo Lula j? eram evidentes as caracter?sticas contradit?rias da sua gest?o e as for?as antag?nicas que atuariam / influenciariam na constru??o das suas pol?ticas sociais. Quando do per?odo de transi??o para este governo, diversos estudiosos e profissionais, que atuavam no campo da assist?ncia social e do Servi?o Social (com destaque para o Conselho Federal do Servi?o Social/CFESS), incluindo setores do pr?prio PT, manifestaram-se no sentido de que o rec?m criado programa Fome Zero fosse inclu?do na pauta das discuss?es de uma Pol?tica de Assist?ncia Social, bem como a sua organiza??o e autonomia institucional e administrativa (DE PAIVA; LOBATO, 2011) Al?m disso, estes mesmos setores, e de acordo com a delibera??o do Conselho Nacional de Assist?ncia Social ? CNAS, e dos Conselhos Estaduais, em conjunto com a Secretaria de Estado de Assist?ncia Social ? SEAS, elaboraram um documento89 denominado Funda??o da Autonomia da Assist?ncia Social, no qual ? proposta a cria??o de um Minist?rio da Assist?ncia Social, dissociando a sua estrutura do Minist?rio da Previd?ncia (antes Minist?rio da Previd?ncia e Assist?ncia Social). O documento introduz a sua proposta da seguinte forma: O Conselho Nacional de Assist?ncia Social - CNAS, em conformidade com a delibera??o da III Confer?ncia Nacional de Assist?ncia Social, prop?e a cria??o do Minist?rio da Assist?ncia Social ou uma nova estrutura que proporcione autonomia pol?tica e administrativa ? Assist?ncia Social de forma equ?nime com as demais Pol?ticas da Seguridade Social (CNAS, 2002). Atendendo a demanda destes setores por uma estrutura pol?tico-administrativa pr?pria, foi criado em 2003, o Minist?rio da Assist?ncia Social. Contudo, logo ap?s a cria??o deste Minist?rio, as suas fun??es esperadas (de articula??o de uma pol?tica 89 Encaminhado ao governo de transi??o juntamente com a ?Carta de Bras?lia?. Este documento foi elaborado pelo conjunto CFESS / CRESS, contendo 49 reivindica??es e que expunha o est?gio degradante vivido pela sociedade brasileira ap?s duas d?cadas de ajustes neoliberais e o quadro de ?refilantropiza??o? das pol?ticas sociais brasileiras. Entre as reivindica??es estavam a universaliza??o de direitos sociais, a gest?o democr?tica, descentralizada e participativa de pol?ticas p?blicas e a defesa de um Sistema de Seguridade Social com autonomia e independ?ncia entre tr?s componentes (Assist?ncia Social, Previd?ncia Social e Sa?de), descentraliza??o pol?tico-administrativa e financiamento pr?prio (CFESS, 2002). 133 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado nacional de assist?ncia) deram lugar, paulatinamente, a fun??es de avalia??o, controle e organiza??o de programas. Para tal, haveria duas secretarias - Secretaria de Avalia??o dos Programas Sociais e a Secretaria de Articula??o dos Programas Sociais, enquanto que, para o desenvolvimento de pol?ticas haveria a Secretaria de Pol?ticas de Assist?ncia Social, que, por sua vez, se dividia em dois departamentos: de Desenvolvimento de Pol?ticas de Assist?ncia Social e de ?Acompanhamento? de Pol?ticas de Assist?ncia Social. Como ? poss?vel depreender, at? a ?nica secretaria de desenvolvimento de pol?ticas teria uma fun??o de acompanhamento e controle de pol?ticas. A Secretaria de Articula??o dos Programas Sociais passou a ter um departamento exclusivo para articula??o com Organismos Multilaterais ? o que indica a disposi??o do governo em manter contato constante e formal com estes organismos. Em seu Boletim de acompanhamento e an?lise de pol?ticas sociais, o IPEA assim se manifestou a respeito da ?nfase na avalia??o e articula??o da pol?tica de assist?ncia social: N?o cabe questionar a import?ncia das atividades de avalia??o e articula??o tanto no desenvolvimento das pol?ticas assistenciais quanto no das demais pol?ticas sociais. Contudo, ao dot?-las de peso excessivo, corre-se o risco de esvaziar-se a Assist?ncia Social, considerando-a como uma pol?tica setorial espec?fica em prol de a??es de gest?o que, embora fundamentais, n?o devem sobrepor-se ao objetivo final?stico da agenda setorial. A pr?pria regulamenta??o da Assist?ncia Social, a Loas, ao visar combater as caracter?sticas hist?ricas de fragmenta??o, clientelismo, descontinuidade, descoordena??o e residualidade, prioriza duas outras fun??es estrat?gicas para sedimentar a institucionalidade do campo da assist?ncia: o fortalecimento e institucionaliza??o do atendimento a grupos sociais vulner?veis e a integra??o das a??es de assist?ncia ?s demais pol?ticas p?blicas (IPEA, 2003, p. 34) Contrariando a demanda referente ? considera??o do Programa Fome Zero como parte integrante de uma pol?tica nacional de assist?ncia social, as duas estruturas foram mantidas separadas, tendo em vista a sua import?ncia estrat?gica e visibilidade para o governo rec?m eleito. Para tanto, e tendo em conta a grande exposi??o internacional foram criadas, ainda em 2002, tr?s inst?ncias administrativas, vinculadas diretamente ? Presid?ncia da Rep?blica, visando a operacionaliza??o dessa pol?tica: o Minist?rio Extraordin?rio de Seguran?a Alimentar90 e Combate ? Fome ? MESA e uma assessoria especial (ambas em 2002), e a reativa??o do Conselho Nacional de Seguran?a Alimentar ,em 2003 (DE PAIVA; LOBATO, 2011). 90 Iniciativas anteriores no campo da seguran?a alimentar datam de 1990, como a cria??o do Conselho Nacional de Seguran?a Alimentar ? Consea, em 1993, a realiza??o do Mapa da Fome e a consolida??o do Plano Nacional de Combate ? Fome pelo IPEA em 1993; e a 1? Confer?ncia Nacional de Seguran?a Alimentar, em 1994 (IPEA, 2004) 134 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Paralelamente a estas quest?es de ?mbito interno, e corroborando a tese da influ?ncia cativa de organismos multilaterais na pol?tica nacional, logo ap?s a sua elei??o Lula prop?s ? Organiza??o das Na??es Unidas para Agricultura e Alimenta??o (Food and Agriculture Organization ? FAO), que criasse um grupo t?cnico para auxiliar ? equipe de transi??o na revis?o e reformula??o do projeto inicial do Fome Zero. Posteriormente, o coordenador do programa, Jos? Graziano91 solicitou, al?m da FAO, ao BID e ao Banco Mundial, a cria??o de uma equipe de trabalho com o objetivo de garantir afina??o entre as expectativas das institui??es. Neste mesmo ano, 2002, um grupo de trabalho foi constitu?do e diversas reuni?es foram realizadas nas quais foi discutido o desenho geral do programa e demais aspectos operacionais. Em relat?rio elaborado pelo grupo, foi enunciada uma s?rie de qualidades no desenho do programa, entre elas: estar inserido no escopo definido pela C?pula Mundial da Alimenta??o e nas Metas de Desenvolvimento do Mil?nio, criar mecanismos autossustent?veis, dar destaque a agricultura familiar, propor parcerias entre diversos setores da sociedade e n?o gerar impactos sobre o processo de forma??o de pre?os da agricultura. O documento elencou uma s?rie de elementos a serem considerados, tidos como condi??es fundamentais para o sucesso do programa. Entre as principais orienta??es destacam-se: Promover, de forma massiva, a capacita??o organizacional mediante a utiliza??o de m?todos participativos, visando ao empoderamento da popula??o, privilegiando os exclu?dos dos atuais programas de apoio, assim como os benefici?rios da assist?ncia alimentar, por meio do acesso ao conhecimento e capacita??o para reduzir sua depend?ncia; (...) Inserir a popula??o nos mecanismos de mercado (mercado de produtos, mercado de trabalho e mercado de consumo), como uma condi??o necess?ria para uma maior participa??o social (FAO, 2002, p.5) O grupo de trabalho fez ressalvas ao projeto inicial, que englobava a distribui??o de alimentos, tendo em vista os seus custos operacionais, log?sticos e a uniformiza??o de op??es alimentares que deviam ser tomadas pela pr?pria fam?lia beneficiaria. Al?m disso, esta equipe fez observa??es no sentido de que fosse dada mais ?nfase ?s transfer?ncias de renda condicionadas, baseadas nas seguintes vantagens (FAO, 2002, p.14,15): ? Produzem menos estigma associado ? participa??o; ? Propiciam o empoderamento das pessoas para tomar suas pr?prias decis?es; ?Permitem investimentos: estudos demonstram que mesmo os extremamente pobres podem investir alguma parte de sua receita em atividade produtiva e, dessa forma, o programa pode reduzir a longo e curto prazos a pobreza e a fome; 91 Atual diretor da FAO. 135 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ? Articulam as interven??es de sa?de, nutri??o e educa??o, que fortalecem o capital humano e servem, dessa forma, para reduzir a longo e curto prazos a pobreza e a fome; ? Permitem que as pessoas tenham mais acesso ? alimenta??o e tamb?m a outras satisfa??es de necessidades b?sicas como habita??o, assist?ncia m?dica e educa??o; ? N?o distorcem os pre?os relativos do mercado e estimulam a economia local; ? N?o distorcem diretamente decis?es quanto ao aleitamento materno; ? Como estrat?gia clara de sa?da pode ser ligada ? condicionalidade (acumula??o de ativos pelos filhos). Ainda segundo o relat?rio, quanto mais restrito for o gasto, como, por exemplo, obrigar a compra de g?neros aliment?cios, melhor. Al?m disso, ele sugeria a utiliza??o de cart?es magn?ticos (visando a redu??o de custos), bem como outras condicionalidades como ?participa??o em cursos de capacita??o, cursos de alfabetiza??o funcional ou workshops de educa??o nutricional? (FAO, 2002). Para o grupo, era importante que o programa n?o direcionasse suas energias apenas no combate da pobreza e da fome a curto prazo, mas sim na cria??o de oportunidades e aquisi??es de ativos visando ? redu??o da depend?ncia das fam?lias com as transfer?ncias. A focaliza??o e seus crit?rios de sele??o tamb?m foram bastante lembrados, devendo ser clara, objetiva e transparente, e ter uma rela??o quase simbi?tica com a condicionalidade em sa?de e educa??o, entendidas ambas como acumula??o de ativos por parte do benefici?rio. O documento finaliza indicando a necessidade de se realizar discuss?o em torno de uma ?estrat?gia global de programas de assist?ncia social no Brasil?, tendo como premissas principais, al?m da j? citada focaliza??o e das condicionalidades: a centralidade na fam?lia, a cria??o de sistemas de monitoramento e avalia??o das contrapartidas e um controle firme por parte do Governo Federal, mesmo que haja uma maior descentraliza??o de programas, de modo a mitigar clientelismos. Vale frisar que salta aos olhos as similaridades entre as propostas formuladas pelo grupo t?cnico do Banco Mundial / BID / FAO e os rumos a serem futuramente tomados pela Pol?tica de Assist?ncia Social sob a batuta do MDS. Com efeito, este foi o come?o de uma rela??o com organismos internacionais e multilaterais duradoura durante toda a Gest?o Lula, mesmo que de forma ?indireta?. Conforme Fagnani (2011), o primeiro mandato de Lula, que este mesmo autor qualifica como uma ?inc?gnita?, apresenta uma pol?tica econ?mica (estreitamente relacionada com o FMI e Banco Mundial) que dominou e suplantou as demais. Segundo Fagnani (2011), o Minist?rio da Fazenda chegou a publicar, em 2003, um relat?rio de avalia??o do Gasto Social em 2001 e 2002, no qual 136 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado defendia a correta focaliza??o do gasto social federal, seguindo crit?rios definidos pelo Banco Mundial. Segundo o documento, que expressava as convic??es da equipe econ?mica do Governo Federal rec?m eleito, as pol?ticas sociais deveriam se concentrar em programas focalizados de garantia de renda m?nima, em detrimento de pol?ticas universais (FAGNANI, 2011). Pouco tempo depois da implanta??o do Programa Fome Zero92, e diante de cr?ticas de diversos setores da sociedade e organismos nacionais e internacionais, entre eles o pr?prio Banco Mundial ? que esperava maior defini??o e delimita??o program?tica ? o governo passou, em 2003, a direcionar suas energias no programa Bolsa Fam?lia93. Este ?ltimo, por sua vez, passou a agregar os programas de transfer?ncia de renda vigentes em diversos Minist?rios, como o Bolsa Escola, o Aux?lio G?s, Cart?o Alimenta??o, Bolsa Alimenta??o, Bolsa Crian?a ? PETI e Agente Jovem. Em 2004, visando integrar institucionalmente as a??es de seguran?a alimentar com as de transfer?ncia de renda94, foi criado o MDS que abarcou as fun??es desempenhadas pelo extinto MESA, as fun??es do extinto Minist?rio da Assist?ncia Social e o programa Bolsa Fam?lia. O MDS contava, no in?cio de sua gest?o, com as seguintes secretarias (al?m da Executiva): 1 - Secretaria de Articula??o Institucional e Parcerias ? SAIP95 ? com as mesmas atribui??es que na ?poca em que era do Minist?rio da Assist?ncia Social; 2 ? Secretaria Nacional de Renda de Cidadania ? SENARC ? respons?vel pelos programas de transfer?ncia de Renda (Bolsa Fam?lia) e pelo Cadastro ?nico; 3 - Secretaria Nacional de Assist?ncia Social ? SNAS ? respons?vel pela execu??o da Pol?tica Nacional de Assist?ncia Social; 4 ? Secretaria de Seguran?a Alimentar e Nutricional ? SESAN ? respons?vel pela Pol?tica de Seguran?a Alimentar e 5 ? Secretaria de Avalia??o e Gest?o da Informa??o ? SAGI. 92 Lembrando que o Programa Fome Zero n?o foi substitu?do pelo Bolsa Fam?lia. Com efeito, o MDS ainda mant?m o seu bra?o de seguran?a alimentar e nutricional com a??es nas ?reas de acesso a alimentos, fortalecimento da agricultura familiar e programas de garantia de renda (inclus?o produtiva, cooperativas, economia solid?ria, qualifica??o profissional e microcr?dito). 93 Como resultado de um movimento no interior do Governo Federal, que visava a integra??o com as demais unidades da federa??o, com coordena??o e gest?o federais, e a articula??o de uma pol?tica de combate ? fome, com uma pol?tica de transfer?ncia de renda com condicionalidades (em conson?ncia com ?sugest?es do Banco Mundial). Para tal, foi criado um grupo de trabalho interministerial para que fosse criada uma proposta de programa unificado de transfer?ncia de renda (IPEA, 2003). 94 Programas n?o-constitucionais, diferentemente do BPC, que, a despeito de tamb?m ser uma transfer?ncia de renda, ? um programa institu?do constitucionalmente, possui crit?rios diferenciados e est? vinculado diretamente ? pol?tica de Assist?ncia Social. 95 A partir de 2010 esta Secretaria passou a se chamar Secretaria de Articula??o para Inclus?o Produtiva (tamb?m SAIP), pelo decreto 7079 /2010. 137 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Confirmando a proximidade entre os objetivos dos policy makers brasileiros e os do Banco Mundial, no ano de 2004 o governo brasileiro fechou um acordo ? Empr?stimo de Programa Adapt?vel ? de duas fases com o Banco (denominados APL 1 e 2), sendo a primeira no valor de US$ 572 milh?es, para o per?odo de 2004 a 2006. Esta etapa tinha como intuito, a unifica??o dos programas de transfer?ncia de renda existentes e o aprimoramento do desenho do programa. A segunda etapa, que compreendia o per?odo de 2007 a 2008, teve como aporte do Banco um montante de US$ 200 milh?es, destinados ao ?fortalecimento institucional? do programa. Com efeito, o referido ?refor?o? dizia respeito ao aprimoramento das condicionalidades em sa?de e educa??o, ? estrutura??o do Cadastro ?nico e aos sistemas de monitora??o e avalia??o. Al?m disso, e conforme as ?diretrizes? das Estrat?gias de Assist?ncia ao Pa?s (Country Assistance Strategy ? CAS), esp?cie de cl?usula vinculada a todos os acordos de empr?stimo com o Banco, este forneceria ?apoio, treinamento, assist?ncia t?cnica, equipamentos e transfer?ncia de conhecimento para as equipes do MDS? (BANCO MUNDIAL, 2010). Em uma parte do CAS, em que foram enaltecidas as caracter?sticas e conquistas96 do programa (alcan?adas at? 2008) e sua capacidade de amplia??o, o Banco assim se manifestou: Com o aumento da popularidade dos programas CCT (Conditioned Cash Transfers) e sua transforma??o no elemento central da assist?ncia social, os gastos com o Bolsa Fam?lia (ou os programas que o precederam) elevaram-se de menos de 10% do or?amento de Assist?ncia Social em 2001 para quase 40% em 2008. O Bolsa Fam?lia consolidou-se como o centro da assist?ncia social; sua expans?o foi gradualmente acompanhada da desativa??o dos quatro grandes programas de transfer?ncia monet?ria condicionada (...) essa expans?o do Bolsa Fam?lia n?o solapou sua caracter?stica de selecionar os mais pobres e, atualmente, o programa ? a interven??o mais bem direcionada do Brasil, contribuindo para a significativa redu??o da pobreza e da desigualdade (BANCO MUNDIAL, 2010) (Grifo adicionado). Correndo em paralelo com a influ?ncia do Banco Mundial, as inst?ncias de controle social e participa??o democr?tica tamb?m ampliaram seus espa?os de atua??o e suas conquistas, constituindo uma for?a contrahegem?nica. Em outubro de 2004 foi aprovada a Pol?tica Nacional de Assist?ncia Social ? PNAS como reflexo da milit?ncia e da conquista de Conselhos de Assist?ncia Social (Nacional, Estaduais e Municipais), entidades de classe e conselhos profissionais, f?runs estaduais e regionais, Secretarias de 96 N?o por acaso o Banco Mundial utilizou dados de estudos do IPEA [Paes de Barros, R e M. Carvalho (2009)] para balizar suas an?lises, tendo em vista as afinidades ideol?gicas. 138 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Assist?ncia Social, universidades e membros da sociedade civil97. Tal Pol?tica significou a materializa??o de princ?pios at? ent?o apenas sinalizados pela Constitui??o de 1988 e o reconhecimento da Assist?ncia Social n?o mais como sat?lite a orbitar apenas a esfera do setor privado e da caridade, mas conforme consta em seu texto, como ?Pol?tica P?blica de Estado?, definida em lei. Em que pese as dificuldades enfrentadas posteriormente, o relat?rio de delibera??es da IV confer?ncia Nacional de Assist?ncia Social foi taxativo com rela??o a uma Pol?tica Nacional de Transfer?ncia de Renda: Assegurar uma pol?tica nacional de transfer?ncia de renda como mecanismo de inclus?o social para aqueles segmentos que se encontram em situa??o de vulnerabilidade social, garantindo a sua complementa??o atrav?s de uma ampla rede s?cio-protetiva, sob a coordena??o do Minist?rio da Assist?ncia Social, eliminando toda e qualquer condicionalidade e contrapartida (CNAS, 2003, p. 2-3) (Grifo adicionado). Mobiliza??es semelhantes tamb?m foram as respons?veis pela aprova??o de uma Norma Operacional B?sica espec?fica para o SUAS (NOB-SUAS), especificando tanto os aspectos institucionais e organizativos, quanto as inst?ncias de controle democr?tico (DE PAIVA; LOBATO, 2011). O MDS, teria, de acordo com tais especifica??es (assim como na PNAS) protagonismo na sua implementa??o e gest?o, a despeito do seu car?ter descentralizador. Tais determina??es, por sua vez, exigiram um esfor?o de revis?o de pap?is e reestrutura??o interna por parte do MDS, demandando um certo rompimento com o seu vi?s orientado mais para o controle e gest?o do que para a atividade fim. No entanto, ao mesmo tempo em que um dos eixos da Pol?tica Nacional, a Prote??o Social, abriu uma frente de atua??o mais profunda com o usu?rio final da assist?ncia social (algo n?o muito apreciado pelo do Banco Mundial), o seu eixo de Vigil?ncia Social (monitoramento, avalia??o e produ??o de indicadores) serviu, sobremaneira, aos intentos do Banco e demais organismos internacionais, tendo inclusive recebido contribui??es para isso. Para o Banco Mundial, a monitora??o e avalia??o ? M&A de pol?ticas sociais s?o atividades estrat?gicas para o a sua efic?cia, bem como para mitigar gargalos que causem impactos negativos sobre as contas p?blicas98. Um dos componentes dos acordos99 entre o 97 Tendo como ponto m?ximo a IV Confer?ncia Nacional de Assist?ncia Social, realizada em 2003, em Bras?lia. Nos dias de evento foram definidas as bases da PNAS bem como as linhas gerais do SUAS. O tema da Confer?ncia foi: Assist?ncia Social como Pol?tica de Inclus?o: uma Nova Agenda para a Cidadania ? Loas 10 anos. A confer?ncia tamb?m teve contribui??es importantes na amplia??o de conquistas para pol?ticas j? existentes no ?mbito do ent?o Minist?rio da Assist?ncia Social. 98 Diga-se, de passagem, um aspecto cr?tico para os Organismos Multilaterais e para a ortodoxia econ?mica, j? que finan?as e or?amentos parecem ser um fim em si mesmo (inexistindo o aspecto pol?tico e do conflito). 139 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Banco Mundial e o MDS, foi justamente o fortalecimento e amplia??o dos mecanismos de avalia??o e controle implementados pela SAGI. Portanto, a cria??o da SAGI, segundo o Banco (2008, p.58), constituiu uma medida decisiva e inovadora para a formula??o de pol?ticas, estimativa e avalia??o de pol?ticas sociais. At? ent?o, nenhum Minist?rio ou ag?ncia central no Brasil teve um ?rg?o aut?nomo para realizar esses tipos de atividades. A avalia??o n?o foi considerada uma atividade indispens?vel no Governo Brasileiro. A SAGI foi fortalecida institucional e tecnicamente para aumentar a relev?ncia no processo de tomada de decis?es do Minist?rio. A cria??o de indicadores ? especialmente importante para a implementa??o de programas de transfer?ncia de renda condicionados, pois estabelece um mecanismo de controle entre a capacidade m?xima do sistema (para o Banco, o ?limiar? entre o incentivo econ?mico e o ?desest?mulo ao trabalho?). Os estudos e avalia??es sobre o Bolsa Fam?lia e demais programas dessa natureza s?o fundamentais; n?o por acaso o Banco compila e analisa n?o s? as reportagens jornal?sticas, que tratam do tema, mas tamb?m estudos t?cnicos sobre an?lise de impacto (BANCO MUNDIAL, 2010). Como resultado dessas avalia??es, o Banco pode, por exemplo, constatar que, as taxas de abandono escolar s?o mais baixas, o trabalho infantil permaneceu inalterado, e a m?o de obra adulta - na maior parte ? permaneceu inalterada (o que poderia reduzir a preocupa??o em torno dos programas de transfer?ncia monet?ria que eles talvez desestimulam a busca por trabalho) (BANCO MUNDIAL, 2008, p.60). A proximidade entre o MDS, demais policy makers brasileiros e o Banco Mundial ? n?o somente intensa como frequente. O prop?sito do Banco, e demais parceiros do establishment pol?tico e econ?mico, ? criar uma cultura de monitoramento e avalia??o, algo inclusive j? em adiantado processo, devido a, al?m do seu pr?prio apoio e patroc?nio anteriormente citados, iniciativas do National Audit Office ? NAO, o Department of International Development ? DFID, ambos do Reino Unido, e do Government 99 Segundo os termos do acordo entre o MDS e o Banco Mundial, este forneceria ?apoio t?cnico e institucional para a Secretaria Nacional de Avalia??o e Gest?o da Informa??o (SAGI). O Projeto proposto forneceria assist?ncia adicional para aumentar a capacidade da Secretaria de identificar, elaborar, realizar e supervisionar avalia??es e fortalecer seu sistema de M&A. Esse apoio ser? implementado por meio de treinamento, servi?os de consultoria especializados e equipamentos de TI (...) Tamb?m apoiaria a SAGI por meio da contrata??o de consultores individuais para apoiar a prepara??o dos termos de refer?ncia e outros documentos de licita??o quando apropriado? (BANCO MUNDIAL, 2008, p.105). Este apoio t?cnico para direcionamento (leia-se condicionalidades e publico alvo) e monitoramento foi denominado de ?programa BRASA?. O projeto de an?lise de impacto do programa e fortalecimento da capacidade de avalia??o ficou conhecido como ?Programa Brasil Avalia??o - BRAVA?. O projeto de avalia??o de impacto sobre o mercado de trabalho foi denominado de ?AAA M?o de obra?. 140 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Accountability Office ? GAO, dos Estados Unidos (FLINT, 2004). No Brasil, tal cultura100 come?ou a ser disseminada com o apoio de institui??es101 como o Tribunal de Contas da Uni?o ? TCU, a Corregedoria Geral da Uni?o ? CGU, o Minist?rio do Planejamento, Or?amento e Gest?o ? MPOG, o Banco do Nordeste do Brasil ? BNB, e do pr?prio MDS (por meio da SAGI e da SAIP), tendo inclusive sido criada a Rede Brasileira de Monitoramento e Avalia??o em 2008. Essa Rede, criada pela Funda??o Jo?o Pinheiro, com apoio do Banco Mundial e do BID, inspirou-se na Rede de Monitoramento da Am?rica Latina e Caribe, tendo como objetivos, al?m da dissemina??o de uma cultura de Monitoramento, constituir-se em um f?rum de discuss?es e interc?mbios de experi?ncias102. Com vista a complementar este movimento pr? hegem?nico, o Banco Mundial vem realizando, desde o final da d?cada de 1980, juntamente com o Governo Federal e do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE/BA), uma s?rie de semin?rios e workshops sobre boas pr?ticas e capacita??o de auditores do TCU e Tribunais de Contas Estaduais103, denominado de Projeto Fortalecimento da Auditoria Subnacional Brasileira (Profort). Neste sentido, o MDS representa, atualmente, uma vitrine de boas pr?ticas, sendo o primeiro Minist?rio a ter uma secretaria especificamente para o monitoramento e avalia??o de pol?ticas p?blicas. Em vista disso, o MDS servir? de modelo para a cria??o de um sistema de monitoramento de projetos a ser adotado pelo governo federal. Em seu 100 Este estudo n?o tem a pretens?o de desqualificar o processo de avalia??o e monitora??o de pol?ticas publicas e sociais, como os realizados pelo pr?prio MDS e demais ?rg?os de fiscaliza??o e controle, como o TCU e a CGU. Com efeito, tais atividades contribuem para a transpar?ncia e lisura das atividades desempenhadas pelo poder p?blico, como o caso do pr?prio acompanhamento feito pelo TCU junto ao MDS, onde foram apontadas irregularidades em gastos e processos licitat?rios/conv?nios (O Minist?rio posteriormente apresentou suas justificativas, algumas acatadas pelo tribunal, outras apenas parcialmente ? processo TCU n? 021.280/2006). Tais atividades quando voltadas, por exemplo, para os servi?os prestados pelos usu?rios da assist?ncia social, podem sim, ter um impacto positivo sobre qualidade dos mesmos. O que se questiona ? a institui??o de uma ?cultura de auditoria? motivada pela ?fraudemania? imposta pelo sistema de condicionalidades. 101 Bem como institui??es estaduais, movimentos da sociedade civil e da iniciativa privada como: a Funda??o Sistema Estadual de An?lise de Dados (SEADE), a Secretaria de Estado de Planejamento e Gest?o do Governo do Estado de Minas gerais (SEPLAG), Funda??o Jo?o Pinheiro, o Movimento Brasil Competitivo (MBC), Banco Ita?, Unibanco 102 A Rede possui uma plataforma de discuss?es da internet (http://redebrasileirademea.ning.com/), al?m de organizar periodicamente semin?rios, palestras, workshops. A Rede tamb?m lan?ou recentemente a Revista Brasileira de Monitoramento e Avalia??o, com o apoio do MDS / SAGI e da Secretaria de Assuntos Estrat?gicos da Presid?ncia Rep?blica ? SAE/PR. 103 Via Subven??o do Fundo de Desenvolvimento Institucional ? FDI do Banco Mundial para o Fortalecimento da Auditoria Sub-nacional do Brasil. Subven??o IDF n? TF095683. Dispon?vel para consulta em: http://www.tce.ba.gov.br/images/projetos_especiais/idf-grant-n-tf095683-traduzido.pdf. Este projeto ser? expandido para todos os tribunais de contas do Brasil. 141 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado relat?rio publicado pela UNESCO sobre a implementa??o do Sistema de Avalia??o e Monitoramento de Pol?ticas e Programas da SAGI/MDS, os autores, entre eles o Secret?rio Executivo do MDS, R?mulo Paes Souza, se gabam do fato de existir no organograma do MDS uma Secretaria de Avalia??o e Monitora??o com o mesmo status de uma secretaria final?stica. Em um trecho do relat?rio em que ? apresentado um breve hist?rico da cria??o da SAGI, estes afirmam que, coube ? SAGI as fun??es de avalia??o e monitoramento das pol?ticas e programas de desenvolvimento social do MDS, o que significou inova??o da gest?o p?blica brasileira, uma vez que at? ent?o n?o existia, em nenhum minist?rio, uma secretaria com essa finalidade exclusiva; sobretudo uma unidade localizada horizontalmente em rela??o ?s secretarias final?sticas, e n?o verticalmente, como costuma ocorrer com unidades de avalia??o e monitoramento (VAITSMAN; RODRIGUES, PAES-SOUSA, 2006, p.15). Nesse universo de inova??es um aspecto pol?mico no campo, n?o apenas da assist?ncia social, mas das pol?ticas sociais como um todo, ? a quest?o das condicionalidades, ou as tamb?m chamadas contrapartidas oferecidas pelos benefici?rios. Sabe-se que as condicionalidades do Bolsa Fam?lia envolvem, al?m do cadastro no Cad?nico, atividades a serem desenvolvidas em educa??o e sa?de. Na primeira, todas as crian?as e adolescentes entre 6 e 15 anos devem estar matriculados e com frequ?ncia escolar mensal m?nima de 85%. Para os adolescentes entre 16 e 17 anos a frequ?ncia deve ser de, no m?nimo, 75%. No segundo grupo de condicionalidades, os familiares devem fazer o acompanhamento de vacinas e desenvolvimento da crian?a at? os 7 anos. As mulheres gr?vidas devem fazer o exame pr?-natal, ou se estiverem amamentando, o acompanhamento do desenvolvimento do beb?. Al?m disso, eventualmente pode haver a obriga??o de frequ?ncia em Servi?os de Conviv?ncia e Fortalecimento de V?nculos ? SCFV do PETI (BRASIL, 2010). Pois bem, as regras normalmente costumam ser muitas, os crit?rios variados, mas o argumento tende a ser o mesmo. Pelo menos l? fora. Aqui, no Brasil, argumenta-se que as condicionalidades ?tensionam?(para n?o utilizar outro termo) o exerc?cio de um direito. Para o MDS especificamente, objeto desta an?lise, as condicionalidades expressam, como afirmou Patrus Ananias, a garantia de direitos constitucionais: garantir a presen?a das crian?as na escola e os cuidados b?sicos com a sa?de representam deveres da fam?lia e do Estado, s?o obriga??es constitucionais. Na medida em que se exige da fam?lia a presen?a das crian?as na escola e a manuten??o de cuidados b?sicos com a sa?de, possibilita-se que as fam?lias pobres reivindiquem 142 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado escolas p?blicas e servi?os p?blicos de sa?de de boa qualidade (BRASIL, 2010, p.22). Este argumento, muito utilizado em relat?rios do MDS, como justificativas para a utiliza??o deste sistema, traz a mente uma primeira inquieta??o transformada em questionamento: h? algum estudo, em alguma parte do mundo, seja de car?ter t?cnico ou acad?mico, que diga que se um indiv?duo for obrigado a utilizar um sistema p?blico prec?rio, para que ele tenha acesso a um benef?cio, isto ir? naturalmente fazer com que este demande no futuro por um servi?o de qualidade? Ser? que j? n?o h? uma demanda mais do que suficiente por parte da sociedade neste sentido? Outro questionamento que pode ser feito ?: Ser? moralmente v?lido que um indiv?duo seja obrigado a passar por situa??es constrangedoras para que tenha acesso a um benef?cio que se entende como uma obriga??o do Estado? E o que fazer quando simplesmente n?o existem hospitais ou escolas para serem acessados? Ou mesmo quando n?o existe uma rede de transporte (de qualidade e barata) que permita esta interliga??o. Casos como estes n?o s?o de dif?cil constata??o. Em outra passagem do mesmo relat?rio Desenvolvimento Social e Combate a Fome no Brasil: avan?os e desafios, o ex-ministro Ananias procurou dar um maior embasamento ao seu argumento afirmando que ?Prevaleceu, portanto, essa ideia de tratar desigualmente os desiguais e de priorizar os mais pobres? (BRASIL, 2010). A ideia por detr?s das teorias de justi?a social ? justamente tratar com desigualdade os n?o afetados pela desigualdade (justamente por serem a sua causadora), e n?o os que justamente sofrem com ela. No entanto, mais ? frente h? um mea culpa: ?Como o processo de cria??o e implanta??o do Minist?rio foi muito r?pido, n?o houve tempo para acertos doutrin?rios e program?ticos? (BRASIL, 2010). Contudo, no final de sua apresenta??o (ao agradecer o apoio do Banco Mundial) este se rende ao argumento do pr?prio do Banco, de que as condicionalidades s?o um investimento em capital humano com ganhos a serem colhidos futuramente pelos pr?prios pobres. Mais adiante ainda se defronta com uma contradi??o, pois como diz o ditado: no fim as m?scaras sempre tendem a cair. Ao discorrer sobre o preconceito t?pico de associar pol?ticas sociais com acomoda??o, Patrus Ananias demonstra a clara contradi??o de sua argumenta??o em torno das condicionalidades. Essa falsa dicotomia [Pol?tica Social e acomoda??o] se apresenta como se garantir alimenta??o, garantir condi??es m?nimas de vida, uma renda familiar b?sica acomodasse as pessoas. Nesse racioc?nio, h? um preconceito forte contra os pobres, como se eles n?o tivessem desejo, como se os pais pobres n?o quisessem futuro para seus filhos, como 143 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado se n?o quisessem progredir na vida (BRASIL, 2010 p. 27,28) (Grifo adicionado). Ora, n?o ? assim que funcionam as condicionalidades: tratar os pobres como pessoas desprovidas de capacidade e autonomia intelectual? Como pessoas sem o menor senso de responsabilidade e compromisso com o futuro de seus familiares? Neste aspecto o argumento do capital humano ? mais claro e, por que n?o dizer, menos ofensivo. Assim, ao menos n?o se misturam pr?ticas neoliberais com discursos em prol de uma tutela do Estado sobre a sua popula??o pobre. Contudo, parece que este argumento em favor de um ?tensionamento? come?a a n?o ser apenas difundido no ?mbito do MDS, mas no governo de uma forma geral, como atenta o relat?rio de acompanhamento e an?lise de pol?ticas sociais de 2011 do IPEA. Segundo o documento, O descumprimento de condicionalidades ? tomado como indicativo de situa??es de viola??o de direitos que requerem aten??o priorit?ria por parte da rede de servi?os (...). Assim, o monitoramento das condicionalidades do PBF permite identificar fam?lias que encontram maiores dificuldades em acessar seus direitos sociais b?sicos, configurando-se como p?blico priorit?rio dos servi?os (IPEA, 2011, p.57). A linha argumentativa apresentada neste relat?rio d? a entender que caso o benefici?rio n?o consiga cumprir as condicionalidades, a rede de servi?os assistenciais (ao detectar a ocorr?ncia) far? um acompanhamento de modo a entender os motivos que levaram a este descumprimento. Neste caso, se isto for verdade, o n?o cumprimento da condicionalidade far? as vezes de ?indicador? a sinalizar para a assist?ncia quando ? o momento de agir, facilitando o papel da rede assistencial. Cria-se, com isso, um transtorno ao usu?rio para criar uma facilidade para o sistema. No entanto, o desafio a ser colocado para o Estado e para a Pol?tica de Assist?ncia Social seria, justamente, permitir o acesso a renda e ao mesmo tempo verificar gargalos em outras pol?ticas (como sa?de, educa??o e transporte, por exemplo), algo a ser percebido sem menores dificuldades, diga-se de passagem. De fato, o controle de condicionalidades foi institucionalizado na Gest?o Lula. Diversos dispositivos, desde 2004, com destaque para o disposto no art. 3? da Lei n? 10.836, de 9 de janeiro de 2004 e os arts. 27 e 28 do Decreto n? 5.209, de 2004, que instituem e definem as condicionalidades sob o mesmo argumento de ?assegurar o acesso a direitos?, definiram as normas para os controles das contrapartidas e acompanhamento por parte dos ?rg?os gestores. Curiosamente o art. 8? da portaria que trata da gest?o das 144 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado condicionalidades (n? 551/2005104) estipula que ? obriga??o dos munic?pios105 a oferta adequada dos servi?os de educa??o e sa?de, mas n?o estipula penalidades em caso de descumprimento. Lembrando que as penalidades s?o aplicadas somente aos usu?rios. Contudo, a despeito das facilidades operacionais que possam advir dessa decis?o por parte do Estado (que funciona como uma triagem autom?tica para os servi?os assistenciais), n?o se pode deixar de fazer um paralelo entre as ideias utilitaristas (no seu sentido cl?ssico), para as quais ?os fins justificam os meios? e as convic??es de um governo que diz representar as classes trabalhadoras. Prosseguindo com o processo de constru??o de um aparelho estatal de condicionalidades, em 2009 foi institu?do pela Portaria interministerial n? 2/2009, o F?rum Intergovernamental e Intersetorial de Gest?o de Condicionalidades do Programa Bolsa Fam?lia. O MDS tamb?m disp?e de um Departamento de Gest?o de Condicionalidades (parte da SENARC), composto de v?rias coordenadorias entre elas: Coordena??o Geral de Opera??o de Condicionalidades, de Acompanhamento de Condicionalidades, Coordena??o Geral de Controle Social (fruto da clara confus?o que se faz, dentro do ?mbito do MDS entre Controle Social e Contrapartidas sociais) e uma Coordena??o Geral de Acompanhamento dos Efeitos das Condicionalidades. Esta ? a confirma??o de que as contrapartidas s?o, como a pr?pria Portaria afirma, ?um de seus elementos principais, ao contribuir para combater a pobreza intergeracional? (BRASIL, 2009). E mais, o dispositivo confirma a tese de que as condicionalidades visam (convenientemente) a produ??o de indicadores de efici?ncia, posto que,segundo o mesmo, ?o acompanhamento das condicionalidades do PBF busca monitorar o acesso das fam?lias pobres aos servi?os p?blicos e identificar as situa??es de maior vulnerabilidade e risco social que levam ao seu descumprimento? (BRASIL, 2009). ? justamente este perene conflito entre interesses contradit?rios que moldaram um modelo brasileiro de assist?ncia social ? que conjuga caracter?sticas tanto de um vi?s quanto de outro: enquanto o Bolsa Fam?lia ? promovido como um ideal de pol?tica social pelo Banco Mundial e demais organiza??es internacionais/multilaterais, outras pol?ticas 104 Substitu?da pela portaria n? 321/2008. 105 A Portaria n? 551/2005 tamb?m condiciona a ades?o dos munic?pios ao efetivo controle das condicionalidades (BRASIL, 2005). Posteriormente, foi editada, em 2006, a Portaria n? 148/2006, que cria o ?ndice de Gest?o Descentralizada do Programa Bolsa Fam?lia ? IGD, apurado com base na ?qualidade da gest?o das condicionalidades?. Este indicador (apurado mensalmente), em mais um exemplo de supremacia do econ?mico sobre o social, sensibilizar?, para mais ou para menos, o repasse de recursos aos munic?pios. 145 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado ?apontam? para um vi?s universalista e pr?-direitos (como o caso do BPC). Com efeito, duas vis?es antag?nicas convivem (em aparente harmonia) na pr?pria estrutura institucional do MDS; uma a disseminar ideias e chav?es t?picos de organismos como o Banco Mundial e outra a manter rela??es estreitas com a academia, em especial com o campo te?rico do Servi?o Social e da Pol?tica Social e sua prof?cua rela??o com a pol?tica de assist?ncia social. 146 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Considera??es finais Compreender como se deu o desenvolvimento do pensamento liberal e de algumas de suas mais importantes vertentes, bem como da forma??o do pensamento neoliberal, ? fundamental pra compreender o est?gio atual das pol?ticas sociais, tanto no mundo quanto no Brasil. O estudo da forma??o do pensamento liberal tamb?m ? premente para a compreens?o do car?ter contradit?rio de algumas dessas vertentes, tal como a do ultraliberalismo, que tem reflexos fortes no pensamento neoliberal, e o chamado liberalismo cl?ssico e humanista, que sensibilizou te?ricos influentes nos dias atuais como Amartya Sen. No ?mbito brasileiro, e especificamente da assist?ncia social, a an?lise do percurso hist?rico dessa ?pr?tica? ? fundamental para a compreens?o do que a fez se tornar ?pol?tica?. A rela??o inicial com a filantropia, com as igrejas, com o clientelismo e com o populismo; a vis?o da assist?ncia como ant?tese das pol?ticas enobrecidas pelo trabalho (que ainda persistem, diga-se de passagem); o momento de mudan?a de rumos, iniciada com a Constitui??o de 1988, seguida pela LOAS, pela PNAS e finalmente pelo SUAS. Conquistas hist?ricas que, acrescidas de um lastro te?rico robustecido por estudos, prioritariamente de assistentes sociais e de estudiosos das pol?ticas sociais (de diversas ?reas), fizeram com que pr?tica do acaso, se convertesse em pol?tica e dever do Estado. Contudo, a chamada ?crise de realiza??o? preconizada por Pereira-Pereira (1996), que foi o seu salto paradigm?tico de uma condi??o para outra sem o devido tratamento anal?tico- conceitual, ainda ? uma constante, ao menos no setor p?blico brasileiro. Isso faz com que pr?ticas e ideias j? superadas voltem ? ribalta, revigoradas por uma nova roupagem, como ? o caso agora do chamado ?universalismo b?sico?106 e outros conceitos lan?ados por institui??es como o Banco Mundial. A constru??o da estrutura or?ament?ria e fiscal no Brasil, tamb?m mereceu aten??o, pois como reflete posicionamentos pol?ticos, ajuda a compreender n?o s? o atraso no desenvolvimento da Seguridade Social brasileira, mas tamb?m as prefer?ncias e ?nimos reinantes num pa?s ? merc? dos ventos financeiros. Verificou-se que, a despeito das for?as que lutaram contra o desmonte do or?amento das pol?ticas sociais brasileiras, outras mais 106 Conceito lan?ado pelo BID, segundo o qual o Estado deve ter o universalismo como horizonte de alcance a longo prazo, respeitando, neste ?nterim, as limita??es de ordem pol?tica e fiscal. 147 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado poderosas e articuladas fizeram, com maior intensidade a partir dos anos 1980, com que diversos ganhos fossem obtidos na esfera tribut?ria e or?ament?ria, mas em prol do grande capital e da especula??o financeira. O presente estudo tamb?m tratou do processo contradit?rio de constru??o de uma pol?tica de assist?ncia social no governo Lula e sua rela??o pr?xima, ou de depend?ncia, com o Banco Mundial. Verificou-se que, a despeito de se apresentar como um governo das classes trabalhadoras, a pol?tica social de sua gest?o, principalmente a pol?tica de assist?ncia social gerida pelo MDS, segue, de forma bastante similar, os ditames e ideais desta institui??o multilateral pelos seguintes motivos: 1 - Est? concentrada, em termos or?ament?rios, em programas de transfer?ncia de renda focalizados ? visto que 94% dos recursos s?o destinados ao Bolsa Fam?lia e ao BPC. Em que pese ser um benef?cio previsto constitucionalmente e ter seu valor atrelado ao sal?rio m?nimo, o BPC ainda sim, possui uma estreita linha de focaliza??o (1/4 de sal?rio). 2 - O Programa Bolsa Fam?lia segue, conforme apregoa o Banco Mundial, o sistema de condicionalidades, ou contrapartidas, atrelados ? frequ?ncia em educa??o e sa?de. 3 - O MDS desenvolveu, desde 2003, uma forte sistem?tica de controle de condicionalidades. Al?m disso, o minist?rio expressa uma opini?o fortemente afinada com o Banco Mundial, no que tange ? quest?o da import?ncia das condicionalidades no desenvolvimento de capital humano e das capacidades dos pobres. 4 - O MDS implementou um sofisticado sistema de avalia??o e monitoramento (encabe?ado pela SAGI), em sintonia com os princ?pios de accountability disseminados pelo Banco Mundial. O referido Minist?rio tamb?m se converteu em um multiplicador de conhecimento nesta seara, apoiando a institui??o de uma cultura nacional de monitoramento e avalia??o sob o falso pretexto de ser uma forma de controle social. 5 - O Banco Mundial, n?o s? forneceu recursos financeiros para o desenho e implementa??o do Bolsa Fam?lia e outros programas ligados ao Fome Zero, como 148 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado atuou ativamente e proativamente na sua estrutura??o, fornecendo apoio t?cnico e consultoria, estreitamente ligados ?s suas concep??es de pobreza e pol?tica social; 6 - O MDS, juntamente com outros parceiros como o International Poverty Centre (IPC/PNUD) tamb?m atua como disseminador de boas pr?ticas de transfer?ncia de renda (consoante os preceitos do Banco Mundial) em Congressos e eventos sobre a tem?tica; Contudo, al?m dos argumentos citados acima, que por sua vez confirmaram a hip?tese levantada no in?cio desta pesquisa, a maior conclus?o que este estudo alcan?ou foi a constata??o de que, mais do que uma influ?ncia velada, camuflada, o Banco Mundial possui uma estreita influ?ncia junto ao MDS e, consequentemente, sobre sua pol?tica assistencial. Felizmente, a cultura de culpabiliza??o do pobre pela sua condi??o vem, paulatinamente sendo suplantada, at? mesmo como atestam conclus?es de relat?rios de desenvolvimento do Banco Mundial. Conforme visto nesta pesquisa, as principais institui??es multilaterais perceberam que a liberaliza??o trouxe problemas relativos ao agravamento da pobreza e da desigualdade, embora as solu??es reais de enfrentamento sempre fujam da verdadeira quest?o que ? a da concentra??o de riqueza e de propriedade. As solu??es apresentadas por esses organismos invariavelmente passaram, desde a sua constitui??o, por arremedos, que deixam intacta, quando n?o fortalecem, a estrutura de classe. Contudo, e conforme dito, o pobre finalmente come?a a n?o ser mais visto como culpado pela sua condi??o. Entretanto, este ainda ? visto como ?desprovido de capacidades?, ao inv?s de ?explorado por suas capacidades?; como fardo e n?o como vergonha de uma sociedade centrada em si; e como um ser ?infantilizado?, desprovido de capacidade de discernimento entre certo e errado. Aos que advogam em favor das condicionalidades (sob os argumentos do MDS) fica a pergunta: como se sentiriam, as pessoas pertencentes ? classe m?dia ou alta, se ao adentrar um hospital para tratamento urgente de sa?de, o m?dico imediatamente inquirisse: o ?seu filho est? indo regularmente ? escola?? O atrelamento de um direito a outro ? e a consequente nega??o de um direito porque outro n?o est? sendo exercido ? n?o ? correto e socialmente ?tico. Como se sentiriam se suas vidas estivessem sendo vigiadas, monitoradas ao inv?s de consentidamente assistidas? No mundo neoliberal o ditado ?aos pobres, a obedi?ncia, aos ricos, a sua licen?a? se encaixa perfeitamente. 149 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Existe por parte do pr?prio Estado o senso de que as condicionalidades, associadas naturalmente a puni??es, s?o quest?es pol?micas, vexat?rias e motivo de constantes ameniza??es, mudan?as de terminologias, entre outros mecanismos. Percebe-se, portanto, implicitamente no discurso dos favor?veis ?s condicionalidades, no ?mbito do MDS, um sentimento de que algo n?o est? certo. Outro ponto verificado ? que os estudos e an?lises, n?o apenas do MDS, mas de acad?micos integrantes do MDS, n?o se ap?iam em uma discuss?o te?rica sobre este tema. Estes se baseiam, em sua maioria, em dispositivos legais e, principalmente, relat?rios e dados oficiais, como os da ONU, UNESCO e Banco Mundial. Uma quest?o que merece ser discutida em estudos posteriores ? que os representantes do poder p?blico condicionam a intersetorialidade, a percep??o de vulnerabilidades, e o acompanhamento das fam?lias ?s contrapartidas. Contudo, ser? que este acompanhamento n?o poderia ser feito no momento da ades?o ao benef?cio, independente de contrapartidas? Por fim, a quest?o principal que se coloca e que deve ser, n?o apenas introduzida, mas trazida ? tona para debates posteriores ? a seguinte: em que medida, a esfera econ?mica regula n?o apenas as rela??es sociais, mas tamb?m as pol?ticas sociais? O cerne de toda discuss?o empreendida neste estudo ? que a pol?tica social, e por consequ?ncia, a pol?tica de assist?ncia social (notadamente no Brasil) rege-se pela ?gide econ?mica. O sistema capitalista pressup?e a supremacia do econ?mico sobre o social. O seu nome, por si s? evidencia esta quest?o, posto que todas as estruturas sociais existentes sobre este modelo (jur?dicas, pol?ticas, econ?micas e sociais) comp?em um sistema cuja finalidade ? a pr?pria exist?ncia do Capital. 150 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado REFER?NCIAS ALCOCK, Pete. Social policy in Britain: themes & issues. London: Macmillan, 1996. ANDERSON, Perry. Zona de compromisso. S?o Paulo: Unesp, 1996. ?VILA, Rodrigo; LINS, Renata. Super?vit Prim?rio. Bras?lia: FBO, 2004 (Cadernos para discuss?o). ARRIGHI, G. O longo s?culo XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; S?o Paulo: Editora Unesp, 1996. BAER, Monica; LICHTENSZTEJN, Samuel. Fundo Monet?rio Internacional e Banco Mundial. S?o Paulo: Brasiliense, 1987. BALDWIN, David. Economic Development and American Foreign Policy: 1943-1962. Chicago & London: The University IF Chicago Press, 1966. BANCO MUNDIAL. Relat?rio sobre o desenvolvimento mundial: A Pobreza. Washington, D.C. World Bank, 1990. _______. Vozes dos Pobres. Brasil ? Relat?rio Nacional. Washington, D.C. World Bank, 2000. _______. Relat?rio sobre o desenvolvimento mundial (Panorama Geral): Luta contra ? Pobreza. Washington, D.C. World Bank, 2000/2001. _______. O combate ? pobreza no Brasil. Washington, D.C. World Bank, 2001. _______. Brasil: estrat?gias de redu??o da pobreza no Cear?. O desafio da moderniza??o includente. Washington, D.C. World Bank, 2003. _______. Documento do Projeto de Avalia??o de um Programa de Empr?stimo Adapt?vel, no valor de U$S 200 milh?es para a Rep?blica Federativa do Brasil em apoio a segunda fase do projeto Bolsa Fam?lia. Relat?rio N?: 51185-BR (Mimeo) Washington, D.C. World Bank, 9 de agosto de 2010. _______. Organiza??o: Como os pa?ses s?o representados no Banco Mundial Dispon?vel em: . Acesso em: 10 Ago. 2010. _______.Como o Banco Mundial ap?ia os Pa?ses? Dispon?vel em: . Acesso em 23 de maio de 2011. BARROS, Fl?via. Banco mundial e ONGs ambientalistas internacionais. Ambiente, desenvolvimento, governan?a global e participa??o da sociedade civil (Tese de doutorado em Sociologia). Bras?lia: Universidade de Bras?lia, 2005. BARROS, Ricardo P. de; FOGUEL, Miguel N; ULYSSEA; Gabriel. (Orgs.). Desigualdade de Renda no Brasil: Uma an?lise da queda recente. Volume 2. Bras?lia: IPEA, 2007. 151 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado BATISTA, P. N. O consenso de Washington: a vis?o neoliberal dos problemas latinoamericanos. In: BATISTA, P. N et al. Em defesa do interesse nacional: desinforma??o e aliena??o do patrim?nio p?blico. 3? ed. S?o Paulo, Paz e Terra, 1995. BECKER, Gary S. El capital humano. Madrid: Alianza Universidad Textos, 1983. BELLAMY, Richard. Liberalismo e sociedade moderna. S?o Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. BENDFELDT, Juan F. A dimens?o desconhecida do capital: o capital humano. In: BENDFELDT, M T. I. B. FUENTES, M. C. A. de. Educa??o em crise. Porto Alegre: Ortiz: IEE, 1994. BLACKMORE, Ken. Social policy: an introduction. Philadelphia: Open University Press, 1998. Bolsa Fam?lia tem que ser revisto para que Pa?s acabe com mis?ria, defendem economistas. O Globo, Bras?lia, 12 dez 2010. Dispon?vel em: . Acesso em 12 de junho de 2011. BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicion?rio de pol?tica. Bras?lia: Ed.Universidade de Bras?lia, 1986. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. S?o Paulo: Brasiliense, 1988. BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade Social e Trabalho. Bras?lia: Letras Livres: Editora UnB, 2006. BOSCHETTI, Ivanete; BEHRING, Elaine. Pol?tica Social: fundamentos e hist?ria. S?o Paulo: Cortez, 2006. BOSCHETTI, Ivanete; SALVADOR, Evil?sio. Or?amento da seguridade social e pol?tica econ?mica: perversa alquimia. In: Servi?o Social e Sociedade. S?o Paulo, v. 87, 2006. BRASIL. Portaria MDS n. 551 de 09 de Novembro de 2005. Regulamenta a gest?o das condicionalidades do Programa Bolsa Fam?lia. Publicada no DOU n. 217, de 11 de Novembro de 2005. _______. Portaria interministerial n.2, de 16 de Setembro de 2009. Institui o F?rum Intergovernamental e Intersetorial de Gest?o de Condicionalidades do Programa Bolsa Fam?lia. Publicada no DOU n. 178, de 17 de Setembro de 2009. _______.Minist?rio da Fazenda. Carga tribut?ria no Brasil 2009. An?lise por tributos e bases de incid?ncia. Bras?lia: Minist?rio da Fazenda, Ago. 2010. _______.MDS. Condicionalidades. Bras?lia: MDS, 2010. Dispon?vel em: . Acesso em 5 Outubro de 2010. _______.MDS. Desenvolvimento Social e Combate ? Fome no Brasil: Balan?os e Desafios. Bras?lia: MDS, 2010. 152 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado Brazil's Bolsa Fam?lia: How to get children out of jobs and into school. The limits of Brazil?s much admired and emulated anti-poverty programme. The economist, S?o Paulo, 29 jul.2010. Dispon?vel em: < http://www.economist.com/node/16690887>. Acesso em 12 jun. 2011. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; GRAU, Nuria Cunill. Entre o Estado e o Mercado: o p?blico n?o estatal. In: Bresser-Pereira, Luiz Carlos; GRAU, Nuria Cunill (orgs.). O P?blico N?o-Estatal na Reforma do Estado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. CAMARGO, J.M. Pobreza e Garantia de Renda M?nima, Folha de S. Paulo, 26/12/1991. _______. Os Miser?veis, Folha de S.Paulo, 27/3/1993. CAMARGO, J.M; ALMEIDA, H. Human Capital Investment and Poverty. Rio de Janeiro: Departamento de Economia da PUC, 1994 (Texto para Discuss?o, n. 319). CARVALHO, Fernando J. Cardin de; KREGEL, Jan Allen. Quem controla o sistema financeiro? Rio de Janeiro: IBASE, 2007. CASTRO, Luciana Carnicero de. Pol?ticas de desenvolvimento e desenvolvimento rural: evolu??o das ideias e pol?ticas do Banco Mundial. In: DOSSI?: Banco Mundial e Estados Unidos, momentos de uma hist?ria de tens?es. S?o Paulo: INCT-INEU, 2009. Dispon?vel em: Acesso em: 14 de maio de 2011. CFESS, Fundos de Solidariedade e a Refilantropiza??o da Pol?tica de Assist?ncia Social. In: CFESS Manifesta. Bras?lia, 1? de Setembro de 2009. CHENERY, Hollis et al. Redistribuci?n con crecimiento. Madrid: Tecnos, 1974. CHOSSUDOVSKY, Michel. A Globaliza??o da Pobreza: impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial. S?o Paulo: Moderna, 1999. DAVIS, Mike. Planeta Favela. S?o Paulo: Boitempo, 2006. DE PAIVA, Ariane R; LOBATO, Lenaura De Vasconcelos C. O papel do MDS na institucionaliza??o do Sistema ?nico de Assist?ncia Social. In: SER Social v. 13 n.28, jan /Jun de 2011. DEDECCA, Cl?udio. BARBOSA, Alexandre. MORETTO, Amilton. Transforma??es recentes do sistema p?blico de emprego nos pa?ses desenvolvidos tend?ncias e particularidades. In: OLIVEIRA, Roberto (Org.). Novo momento para as comiss?es de emprego no Brasil? Sobre as condi??es da participa??o e controle sociais no Sistema P?blico de Emprego em constru??o. v. 1. S?o Paulo: A+ Comunica??o, 2007. DINIZ, D?bora; SQUINCA, Fl?via; MEDEIROS, Marcelo. Defici?ncia, Cuidado e Justi?a Distributiva. S?rieAnis 48, Bras?lia: LetrasLivres, 1-6, maio, 2007. DOWBOR, Ladislau. A reprodu??o social: propostas para uma gest?o descentralizada. Petr?polis: Vozes, 1998. DOYAL, Len. GOUGH, Ian. A theory of human need. London: Macmillan, 1991. 153 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado DRAIBE, S?nia. ?O redirecionamento das pol?ticas sociais segundo a perspectiva neoliberal?. In: GUIMAR?ES, D?bora et al. As pol?ticas sociais no Brasil - Caderno T?cnico, n?18. Bras?lia: SESI, 1993. DULCI, Otavio Soares. BOLSA FAM?LIA E BPC: A forma??o de uma agenda governamental de avalia??o. 13o Congresso Internacional da Rede Mundial de Renda B?sica/BIEN. S?o Paulo, 30 de junho a 2 de julho de 2010. FAGNANI, Eduardo. Pol?tica Social no Brasil (1964 a 2002): entre a cidadania e a caridade (Tese de Doutorado em Ci?ncias Econ?micas). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. _______. A Pol?tica Social do Governo Lula (2003-2010): perspectiva hist?rica. In: SER Social v. 13 n.28, jan/jun de 2011. FAO/BID/BIRD/Equipe de Transi??o. Brasil: Projeto Fome Zero ? Relat?rio do Grupo de Trabalho Conjunto FAO/BID/ BIRD/Equipe de Transi??o. Bras?lia, Dezembro de 2002. Dispon?vel em http://www.rlc.fao.org/es/ prioridades/seguridad/fomezero/pdf/eval02por.p df. Acessado em 10 de Novembro de 2011. FATTORELLI, Maria L?cia. A infla??o e a d?vida p?blica. Le Monde Diplomatique Brasil, Ano 4, N?mero 47. S?o Paulo, Junho de 2011. FINNEMORE, Martha. Redefining Development at the World Bank. In: COOPER, Frederick. PACKARD, Randall. International Development and the Social Sciences. Essays on the History and Politics of Knowledge. Berkeley: University of Calif?rnia Press, 1997. FIORI, J. L. Os moedeiros falsos. Petr?polis: Vozes, 1997. FLINT, M. Country study: Brazil 1997-2003. In: Evaluation of DFID Country Programmes. Paris: DFID, 2004. FOSCHETE, M. Rela??es Econ?micas Internacionais. 2? Ed. S?o Paulo: Edi??es Aduaneira, 2001. FMI. O FMI em s?ntese, 2011. Dispon?vel em: . Acesso em 23 de maio de 2011. FURTADO, Celso. O Mito do Desenvolvimento Econ?mico. S?o Paulo: Civiliza??o Brasileira, 1972. GLYCERIO, Carolina. Bolsa Fam?lia tem pouco impacto sobre sa?de infantil, diz estudo. BBC Brasil, S?o Paulo 18 dez. 2007. Dispon?vel em: . Acesso em: 12 jun. 2011. GORZ, Andr?. Mis?ria do presente, riqueza do poss?vel. S?o Paulo: Annablume, 2004. GOUGH, Ian; McGREGOR, Allister; CAMFIELD, Laura. Theorising Wellbeing in International Development. In: GOUGH, Ian; McGREGOR. Wellbeing in developing countries. Cambridge: University Press, 2008. 154 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado GUEDES, G.R et al. Avalia??o do impacto do aumento da cobertura do Programa Benef?cio de Presta??o Continuada (BPC) sobre a pobreza e a desigualdade entre o grupo de idosos e os eleg?veis n?o atendidos. Anais do F?rum BNB de Desenvolvimento - XVI Encontro Regional de Economia. Fortaleza, 18 e 19 de julho de 2011. Dispon?vel em: Acesso em: 14 de maio de 2011. GRUPPI, Luciano. Tudo Come?ou com Maquiavel: As concep??es de Estado em Marx, Engels, L?nin e Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1983. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. S?o Paulo: Loyola, 2005. _______. O Neoliberalismo: hist?ria e implica??es. S?o Paulo: Loyola, 2008. HOUTART, Fran?ois. El sentido de la ?lucha contra la pobreza? para el neoliberalismo. In: CARVALHO, Denise Bomtempo Birche de et al. Pol?tica Social, Justi?a e Direitos de Cidadania na Am?rica Latina. Bras?lia: UnB, Programa de P?s-Gradua??o em Pol?tica Social, Departamento de Servi?o Social, 2007. IANNI, O. Capitalismo, viol?ncia e terrorismo. Rio de Janeiro: Civiliza??o Brasileira, 2004. IPEA. Pol?ticas Sociais - acompanhamento e an?lise n. 9, 2004. Bras?lia: IPEA, 2003. _______. Pol?ticas Sociais - acompanhamento e an?lise n. 7, 2003. Bras?lia: IPEA, 2003. _______. Pol?ticas Sociais - acompanhamento e an?lise n. 19, 2011. Bras?lia: IPEA, 2011. JABUR, Luciane de Almeida. O Projeto de avalia??o de projetos socioeducativos do pr?mio Ita?-Unicef: Uma an?lise na perspectiva da Psicologia Social Comunit?ria (Disserta??o de mestrado). S?o Paulo: PUC-SP, 2009. JOHNSON, Norman. El Estado del Bienestar en transici?n: la teor?a y la pr?ctica del pluralismo del bienestar. Madrid: Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1990. KAY, Crist?bal. Rural Poverty and Development Strategies in Latin America. Journal of agrarian change, v.6, n.4. Out 2006. KAPUR, Devesh et al. The World Bank: its First Half Century. Washington: Brookings Institution Press, 1997. KERSTENETZKY, Celia Lessa. Desigualdade e pobreza: li??es de Sen. In: Revista Brasileira de Ci?ncias Sociais, n.42, v.15, fev 2000, p.113-22. KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, Infla??o e defla??o. S?o Paulo: Abril Cultural, 1983. LACROIX, Richard. L. Desarrollo rural integral em Am?rica Latina. Washington: World Bank, 1985 (Documento de Trabajo, n. 7165). LIMA, Luiz Ant?nio de Oliveira. Keynes e o fim do laissez-faire. In: Revista de Economia Pol?tica, v. 4, n. 1. Jan/Mar 1984. 155 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado L?WY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Bar?o de M?nchHausen. S?o Paulo: Busca Vida, 1987. MACPHERSON, C. B. A Teoria Pol?tica do Individualismo Possessivo: De Hobbes a Locke. S?o Paulo: Paz e Terra, 1979. MANDEL, Ernest. A crise do capital. Os fatos e sua interpreta??o marxista. S?o Paulo: Ensaio; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990. MARQUES, Rosa Maria; MENDES, ?quilas. O Social no Governo Lula: a constru??o de um novo populismo em tempos de aplica??o de uma agenda neoliberal. In: Revista de Economia Pol?tica, v. 26, n.1, p. 58-74. Jan/mar 2006. MARSHALL, Thomas H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MARX, Karl. O Capital. S?o Paulo: Abril Cultural, 1984. MASON,E. S; ASHER, R.E. The World Bank since Bretton Woods. 1? Ed. Washington: The Brookings Institution, 1973. MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, D?bora; SQUINCA, Fl?via. Transfer?ncias de Renda para a Popula??o com Defici?ncia no Brasil: Uma an?lise do Benef?cio de Presta??o Continuada. In: Relat?rio Defici?ncia e BPC. Bras?lia: IPEA, 2006. MEDEIROS, Marcelo; BRITTO, Tatiana; SOARES, F?bio. Programas focalizados de transfer?ncia de renda no Brasil: Contribui??es para o debate. Bras?lia: IPEA, 2007. (Texto para discuss?o n? 1283). M?SZ?ROS, Istv?n. Para al?m do capital. S?o Paulo: Boitempo/Ed. da Unicamp, 2002. MERRIEN, Fran?ois-Xavier. Em dire??o a um novo Consenso p?s-Washington na Am?rica Latina? In: BOMTEMPO, Denise; et al (Orgs.). Pol?tica Social, Justi?a e direitos de cidadania na Am?rica Latina (Pol?tica Social - 3). Bras?lia: Programa de P?s-gradua??o em Pol?tica Social ? SER/UnB, 2007. MONTA?O, Carlos E. Pol?ticas Sociais Estatais e ?Terceiro Setor?: O Projeto Neoliberal para a atual resposta ? ?Quest?o Social?. I Coloquio Brasil/Uruguay: "Quest?o urbana, pol?ticas sociais e servi?o social". Escola de Servi?o Social - UFRJ. Rio de Janeiro, 11e 12 de Abril de 2002. MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai? S?o Paulo: Editora SENAC, 2001. MORAES, Reginaldo Carmello Correa de. Estado, Desenvolvimento e Globaliza??o. S?o Paulo: Editora UNESP, 2006. MOTA, Ana Elisabete. Servi?o Social e seguridade social: uma agenda pol?tica recorrente e desafiante. Revista em Pauta, Rio de Janeiro, n.20, p.127-40, 2007. _______. Apresenta??o. In: MOTA, Ana Elisabete (Org.). O Mito da Assist?ncia Social. Ensaios sobre Estado, Pol?tica e Sociedade. 2? Ed. S?o Paulo: Cortez Editora, 2008. 156 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado MURIEL, Ana Paula Ornellas. Combate ? pobreza e desenvolvimento humano: impasses te?ricos na constru??o da pol?tica social na atualidade (Tese de doutorado em Ci?ncias Sociais). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. O?CONNOR, James. USA: A crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. OLIVEIRA, Fabr?cio A. A reforma tribut?ria de 1966 e a acumula??o de capital no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991. OLIVEIRA, Francisco. Cr?tica ? raz?o dualista. O ornitorrinco. S?o Paulo: Boitempo editorial, 2003. PEREIRA. Jo?o M?rcio M. O Banco Mundial como ator pol?tico intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civiliza??o Brasileira, 2010. PEREIRA-PEREIRA, Potyara A. A assist?ncia social na perspectiva dos direitos. Cr?tica aos padr?es dominantes de prote??o aos pobres no Brasil. Bras?lia: Thesaurus, 1996. _______. Necessidades humanas. S?o Paulo: Cortez, 2000. _______. Cidadania e (in)justi?a social: embates te?ricos e possibilidades pol?ticas atuais. In: FREIRE, L?cia M. B; FREIRE, Silene de Moraes; CASTRO Alba T. Barroso de (Orgs.). Servi?o Social, Pol?tica Social e Trabalho: Desafios e perspectivas para o s?culo XXI. S?o Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2006. _______. Pol?tica Social: Temas e quest?es. S?o Paulo: Cortez, 2008. _______. Mudan?as nos Fundamentos do Estado e das Pol?ticas Sociais. III Semin?rio Pol?ticas Sociais e Cidadania. Salvador, Bahia. 24 a 26 de Novembro de 2010. PEREIRA, Camila Potyara; SIQUEIRA, Marcos C?sar A. As contradi??es da Pol?tica Social Neoliberal. In: BOSCHETTI, Ivanete; et al (Orgs.). Capitalismo em Crise: Pol?tica Social e Direitos. S?o Paulo: Cortez, 2010. PISCITELLI, Roberto. Reforma tribut?ria: a unanimidade de cada um. In: MORHY, Lauro (Org.). Reforma tribut?ria em quest?o. Bras?lia: Editora da UnB, 2003. PIS?N, Jos? Martinez de. Pol?ticas de bienestar: un estudio sobre los derechos sociales. Madrid: Tecnos, 1998. POCHMANN, Marcio. O trabalho sob fogo cruzado. S?o Paulo: Contexto, 1999. _______. O emprego na globaliza??o. S?o Paulo: Boitempo, 2001. POLANYI, Karl. A grande transforma??o: as origens da nossa ?poca. Rio de Janeiro: Campus, 1988. POLITZER, Georges; BESSE, Guy; LAVEING, Maurice. Princ?pios fundamentais de filosofia. S?o Paulo: Hemus, 1977. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1981. 157 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado PRZEWORSKI, A; WALLERSTEIN, M. O Capitalismo Democr?tico na Encruzilhada. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 22. Outubro, 1988. RACHED, Gabriel. As Pol?ticas de Desenvolvimento do Banco Mundial no contexto das Transforma??es Internacionais (Tese de doutorado). Rio de Janeiro: IE/UFRJ, 2008. RICARDO, David. Princ?pios de economia pol?tica e tributa??o. S?o Paulo: Abril, 1982. RICHARDSON, Roberto Jarry et al. Pesquisa social: m?todos e t?cnicas. S?o Paulo: Atlas, 1999. ROBERTS, Richard. Por dentro das finan?as internacionais. Rio de Janeiro: Zahar. 2000. SALVADOR, Evil?sio; BOSCHETTI, Ivanete. Or?amento da Seguridade Social e Pol?tica Econ?mica. In: Servi?o Social e Sociedade: SUAS e SUS. N. 87. Ano XXVI. S?o Paulo: Cortez, 2006. SALVADOR, Evil?sio. Fundo P?blico e Seguridade Social no Brasil. S?o Paulo, Cortez, 2010. _______. O or?amento da assist?ncia social entre benef?cios e servi?os. In: VAZ, Fl?vio. MARTINS, Floriano. Or?amento e pol?ticas p?blicas: condicionantes e externalidades. Bras?lia: ANFIP, 2011, p. 199-222. SAPRIN. Las Pol?ticas de ajuste estructural en las ra?ces de la crisis econ?mica y la pobreza. Washington, Abril, 2002. Dispon?vel em: . SEN, Amartya. Sobre ?tica e Economia. S?o Paulo: Cia. das Letras, 1999. _______. Desenvolvimento como liberdade. S?o Paulo: Cia. das letras, 2000. _______. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001. SCHULTZ, Theodore William. O capital humano: investimentos em educa??o e pesquisa. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. SERRA, Rose. A Era Neoliberal na Am?rica Latina e a Situa??o do Trabalho. IV Congreso Internacional - VII Congreso Nacional de Trabajo Social San Jos?, Costa Rica, 5 a 7 de setembro de 2007. SILVA E SILVA, Maria Ozanira, YAZBEC, Maria Carmelita; GIOVANNI, Geraldo di. A Pol?tica Social Brasileira no S?culo XXI: a preval?ncia dos programas de transfer?ncia de renda. S?o Paulo: Cortez, 2004. SILVA E SILVA, Maria Ozanira. Programas de transfer?ncia de renda: entre uma renda b?sica de cidadania e uma renda m?nima condicionada (Entrevista com o Senador Eduardo Suplicy). Revista Pol?ticas P?blicas v. 13, n. 2, p. 231-240. S?o Luis: UFMA, jul./dez. 2009. SILVEIRA, Ant?nio M. A Renda B?sica na Previs?o de Keynes. In: Revista Econ?mica. v. 4, n. 1. Junho, 2002. 158 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado SINGER, Paul. Interpreta??o do Brasil: uma experi?ncia hist?ria de desenvolvimento. In: FAUSTO, Boris. O Brasil republicano: economia e cultura (1930-1964). v. 4. S?o Paulo: Difel, 1984. SMITH, Adam. A Riqueza das Na??es. S?o Paulo: Martins Fontes, 2003. SOARES, Laura Tavares. Ajuste Neoliberal e Desajuste Social na Am?rica Latina. 1999 (Tese de Doutorado). Rio de janeiro: UFRJ (1? reimpress?o revisada). _______. Os custos sociais do ajuste neoliberal na Am?rica Latina. S?o Paulo: Cortez, 2000. SOARES, Sergei; S?TYRO, Nat?lia. O programa Bolsa Fam?lia: desenho institucional, impactos e possibilidades futuras. Bras?lia: IPEA, 2009 (Texto para discuss?o n? 1424). SOARES, F?bio Veras et al. Programas de transfer?ncia de renda no Brasil: impactos sobre a desigualdade. Bras?lia: IPEA, 2006 (Texto para discuss?o n? 1228). SPITZ, Clarisse. Bolsa Fam?lia ? mais eficaz que alta de sal?rio m?nimo para combater pobreza, diz Ipea. Folha Online, Rio de Janeiro 6 set. 2006. Dispon?vel em: Acesso em: 12 jun. 2011. SPOSATI, Alda?za de O. Cidadania ou filantropia: um dilema para o CNAS. Relat?rio de pesquisa elaborado pelo N?cleo de Seguridade e Assist?ncia Social da PUC/SP. S?o Paulo, agosto de 1994. _______. Modelo brasileiro de prote??o n?o contributiva: concep??es fundantes. In: Concep??o e gest?o da prote??o social n?o contributiva no Brasil. Bras?lia: Minist?rio do Desenvolvimento Social e Combate ? Fome, UNESCO, 2009. STANDING, Guy. Conditional Cash Transfers: Why Targeting and Conditionalities Could Fail. One Pager n.47. Bras?lia: International Poverty Centre, 2007. ST-ONGE, Claude. O outro lado da p?lula ou os bastidores da ind?stria farmac?utica. Confer?ncia realizada no 11? Congresso Mundial de Sa?de P?blica e 8? Congresso Brasileiro de Sa?de Coletiva. Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2006. STEIN, Rosa Helena. As Pol?ticas de Transfer?ncia de Renda na Europa e na Am?rica Latina: recentes ou tardias estrat?gias de prote??o social? (Tese de Doutorado em Pol?tica Social) Bras?lia: UnB/ICS/CEPPAC, 2005. STERN, Nicholas; FERREIRA, Francisco. The World Bank as ?intellectual actor?. In: KAPUR, Devesh; et al (Orgs.). The World Bank: its first half century ? Perspectives. Washington DC: Brookings Institution Press, 1997. SUPLICY, Eduardo. Renda de Cidadania: a sa?da ? pela porta. S?o Paulo: Cortez, 2002. UG?, Vivian D. A Categoria Pobreza nas formula??es de Pol?tica Social do Banco Mundial. In: Revista de Sociologia e Pol?tica n? 23. Curitiba: novembro de 2004. 159 Marcos C?sar Alves Siqueira ? Disserta??o de Mestrado VAITSMAN, Jeni; Rodrigues, R.W.S; PAES-SOUZA, R?mulo. O Sistema de Avalia??o e Monitoramento das Pol?ticas e Programas Sociais: a experi?ncia do Minist?rio do Desenvolvimento Social e Combate ? Fome do Brasil. Bras?lia: UNESCO, 2006. VAN PARIJ, Philippe, VANDERBORGHT, Yannick T. Renda B?sica de Cidadania - Fundamentos ?ticos e Econ?micos. Rio de Janeiro: Editora Civiliza??o brasileira, 2006. VARSANO, Ricardo. A evolu??o do Sistema Tribut?rio Brasileiro ao longo do s?culo: anota??es e reflex?es para futuras reformas. Rio de Janeiro: IPEA, 1996 (Texto para discuss?o n? 405). VERGARA, Francisco. Introdu??o aos fundamentos filos?ficos do Liberalismo. S?o Paulo: Nobel, 1992. VILAS, Carlos M. De ambulancias, bomberos y polic?as: la pol?tica social del neoliberalismo (notas para una perspectiva macro). In: Desarrollo Econ?mico, v. 36, n. 144. Jan/mar, 1997. WACQUANT, Lu?c. Punir os pobres: a nova gest?o da mis?ria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007. WADE, Robert H. Jap?n, el Banco Mundial y el arte del mantenimiento del paradigma: el Milagro del Este Asi?tico en perspectiva pol?tica. Desarrollo Econ?mico, v. 37, n. 147, 1997. WILLIAMSON, John. Depois do Consenso de Washington: Uma Agenda para Reforma Econ?mica na Am?rica Latina. Palestra elaborada para a Semana do Economista na FAAP. S?o Paulo, 25 de agosto de 2003. WEISSHEIMER, Marco Aur?lio. Bolsa Fam?lia: Avan?os, limites e possibilidades do programa que est? transformando a vida de milh?es de fam?lias no Brasil. S?o Paulo: Editora Funda??o Perseu Abramo, 2006. WOOD, Ellen M. Democracia contra o capitalismo: a renova??o do materialismo hist?rico. S?o Paulo: Boitempo, 2003. WOODS, Ngaire. The globalizers: the IMF, the World Bank and their borrowers. Londres: Cornell University Press, 2006. WORLD BANK. World Development Report: The State in a changing World. Washington DC: The World Bank, 1997. _______. Project Appraisal Document on a Proposed adaptable program Loan in the Amount of US$ 572?2 Million to the Federative Republic of Brazil for a Bolsa Fam?lia Project. In support of the First Phase of the Bolsa Fam?lia Program. Report No: 28544- BR. Washington DC: The World Bank, May 25, 2004.